O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 18 de abril de 2016



 TRATO É TRATO


Juliano Barreto Rodrigues


Sofrendo de disenteria e prostração há dias, o coronel Onofre já havia perdido a paciência com o doutor da corrutela e com as raizadas dos palpiteiros. Desaguando daquele jeito, iria acabar morrendo.
A mucama, com dó do sinhô, arriscou sugerir:
– O coroné tá é sofrendo de mal'oiado.
– Quê? Que diabo é isso mulher?
– Mal'oiado, zói gordo, zói grande, inveja.
– Entendi, entendi. Isso é besteira do populacho, superstição da escravaria e de beata cabeça mole.
– Num tá mais aqui quem falô.
Como não sarasse, o velho foi falar com seu compadre Vitorino, homem ilustrado e seu conselheiro fiel. Contou seu calvário e, por último, citou sarcasticamente a sugestão da escrava.
Vitorino riu, recostou na cadeirona maciça de pinho, cruzou as pernas, acendeu um pito, tirou o chapéu e disse olhando com uma cara engraçada para o coronel:
– E o que tá esperando, homem? Mal olhado é coisa brava, derruba até boi no pasto.
– Pare com isso, compadre, desde quando acredita nessas coisas? Vosmicê, um homem viajado e culto... Isso é crendice do poviléu que ignora a ciência.
– Amigo, pau que dá em Chico também bate em Francisco. Sua cabeça pode não acreditar, mas pelo jeito seu intestino acredita – sorriu divertindo-se.
– Será mesmo, compadre?
– Garanto que se a mucama estiver certa, uma benzedura forte te cura daqui para ali. Aplicando no compadre uma boa jaculatória com arruda não há quebranto que resista.
De um salto o coronel se pôs de pé agarrado às calças pelo cinto e, com o rosto em brasa, gritou para Vitorino:
– Ejaculatória? Tá louco homem? Morro mas não tomo desse remédio.
Vitorino também se levanta assustado e quase se acaba de tanto rir da ira do compadre. Após se recompor explica:
– Ejaculatória não, meu amigo. Ja-cu-la-tó-ria! É o nome que se dá às rezas curtas, destinadas uma para cada coisa, que as rezadeiras e feiticeiras repetem na prática de seu ofício.
– Ê, compadre, achei que tava me afrontando, quase perco a cabeça com vosmicê. Inda bem que colocou os pingos nos “i”.
– Quase tomo uns tabefes mas valeu o riso.
A cabana de Don'Ana do Riachão era assustadora. Pau-a-pique, coberta de palha de coqueiro, chão batido, um cachorro furibundo amarrado à porta e um papagaio barulhento a anunciar a chegada de estranhos.
A velha magricela e encurvada sai de lá com uma vara fina de goiabeira, açoita aos gritos o cachorro e ameaça o papagaio. Cospe e pragueja. Com um gesto impaciente manda as visitas entrarem. Dá de costas e vai para dentro.
O interior era mais feio e sinistro do que o exterior. A fumaceira do fogão a lenha tornava o ar irrespirável e neblinava tudo, dando um aspecto de pesadelo. A fuligem tinha empretecido a parte mais alta das paredes e a palha do telhado. Havia um amontoado de penduricalhos para todo o lado que dividia a atenção a tal ponto que não dava para fixar a vista em uma coisa só. A velha então mandou os dois se sentarem.
– Vamo vê que mal aflige vosmicê – disse a senhora enquanto se encaminhava para uma prateleira. Meteu a mão dentro de um caixote onde uma galinha botava e arrancou de baixo da pobre um ovo. Encaminhou-se para a mesinha onde havia uma cuia cheia d'água e quebrou o ovo dentro dela. Conforme a gema e a clara flutuaram formando figuras a velha vaticinou: – Tá com olhado seu dotô, e é coisa séria. Pague a mesa com 300 réis.
– O que? É muito dinheiro para acabar com uma caganeira. Vosmicê tratando de desarranjo daqui a pouco compra minha fazenda.
– O coronel é que sabe.
– Vamos deixar de conversa. Dou 100 e, se ficar bom, volto com mais 100, combinado?
– Tá bão. Mas se o sinhô não voltá, a coisa vai ser pior.
Vendo a cara de ultrajado do coronel, Vitorino pegou-o pelo braço e cochichou em seu ouvido. Onofre sacudiu a cabeça e remexeu impaciente o porta-moedas. Então pôs na mesa o dinheiro.
A anciã mandou o homem ficar de pé no meio do cômodo, deu-lhe um pote com água para segurar, pegou um galho de arruda no quintal, uma pena e um punhal e começou a operação mágica agitando o ramo, como se varresse o corpo do coronel, enquanto dizia:
– Com dois te puseram, eu tiro com três: Arruda, ponteiro e pena de um galo pedrês. Com erva forte e reza brava curo feitiço, olho-gordo e quebranto, mal que fere e mal que mata, tiro e atiro prum canto.
Jogou a planta na mesa e pegou o punhal. Com ele ia fazendo cruzes em todos os lados de Onofre e recitando:
– Com ponteiro corto o mal. Cruzo a proa, cruzo a popa, cruzo bombordo e estibordo, cruzo o mastro e cruzo o casco. E assim corto todo embaraço.
Largou o punhal na mesa junto com a arruda e tomou a pena. Apontou para a cabeça do coronel e fez cruzes de longe.
– A pena traz alívio e proteção, do povo de lá e do povo de cá. Valei-me todos os velhos feiticeiros, que todo mal hão de levar. – daí juntou os utensílios usados e embrulhou com um pano, para despachá-los depois.
Terminada a obra, a velha levou o coronel até o umbral da porta, o fez ficar de costas para fora e mandou que atirasse a água para trás, por sobre a cabeça. Assim feito, mandou os compadres embora.
Dias depois o coronel estava feito novo e recebeu visita de Vitorino.
– Como está meu compadre?
– Muito bão meu amigo. A bruxa parece que tirou com a mão o que tava me aporreando.
– Voltou lá para deixar os 100 réis?
– Qual o que?! Nunca vi cobrar por reza. Ela já foi mais que bem paga pelo que fez. Exploradora!
Vitorino fez cara de reprovação mas não quis prolongar o assunto. Pensou consigo: “rico só é rico porque é muquirana. Espero que meu amigo não se arrependa”. Não deu outra. Pouco tempo depois o coronel foi acometido por uma forte constipação. A mucama alertou:
– Vá em Don'Ana, sinhô. Ela te cura do vento-virado.
– Aquilo foi coincidência, mulher. Ademais, o remédio dela é muito caro. A embusteira vive à custa do desespero dos outros. Não me engana mais.
Dez dias até a morte. O coronel deixou muito dinheiro para seus dois filhos pródigos dizimarem. No enterro deu muita gente. Vitorino lamentou a cabeça dura do compadre e, com a impressão de ter visto a feiticeira no meio da multidão, lembrou-se da frase de Hamlet: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. Pensou consigo que, às vezes, as pessoas põem tudo a perder por pouco. O combinado não sai caro, desde que se cumpra o acertado. De repente, uma dor de barriga pontiaguda o atingiu. Persignou-se e sussurrou para ninguém:

– Não se subestima aquilo que não se entende – então saiu do cemitério às pressas à procura de um banheiro, com a lição aprendida e com mais uma história para contar.