O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

sábado, 25 de julho de 2015



POEIRA DO TEMPO

Juliano Barreto Rodrigues

Guardo antigas memórias de velhas bruxas e homens graves,
De erudição profunda, pince-nez, fraques impolutos,
Internados em seus gabinetes atemporais.
E dos Ticianos, Michelangelos e Gauguins que enamorei.
Relembro tempos parados,
Os cerzidos ingleses, os monogramas bordados,
Armoriais, sapatinhos com laços,
E dos romances franceses proibidos.
Apitos de trens, apitos de bules,
Rendas, chás-das-cinco, coleção de xícaras.
E os cadinhos que tia Úrsula me dava na infância para curar a febre?
E os degraus da entrada da minha velha casa?
Saudade das avós, avôs e tutores,
Com seus relicários, breves e breviários.
E da pedra-de-toque que atestava o oiro que meu pai comprava.
Adorava os cachinhos de bebês imortalizados nas fotografias
Espocadas a pólvora de Barcarena.
Tínhamos medo de São Cipriano.
Benzíamos-nos no tilintar dos sinos da Ave-Maria.
Adorava licor de jabuticaba na tacinha de cristal.
E dramas, comédias, romances, tragédias.
Meus ‘ais’ de amores, de dor, de assombro, sumiram.
Quantos protocolos, brasões, beija-anéis.
E mais broquéis, escudos-de-armas.
Cartas ciganas me revelaram labirintos e rotas dúbias.

Sou baú de bricabraques,
Repleto de impressões, barulhos de crianças, notícias de longe.
Guardei por anos as medalhas, selos, ex-libris e meus tinteiros gastos.
Lembro dos candeeiros dos postes acesos nos fins de tarde,
E dos ladrilhos novos de minha São Paulo,
A sacudir os coches irritando os passageiros.
Que saudades dos praças mortos na guerra.

Ah! Que falta faz minha capa, minha cartola, minha bengala.
Não me lembro de nenhum dos livros do meu santuário,
Embora saiba que ainda me inspiram.

Essa minha outra vida é gostosamente vívida.
Tinha minha oficina de tipos.
Eu era homem do meu tempo.
Lembro vagamente do jornal que dirigi,
Do estafeta sem-juízo de quem eu ria escondido,
E da minha querida Dona Inez,
Que hoje ainda adorna os jardins floridos de minha vida,
Com outro nome.
Agora sou passageiro atrasado de um novo tempo,
Que vivo bem,
Ainda que com a nostalgia de antanho.


quinta-feira, 23 de julho de 2015



                   DIQUE PARTIDO

Juliano Barreto Rodrigues

Maria conteve o choro tanto tempo,
Represando gota a gota,
Que se encheu feito barriga prenhe.
Mas todo açude tem que ter dreno, suspiro ou comporta.
Senão um dia desborda ou rompe barragem,
Alagando o que está abaixo.
É um Deus-nos-acuda,
Arrasta tudo à sua volta.

Que houve, Maria?
Nada, quer dizer, não sei,
É que...
Choveu muito em minha vida.


terça-feira, 21 de julho de 2015

ARADO

Mazzaropi - por William Medeiros

Juliano Barreto Rodrigues.

Vitorino, um matuto de cara amarrada, rijo feito aroeira por causa da lida sem trégua na roça era compadre de Juvêncio, um tipo escorregadio e folgadão com cara de malandro, mas boa gente. Tirando as maneiras e gestos, que os diferenciavam muito, dormindo eram a cara d’um o focinho do outro, bem parecidos.
Há muito Juvêncio, padrinho de “Tainha”, o mais novo dos cinco filhos de Vitorino, procurava um pé para enredar uma conversa sobre o menino. O moleque era esperto que só vendo, mas estava internado com o pai nas grotas, abrindo picadas e derribando mato para fazer pasto, e nada de escola.
Mandou recado ao compadre avisando que iria no seu rancho, na barra do dia seguinte, para tomar o café da comadre Don’Ana, depois o ajudaria no curral com a tirada de leite. Senhor de uma lábia conhecida, iria com os argumentos prontos para chacoalhar o Vitorino. O dedo de prosa seria ligeiro, já que o compadre era homem de poucas palavras, sujeito apoquentado, e a Don’Ana – barata de igreja – logo o puxaria pelo pé, para a missa de domingo.
Avistou a casa de taipa na chapada assim que o Sol apontou. Foi recebido no alpendre por Vitorino, que o mandou entrar. A comadre estava no fogão à lenha, acabando de coar o café, e a mesa já estava posta com cuscuz, bolo de goma, beijú e pêta.
--- Bons dias, cumadi. Como vai vosmicê? O cheirinho do bule tá de revirar os zói. E a cara do cuscuz? Vosmicê sabe que eu tenho um apetite de esmeril da França.
--- Bão dia, cumpadi, tô boa. Vamo chegando. Pegue uma chicrinha aí que eu te sirvo.
Depois do desjejum saíram os dois amigos para o terreiro a fim de pitar um paiero e jogar conversa fora. Sentaram-se perto da moita de Maria-sem-vergonha que rodeava uma Coroa-de-frade e ficaram olhando as criações comendo quirera de arroz e o milho que a comadre debulhava. Ficaram de conversê fiado um tiquinho até que Juvêncio atalhou a falar do menino:
--- Adiscuipa ser meio entrão meu cumpadi, mas queria falar com vosmicê do “Tainha”.
--- O que tem ele? Fez arguma malcriação?
--- Né nada disso não, cupadi. Com licença da palavra, é que já tá em tempo do menino estudá, não tá não?
Vitorino fez cara de quem comeu e não gostou, arregaçou as mangas, arquejou arreliado, e disse tentando não ser um cavalo:
--- Modi o quê o cumpadi tá preocupado com isso? Preciso do menino na lida comigo. Já tá aprendendo o ofício que eu aprendi na idade dele. Todos meus filhos são da terra e tão tudo aí vivendo bem, assim como eu, como meu finado pai e meu avô. Tenho orguio de ter meu roçado, ele também vai herdar isso.
Aquela cantoria de pé de parede iria virar um bafafá se Juvêncio não escolhesse bem as palavras. Sabia da veneração do compadre pela terra, que vinha sustentando sua família há várias gerações.
--- Sei, cumpadi. Quem sou eu pra meter a colher na criação dos seus filhos?! São tudo gente de bem. Mas nada impede que o menino te ajude de tarde e estude de manhã, não é?
--- Óia bem Juvêncio, a escola é a umas três léguas daqui e começa cedo, na hora de fechar as parida. O “Tainha” é quem me ajuda na apartação, na separação dus bezerro, na peação das vaca. Quem labuta na roça não tem tempo pra perder com iscreveção não. Isso vale de que aqui? Adispois, não quero meu filho metido a besta feito os moleques da rua, quero ele homi de verdade. Pra mim só existe vida pra valer é criando e plantando, e pronto.
Antes de continuar, pra botar água fria na fervura, Juvêncio lançou um chiste à comadre, que riu da brincadeira. Vendo que a coisa estava difícil, resolveu improvisar.
--- Cumpadi, tamo falando da mesma coisa.
--- Ah, num tamo não!
--- Meu amigo, o papel em branco é que nem a terra nua, que pode dar qualquer coisa. No descampado pode dar mato, forrageira, Angico, Ipê, planta rasteira ou de floresta, só Deus sabe. Na folha branca cabe um desenho, um rabisco, letras, palavras, o que quer que seja. Vosmicê gosta é de plantar, não é?
--- Hum!
--- Pois então! A página pautada é terra trabalhada. Suas linhas são veios de arado prontos para o cultivo de letras. As folhas são palavras, as frases são frutos, o texto a colheita inteira – que pode ser boa ou ruim, dependendo do que se plantou. Como aqui no seu chão, quem sabe plantar bem terá safras ricas.
O palavrório baqueou Vitorino, que baixou a crista e desanuviou a cara. Desarmou-se e viu a boa vontade no compadre.
--- Tá bão. Vô sortá o cabresto desse menino e dá corda pra ele istudá. Vamo ver no que é que dá. Num vai fazê tanta farta pra mim, ponho os mais véio pra tomá conta da parte dele, e não se fala mais nisso.
--- Ô, meu amigo, vosmicê é um homi que sabe das coisa. Num é atoa que somos que nem irmão desde pequenos. Deixa que os material e o uniforme eu compro, afinal, padrim é feito um segundo pai, num é?
“Tainha” apareceu correndo lá de dentro e pediu a benção ao padrinho.
--- Deus te abençoe, sêo “Tainha”.
Os anos passaram e “Tainha” – quer dizer, Tarcisio – colou grau em Direito. Na formatura foi o orador da turma. Com a voz embargada e os olhos marejando pediu a presença dos pais ao seu lado. Agradeceu a oportunidade de ter estudado e o apoio que lhe deram. Para sua surpresa o pai quis responder.
--- A oportunidade nóis tem que agradecê ao seu padrinho, que tá ali sentado se acabando de chorá. Foi ele quem me mostrou que vaçuncê ia continuá plantando, só que letrinhas, e te deu os campos arados. Os professores te ensinaram a plantá. Eu só aguei quando vi que tava brotando. Só entendia da terra, meu fio, hoje sei que não é só nela que a gente pode cultivá.
Doutor “Tainha” se comoveu. A multidão aplaudiu de pé até não poder mais. O padrinho levantou as mãos para o céu e agradeceu a inspiração de outrora, que tinha lhe valido tão doce fruto e transformado a vida da família de seu compadre.



sábado, 18 de julho de 2015

PAI ESCRITOR


Juliano Barreto Rodrigues.

De repente tenho um bebê. Os nove meses de barrigão deveriam nos preparar para sua vinda, mas não. Apesar de vê-lo algumas vezes no ultrassom e ouvir o batimento do coraçãozinho, ele ainda era meio abstrato. Nossa, ser pai aos 40 é assustador. Se fosse aos vinte teria mais disposição, talvez fosse mais fácil administrar as noites mal dormidas. Por outro lado, pode ser que eu não tivesse tido a oportunidade de fazer tantas coisas que fiz sem ter que cuidar de uma criança. E ainda há a história da ‘experiência’ – atributo elogioso dos mais velhos.
Pensei que a tarefa de ser pai fosse um fim em si mesmo, como se nada mais importasse tanto, como se todas as minhas necessidades de repente diminuíssem. Ledo engano. A estrada me tornou complexo e faminto, um tanto egoísta também. As aspirações são muitas, os planos se sucedem, não dá para ser apenas uma ou duas coisas.
Por causa Dele (com “D” maiúsculo mesmo) o tempo de que dispunha, e que já era pouco para fazer tudo o que gosto de fazer, foi reduzido absurdamente. Nunca pensei que iria ter que dividir em tantas prestações a simples leitura de um artigozinho de revista. O neném chora, é preciso ver se está sujo e trocar, depois dar para a mãe por no peito, aí mamadeira para complementar – lavada, fervida e resfriada – colocar para arrotar, acalmar o pequeno e rezar para que durma. Nisso já vai quase uma hora, num processo que deve ser repetido a cada duas ou três horas. E essas são apenas as tarefas ordinárias, porque ainda há banho, visitas ao médico, arrumar e desarrumar toda a tralha da criança, que tem um guarda-roupas maior e mais especializado que o nosso, e um sem-fim de outras coisas. Bebês têm ferramentas e artefatos que eu nem sequer sabia existirem.
Se quase não consigo ler, quem dirá escrever. Para começar, a falta de noites bem dormidas prejudica a memória, tenho dificuldade de lembrar até nome de pessoas próximas. O humor não fica lá essas coisas, e é preciso um estado de espírito adequado para produzir. Concentração? Nem se fala. O mais difícil são as interrupções.
A solução é escrever como se o fizesse escondido, tendo que correr para não ser pego com a mão na massa. Virei um fugitivo, que tem que sair em disparada o mais depressa possível antes de ser avistado. É necessário fazer tudo de um só tiro, sem planejar, sem rever, sem pensar muito, ainda que possa por a perder o resultado final. Melhor do que nada para quem simplesmente não consegue ficar sem escrever.
Ortega y Gasset disse “eu sou eu e a minha circunstância”. Ela determina boa parte – talvez a maior – do que somos e fazemos. É isso: agora sou um escritor com um neném, tendo que me reinventar com o tempo mais exíguo que me sobrou. Consolo-me na certeza de que sou bom para trabalhar sob pressão, especialmente de tempo. A diferença atual é que meus neurônios estão sempre numa Jam Session, se virando nos trinta.
Dizem que nada amadurece mais um homem do que a paternidade. Se assim for, minha escrita sairá lucrando. Para alguém prolixo como eu, talvez uma boa dose de pressa me torne mais sintético, curto e direto, favorecendo o estilo. Ademais, Ele é mais uma razão para minha arte melhorar: tenho que dar exemplo e ser motivo de orgulho para meu filhinho.
Por outro lado, “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida” (Fernando Pessoa). Não fosse por outro motivo, já seria uma boa terapia para pais aflitos a fuga momentânea da realidade escrevendo. Recarrega as pilhas de forma produtiva.
Sei que ganhei. Não sei se minha escrita ganhará, mas tenho esperança que sim. Eis a contingência da minha circunstância.



quarta-feira, 15 de julho de 2015

ESTULTÍCIA


Juliano Barreto Rodrigues

Mania estranha aquela. Pouco depois que teve contato com seu primeiro computador passou a migrar tudo o que lhe interessava para disquetes. Era adolescente na época e a mãe achava útil aquela brincadeira: fazia com que o menino se concentrasse em coisas importantes – textos, imagens, músicas, vídeos, etc. – em vez de pensar bobagens. Melhor ainda que começou a escrever um diário, também digital. Ia tudo para a pequena pilha de disquetes, que crescia ano a ano.
O surgimento do pendrive deu um upgrade na esquisitice do garoto. Após ter passado tudo que tinha nos disquetes para a nova tecnologia – que pendurava no pescoço atada a um colar – começou a gastar todo o dinheiro do primeiro emprego digitalizando os livros que lera, as matérias de jornais e revistas que lhe interessavam, os documentos que guardava, as fotos de família, para incluir no arquivo digital.
Já adulto ficou maravilhado com o HD externo. Passava seus dias juntando aquilo que considerava o “resumo de sua vida”. A filosofia era absurdamente minimalista: guardar todas as suas referências, tudo o que lhe importava, dentro de algo pequeno que pudesse segurar entre as mãos. Aquela obsessão o fez impopular e motivo de riso.
Não se achava estranho, principalmente levando em conta seu melhor amigo, o Derick, que não punha a mão em dinheiro de jeito nenhum, fosse de metal ou papel. Valia-se das amizades e da sua habilidade de bom amante para conseguir o que precisava com os companheiros e com as malucas com quem ficava.
Numa dessas encruzilhadas da vida, preocupado com alguns sonhos que andava tendo, o colecionador se viu na casa de uma cartomante amiga de uma amiga. A coroa falou de amores, de decepções, de inimigos, e disse que cuidasse de seu pequeno mundo, que estava para ser posto a perder. Nosso herói agradeceu sem entusiasmo, sentindo-se enganado, e perguntou se a mulher aceitaria o pagamento em cocaína.
--- O que vou fazer com isso, rapaz?
--- Ué, a senhora pode cheirar, aplicar, ou vender para alguém.
A mulher pensou consigo "Que moleque louco, cocaína não. Mas até aceitaria uns amassos desse malandro se não fosse o risco das más línguas". Disse ao cliente que voltasse depois para pagá-la em dinheiro – assim, pensou, também teria tempo para avaliar o risco de abusar daquele corpo com cheiro de moleque.
Dois meses depois, seguindo aquela vida deslocada de outsider, o maluco acorda de uma bebedeira de comemoração de aniversário e procura por suas memórias virtuais, e nada. Lembra-se da cartomante com a história da perda. Revira o quarto, revira a casa, põe abaixo o escritório em que trabalhava, liga para amigos, colegas, parentes, sem solução.
O desespero de ter todas as suas referências perdidas por aí o desorienta tanto que não consegue mais dormir, nem trabalhar, nem comer direito. Vai à polícia, investiga sozinho, promete recompensa. Meu Deus, não tinha feito sequer um backup, não havia cópia de nada. Parte da sua ideia era justamente ir se desfazendo de todas as fontes e acumulando todos os dados em um só lugar, que seria seu templo, sua memória extracorpórea.
Noite em sua vida. Não voltava mais para casa, não tinha paciência com ninguém. O delegado chegou a ouvir um receptador, que disse ter comprado o HD de alguém na rua. O idiota disse que apagou o hardware, de forma irrecuperável, porque estava cheio de coisas imprestáveis. Só pegou uma pena de pagamento de cestas básicas. Era o fim.
Sem identidade, sem memória, agora sem endereço, sem amigos e sem emprego, o rapaz chegou ao fundo do poço. Não se reconhecia em mais nada, estava despojado de tudo que o representava. Pensou na morte.
--- Que lixo, morrer sem deixar nenhum sinal de mim... Eu sou um corpo vazio, uma cabeça oca, meu mundo estava naquele HD.

Teve uma iluminação quando leu a palavra “niilismo” na capa da revista Seleções. No raso que se tornara relembrou superficialmente do que achava significar: 'não acreditar em nada'. Pronto, esse agora era ele, o símbolo da negação, do pós-tudo, inclusive do pós-si-mesmo (Só não desacreditava das cartomantes). Daí começou a juntar grão a grão novas histórias, novas memórias, sem aquela mania besta de guardar as coisas fora da própria cabeça.