O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017




CANINANA

Juliano Barreto Rodrigues

Tem coisa na vida da gente que se contar ninguém querdita. Nos fim de semana eu e os cumpadre se reune debaixo do pé de manga pra jogar um truco e beber umas pinga de jeito. Tem vez que junta umas três ou quatro mesa de truquêro. Quase sempre dá alguma arrelia, mas todo mundo gosta.

Numa veis dessa, cachaça vai, cachaça vem, começaram a falar da tal da caninana, dona da matinha onde brota e desce o corguinho que passa na roça. É costume algum mamado se achar o bãozão e querer subir lá com um pedaço de pau pra tentar matar a cobrona. Tudo quanto é metido a besta vorta de lá correno e branco feito defunto.

Naquele dia, eu, o Zé da Venda, o Tonico e o Jão tava jogando e o povo da outra mesa só no mocotó e na branquinha, contando valentia e brincando uns com os outro. Daí a pouco o mais barulhento veio me estrovar. Falou que ia lá pegar a cobra. Pronto, todo mundo queria dar um pitaco, dizer que fizesse assim e assado, que não virasse as costas pra ela porque a tinhosa corria atrás dando chicotada. A mesma lorota de sempre.

Depois de quase uma hora de fuzarca, dois resolveram ir com o Meleta. Os três já tavam daquele jeito, se acendessem um cigarro era capaz deles explodir. Num tem nada pra dar mais coragem num homem do que a mardita.

Na portinha da macega um já tremeu e deu pra trás. Vortou fazendo graça pra amenizar a vergonha. Os outros dois chucharam na mata. Daí um tempo ouvimos uns grito e a pauzera quebrano. Sai de lá, na carreira, o companheiro do Meleta, parecendo que viu o diabo e berrando por ajuda.

O Meleta tinha ido até a grota da mina e espiticado uma galhada, quando deu de cara com o rabo da chicotêra alaranjada. No que acompanhou o corpo dela, viu que já tava armada pro bote. Só foi o prazim de pular e correr. A bicha saiu no rumo dele que, acostumado a correr de boi brabo, subiu no primeiro pé de pau que achou. O bestão só esqueceu é que cobra sobe em árvore.

Coragem era pouca, mas nóis não podia deixar um amigo naquela situação. Fomos acudir. Que situação. O peão tava lá trepado na árvore, lá na grimpinha, com a bichona lambendo os beiço pra pegar ele, pertinho, pertinho. Ele já tinha obrado na roupa e, cada vez que ela dava um bote ele gritava, saia prum lado, saia pro outro, parecia que tava dançando na brasa, e a bosta escorria pelas perna.

O Zé da venda rancou o tresoitão da cintura e tascou um tiro pro rumo. Pulei e ranquei o revolver da mão dele, se não, ele é que ia acabar matano o Meleta. Não tinha muito o que fazer, ninguém tinha colhão pra chegar muito perto. Jogar toco não tava adiantando. “Ai meu Deus, ai meu Deus”, relinchava o encurralado.

Quando pensa que não, o peão me cai lá de cima com cobra e tudo. O tombo foi tão feio que todo mundo pensou: morreu! O cabra caiu sentadão bem no meio da bicha. Deve ter sido com tanta força, ou ela não aguentou o cheiro, que na mesma hora arrastou, manqueba, pra grota suja. Nessa hora foi muita graça ver aquele mutamo de homem esborrachado lá no chão, sem um pinguinho de sangue na cara. Até a cana tinha evaporado.

Dali pra frente, Meleta passou a ser chamado de Melado, o herói todo cagado, que tinha muntado na cobra e sobrevivido pra contar a história.

A danada tinha ganhado de novo, mas deve ter brotado um bico-de-papagaio no espinhaço, que não deixa ela esquecer do Melado. Pelo menos até hoje ela pôde descansar. Demora algum bocoió se meter com a descadeirada de novo. Ela vai tá prontinha.

Fico matutano... Me fala: pra quê bulir com quem tá queto, heim? Pra quê?

Vai sê bobo pra lá.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017



IMPRESSÕES SOBRE O LIVRO

O RETRATO DE DORIAN GRAY


Juliano Barreto Rodrigues.


Oscar Wilde publicou o romance gótico-filosófico O Retrato de Dorian Gray, inicialmente em fascículos mensais na revista literária Lippincott's Monthly Magazine , no ano de 1890. 
 
Li O Retrato de Dorian Gray em PDF no smartphone, numa versão em espanhol. A base da história todo mundo conhece: o protagonista Dorian é pintado por alguém e, a partir daí, só seu retrato envelhece, ele não, o que gera consequências funestas para Dorian e os que com ele convivem. Parece simples, mas é claro que não é só isso e, pela gama de situações suscitadas, rendeu um romance que virou um clássico, inspirador de várias outras obras literárias e cinematográficas, com este personagem ou com tramas parecidas.

O tema é o desejo de viver eternamente e numa eterna juventude (semelhanças com os vampiros não são meras coincidências), sofrendo as consequências desse esquema antinatural, que parece mais castigar do que abençoar seus escolhidos. É o retrato narcísico absoluto, de quem quer perpetuar a beleza, sem jamais envelhecer nem morrer. É um tema atual em todos os tempos, o que faz da obra universal e atemporal.

Acredito que a maioria dos leitores tenha lido a obra em outra fase da vida, mais novos que eu, fase em que o proveito com o aprendizado, positivo ou negativo (o livro foi objeto de inúmeras críticas, considerado má influência) deve ter sido ainda maior. Embora seja um romance – pelo tamanho – prefiro pensar nele como uma novela – pela velocidade do enredo, a leveza do texto, o número restrito de personagens.

Embora Dorian seja o protagonista, Lord Henry (a quem Dorian chama de Harry) é muito mais interessante. Harry, assim como o próprio Dorian, é membro da aristocracia e frequenta os salões da corte. Ambos agem como personalidades à frente do seu tempo, mas são exatamente aquilo que se espera deles: extravagantes, cínicos, sem qualquer ocupação útil, bem ao estilo playboy dos nossos tempos. Mas Harry (prefiro falar assim, com intimidade) traz, em todas as suas conversas, uma filosofia hedonista e revolucionária bem interessante. Toca naquilo que comumente se classifica de futilidade como o que realmente importa na vida (por isso me identifico).

O outro personagem, Basil, pintor do retrato, é secundário. Além dele, de Dorian e de Harry, só uma moça a quem Dorian namorou tem importância maior na história. O narrador, onisciente em terceira pessoa, é a voz predominante e possui a qualidade de servir à trama, não se destacando. É possível ver as cenas, sentir os cheiros, gostos e emoções narrados. Há apenas alguns excessos nas descrições de joias, tapeçarias, etc., que tornam chatas umas poucas passagens do livro, mas têm sua importância como registro de época para historiadores e interessados nos assuntos de que tratam.

Considerei superficiais as incursões do narrador na psique dos personagens. Dada a natureza do tema, poderiam ter sido mais profundas e impactantes, valorizando os resultados das ações na alma dos envolvidos. Mas, talvez, o aprofundamento se desse em detrimento da fluidez do texto, então, respeito a escolha do autor. Afinal, o tema é tão bom que fala por si, ficou no imaginário coletivo, o criador conseguiu passar muito bem o recado.

É uma leitura agradável, para ser feita como faço: aos poucos, sem pressa, nada daquilo de “ler de uma sentada só”. É preciso saborear as conversas de Lord Henry, refutá-las ou adotá-las, se transformar com elas, bem como analisar criticamente as ações de Dorian. O certo é que, lendo atentamente, não se sai incólume do contato com este livro.

Ressinto-me do final do livro ser tão apressado. O texto vai indo em um ritmo e, mais ou menos nas últimas seis páginas, corre para a solução, que poderia ser mais trabalhada, mais lenta, mais valorizada.

Saio da leitura como se deve sair da degustação de um bom livro: marcado!