O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Sugestão de leitura – COMO ESCREVER PARA WEB : elementos para a discussão e construção de manuais de redação online





FRANCO, Guillermo. Como Escrever para WEB : elementos para a discussão e construção de manuais de redação online. Knight Center for Journalism in the Americas. 200? Disponível em: 




Juliano Barreto Rodrigues

Livro escrito, essencialmente, para jornalistas. Mas o autor assegura que é proveitoso para a redação de todo texto a ser publicado na Web. Tem toda a razão, embora eu acrescente que é muito proveitoso para quem escreve o que quer que seja, em qualquer lugar ou suporte, não apenas na internet.

Por que apresento este livro em um blog de criação literária? Porque, dentre minhas leituras, considerei este um livro essencial, também, para quem faz literatura (principalmente a ser disponibilizada na Web). Traz uma radiografia do texto, uma visão de seus elementos, sempre com vistas a despertar imediatamente o interesse do leitor e a prendê-lo, fazendo com que o leia (e que também interaja, clicando para outras páginas disponíveis), e tenha, enfim, uma experiência positiva no contato com nosso site, ou blog, ou rede social. A radiografia, de que falei, faz com nós que escrevemos tenhamos um novo olhar sobre cada palavra, sua função, sua disposição, sobre as frases, parágrafos, o bloco do texto, etc. Parece que, de repente, o que víamos como um todo bom ou ruim passa a ser visto nas suas pequenas partes, ficando fácil identificar onde está o que é bom e o que é ruim, o que destacar, permitindo modificar, consertando o texto.

Na escrita para a Web, por causa da função dos textos e da peculiaridade do suporte em que são apresentados – a tela luminosa do computador –, os títulos, primeiras palavras, primeiras frases são fundamentais para captar e prender o leitor, que na Web escaneia a página antes de ser fisgado, decidindo-se a ler. Assim, intertítulos, parágrafos curtos, textos curtos, facilitam a leitura e contribuem para que um texto seja lido até o final. Para tornar o texto enxuto, conciso, cada palavra deve ser bem escolhida (curta, clara e exata), atraente e estrategicamente bem colocada. A ideia que mais chama a atenção deve vir primeiro. É uma escrita que têm muito de publicidade, de “vender” o texto.

O autor faz um histórico da utilização da pirâmide invertida, lembrando a importância do seu surgimento, o momento em que ela passou (antes do advento da internet) a ser considerada obsoleta, sendo rechaçada pelos jornalistas, até seu resgate, a partir da universalização da rede mundial de computadores.

Pirâmide invertida é uma técnica de hierarquização de conteúdo que consiste em colocar, logo no início do texto, as informações mais interessantes ou importantes, e ir decrescendo, nos outros parágrafos, para as menos importantes (contexto, detalhes secundários, etc.). A pirâmide invertida horizontal traz a mesma ideia para dentro de cada parágrafo, levando o redator a colocar o prioritário na primeira frase, nas primeiras palavras, e ir decrescendo para as informações menores.

Guillermo Franco considera que, talvez, o modelo de pirâmide invertida não seja interessante para o artista, o escritor de ficção, o literato, o cronista, nem para quem faz um certo tipo de jornalismo literário. Mas, na minha opinião, podemos aproveitar, mesmo nas criações ficcionais, muito do que ele traz no livro – principalmente a questão de prioridades no texto. Ele trata do tamanho das frases, dos parágrafos... Para você dar ênfase a alguma ideia, por exemplo, é interessante alternar um parágrafo longo com um curto, ou colocar entre dois parágrafos longos um curto – o parágrafo curto provavelmente vai se destacar. O mesmo ocorre com as frases curtas: uma frase curta colocada entre frases mais longas, a frase curta vai chamar a atenção. O autor também trabalha a questão da adjetivação e do uso de adverbios, observações que podem ser aproveitadas por quem escreve literatura ou qualquer outro gênero.

Respeitado o bom senso e a questão de conveniência, dá para aproveitar na criação literária muito do que é apresentado no livro. Da comparação consciente entre as diferenças (técnicas, de estilo e de função) da escrita para Web e da escrita literária impressa, extrai-se elementos que podem se modificar ou misturar para fazer de um texto algo melhor.

A obra traz uma profusão de exemplos e comparações, que ensinam, na prática, como identificar um texto bom ou ruim para Web, permitindo melhorar ou fazer do zero algo mais adequado para internet. No livro há gráficos e tabelas que facilitam o entendimento e visão do todo. Um defeito a ser destacado é que, toda vez que o autor cita parte de outra obra ele faz a referência completa dentro do próprio corpo do texto, tornando enjoativo o fato do leitor ter que ver a mesma referência 10 ou 15 vezes. 

É um livro que veio atender à necessidade de formação específica de jornalistas (mas não se restringe a eles). Muito didático, as informações são todas muito pertinentes e importantes. É um livro em que o leitor realmente aprende aquilo a que ele se propõe. O fato de ser disponibilizado gratuitamente é ótimo, porque facilita o acesso.

Dentre os materiais que tratam de escrita para a WEB com os quais tive contato até agora, este é, com certeza, o mais direto, interessante e rico de conteúdo.

ANÁLISE CRÍTICA DO MINICONTO “VOCÊ LIGA PRA CÁ E CONTA QUAIS SÃO OS SEUS CAMINHOS EM SÃO PAULO”, DE BRUNO ZENI.






Por Juliano Barreto Rodrigues


Referência:
ZENI, Bruno. O fluxo silencioso das máquinas: pequenas iluminações asfálticas. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002. Págs. 61-62.

O porquê da classificação como miniconto:
Miniconto, microrelato, termos ainda não pacíficos e de significado não unânime na academia, mas cada vez mais utilizados, definem: 1) textos concisos (mais do que simplesmente breves); 2) com narratividade que mostre a progressão de uma personagem de um determinado estado a outro; 3) Que cause um efeito (empático, antipático, de perplexidade, de estranhamento) – através de forçada adesão do leitor, causada por determinado uso deliberado da linguagem; 4) seja aberto, no sentido de não trazer todas as conclusões, deixando que o leitor as tire; 5) e exato, na medida em que o autor consiga direcionar o leitor ao efeito pretendido, e não a outro (por isso a escolha e posição das palavras e frases – da forma, enfim – são muito importantes neste gênero).
Todos esses elementos característicos estão presentes no texto estudado. Há ainda a falta de parágrafos, a forma de utilização do título, da pontuação, das palavras, que reforçam a classificação no gênero miniconto.


Contextualização do texto com o título do livro

O título do livro de Bruno Zeni é “O fluxo silencioso das máquinas”. No miniconto específico, um de vários, a ideia de fluxo das máquinas - coincidente com o título do livro - está presente, embora o texto contradiga o adjetivo “silencioso”, acrescido ao substantivo “fluxo” do título da obra. Sons estão referidos o tempo todo, inclusive no não mencionado toque do telefone celular que interrompe quatro vezes o trajeto do protagonista. Há música, som de carros, até de um helicóptero, comparado ao som da cidade: “Por que o barulho das pás de um helicóptero parece tão alto, como se tomasse conta da cidade, como se fosse mesmo o barulho da cidade?”
Há correlação direta com o subtítulo do livro, “pequenas iluminações asfálticas”: a pequenez do corriqueiro, da rotina, do dia-a-dia que se repete na cidade, no asfalto (no trânsito, neste texto em particular). São inúmeras as referências às luzes - de carros (que se deduz pelo horário em que se passa o enredo: início da noite), do telão luminoso de cristal líquido, da parede do prédio “cintilando” a imagem de uma mulher, dos giroflex das ambulâncias (também só sugeridos, não ditos).


Impressão visual

Um só bloco de texto desalinhado do lado direito, sem parágrafos, que tem como facilitador da leitura da mancha gráfica apenas as margens, as entrelinhas e a serifa da fonte utilizada. A escolha da edição casa bem com o conteúdo: o desalinhamento dá ideia do caos do tema, a falta de parágrafos insinua um fluxo constante, o bloco gráfico maciço remete à concisão do texto e, psicologicamente, ao peso e cansaço da situação vivida pelo narrador.


Título do texto

Há a diferenciação ortográfica da primeira frase, que funciona, assim, como título, a exemplo do que se ensina em manuais de escrita para web. O mecanismo serve para facilitar que se acrescente o texto em dispositivos móveis sem que haja desconfiguração de formatação. Também é meio para que o título não seja deslocado, e sim faça parte do próprio texto (sem ser necessário repetir sua informação no restante do corpo). Recurso muito usado no jornalismo digital (Bruno Zeni é jornalista).


O narrador

Narrador personagem em segunda pessoa, que faz com que o leitor se envolva de forma mais intensa com o que está lendo, percebendo as coisas de forma mais real, mais profunda. “Você” é o interlocutor do diálogo telefônico apenas insinuado. Para um leitor que não é de São Paulo, talvez a associação pessoal não aconteça. Noutros pontos, o narrador alterna entre segunda e primeiras pessoas do singular e do plural, o que reforça o tom dialogal:
[Eu] Não sei se propaganda de roupa [...]” – primeira pessoa do singular.
[...] vamos esperar um pouco” – nós, primeira pessoa do plural.
No entanto, na maior parte do tempo, o narrador está falando consigo mesmo, realizando um monólogo interior direto, demonstrando impressões internas sobre o trajeto, os sons, imagens, sensações e sentimentos que está tendo. Isso é trabalhado à maneira de um fluxo de consciência, evidenciado pela forma de pontuação e alternância desordenada entre informações objetivas e subjetivas, pela interrogação para si mesmo (“Por que o barulho das pás de um helicóptero parece tão alto, [...], como se fosse mesmo o barulho da cidade?”).
No final, há uma parte que representa bem claramente a fragmentação característica do fluxo de consciência: “Todo mundo na rua. Todo dia. Me tira daqui. Me leva pra casa. Me beija. Dezenove e cinquenta e dois. Pensando em nós dois. Depois que tudo isso passar. Vai ser melhor.”
O narrador é protagonista, sua narração se limita a seu ponto de vista, não tendo acesso aos pensamentos da outra personagem (não identificável se homem ou mulher. Se o leitor se identificar – como é possível pela narração em segunda pessoa – o gênero será o seu).


Parágrafos

Não há parágrafos explícitos para o leitor “respirar”. As frases são curtas. Uso dos dois pontos: 4 vezes, três deles muito próximos – aceleram a leitura. À rapidez do texto se contrapõe a lentidão do trânsito descrito, indicando a tensão (e estresse) entre a pressa do narrador personagem e a arrastada fluidez do tráfego.
Você liga pra [ou para] cá e conta [...]”. Usado 5 vezes. Cada entrada, em discurso indireto livre, corta a cena, fazendo as vezes de um parágrafo.
Em todo o texto, embora os deduzidos parágrafos (que não existem de fato) tragam basicamente a repetição da mesma frase inicial, a preposição pra é utilizada duas vezes, nas frases de início e de final apenas, trazendo uma contradição com a forma para (mais formal) utilizada no interior do texto. A sensação é de que usa o coloquial pra como se estivesse se referindo diretamente ao interlocutor no telefone e o para quando está falando consigo mesmo.
Esses “parágrafos” (embora não explícitos) vão diminuindo de tamanho (como a distância até o destino do narrador) até que o último seja apenas uma frase.
O texto começa e termina com elocução parecida, dando a ideia de um ciclo ruim que se repete todo o dia, mas há um alento na última frase que parece dar sentido ao caos que é suportado: “Você liga pra cá e conta como se ama em São Paulo”.


Transgressões à linguagem formal

Algumas transgressões da linguagem formal são evidentes, como o uso da preposição reduzida pra, que dá o tom coloquial ao escrito (embora seja forma dicionarizada e aceita pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa).
A Avenida Paulista segue parada” – transgressão. O verbo seguir se refere a passagem de tempo e não ao espaço da Avenida Paulista, como a frase parece mostrar.
Os carros andam um pouco melhor [...]” – para indicar “um pouco mais rápido”.
[...]o desespero das sirentes.”
Vai ser melhor” – em vez de será melhor.
Depois que tudo isso passar. Vai ser melhor”. A transgressão está na ênfase da pausa causada pelo uso do ponto em vez de vírgula.
Todo mundo na rua. Todo dia. Me tira daqui. Me leva pra casa. Me beija.” – uso de pontos, em vez de vírgulas. Há uma reclamação explícita. Transgressão da ordem formal: me leva, em vez de leve-me; me tira, em lugar de tire-me; me beija, e não, beije-me.


Outras considerações


Não fica claro se o interlocutor ao telefone está longe, ensinando melhores rotas, ou dizendo que também está em outra parte do trânsito paulistano, rumando para o mesmo destino.


O substantivo “São Paulo” é um eco recorrente no texto. Usado seis vezes em quatro parágrafos (apenas deduzidos, como já dito).


No rádio, temos música, pelo menos” – uma escapada, uma fuga a suavizar a espera. O “pelo menos” demonstra insatisfação de estar naquela situação. O “temos” reflete a alternância para 1ª pessoa do plural.


Há referências à meteorologia, distâncias, horários, cotações, datas, informações tão comuns e buscadas, com maior ou menor interesse (e de importância variável), por quem transita diariamente pelas cidades.


A imagem da mulher na parede impõe, “prende”, a atenção de quem passa. A potência daquele apelo publicitário é irresistível. Mais uma marca – além do congestionamento do trânsito, do tempo exíguo, dos excessos de sons, luzes, sensações e imagens, e da própria forma do texto – da Pós-modernidade.


Verbos, advérbios, substantivos e adjetivos

Parece haver uma escolha deliberada pela construção textual substantiva, tentando economizar em verbos, o que se reflete também na reduzida utilização de advérbios (de modo e intensidade) e locuções adverbiais em comparação com a profusão de adjetivos e locuções adjetivas. Visão rápida:
1. ADVÉRBIOS E LOCUÇÕES ADVERBIAIS
- segue parada
- parece tão alto
- lentidão
- andam um pouco melhor
- vai ser melhor
2. ADJETIVOS E LOCUÇÕES ADJETIVAS
- imagens líquidas
- imagens líquidas
- cores irreais
- parcialmente nublado
- céu avermelhado
- fluxo lento
- trânsito intenso, mas correndo
- figura enorme
- corpo inteiro
- quadris enormes
- mulher quente
- cores quentes
- mulher quente cintilando
- trânsito está completamente parado
- trânsito complicado
- trânsito bom

Chamam a atenção o uso de “líquidas” (adjetivo) e “cristal líquido” (substantivo composto) porque o primeiro uso conota, e o segundo denota, fluidez, coerente com fluxo de trânsito e, além disso, termos muito utilizados para tratar os fenômenos de convivência, comunicação, interação com o meio e com as tecnologias, na Pós-modernidade.


Uma tentativa de interpretação à guisa de conclusão

Toda interpretação é subjetiva, parcial e lacunosa, mas isto é característica da literatura: o sentido do texto só se completa na medida do leitor, que entende de uma ou de outra forma – conforme sua vivência, seu repertório de leitura, suas capacidades culturais, sociais, intelectuais, etc. – o que está lendo. Dito isso, parto para uma sucinta interpretação crítica, que exatamente por ser crítica, não vai isenta de juízo de valor.
A informação de 182 km de congestionamento já situa o leitor na sensação angustiante e claustrofóbica de estar preso no trânsito. O horário de pico intensifica a impressão. O conflito é exatamente a agonia da distância diante da vontade de chegar logo (a um ponto de chegada/destino, e a um alguém).
Diante da impotência diante da situação do tráfego, o impulso é só não parar, continuar indo, tentando não surtar, porque vai passar, vai ser melhor (parafraseando as penúltimas frases do texto).
O que se vê no trajeto, não por querer, mas obrigatoriamente, vai enchendo o tempo e as sensações do narrador personagem, ativo-passivo diante do trânsito. Os elementos descritivos são direcionados para imergir o leitor nessa atmosfera maçante do congestionado de fim de tarde. Os estímulos distraem o motorista e ele leva o leitor neste processo. Daí a importância da forma, mais do que do enredo neste caso, para causar uma impressão marcante do texto.
De tempos em tempos os telefonemas, que bem podem ser só reminiscências, sem estar acontecendo realmente – mas não foi assim que entendi – ressituam o narrador personagem no seu objetivo: chegar, encontrar aquela pessoa referida, sair da angústia.
É um texto de resignação momentânea, em que o indivíduo (micro) está engolido pela cidade (macro), na esperança de chegar àquilo que finalmente lhe interessa. Indica assim a esperança de todos os que vivem situação semelhante hoje em dia: ser um pouco mais dono de seu tempo, de seu espaço, de si.
O miniconto me remete ao conceito de sociedade do tempo livre, em que os sujeitos só se sentem inteiros e felizes no espaço temporal em que não estão obrigados ao trabalho, ou seja, em exíguos momentos de fuga e liberdade. Assim, o efeito que o texto me causou foi a angústia de reviver aquele tipo de situação ruim, com a pressa impotente diante da contingência do trânsito.
As escolhas do autor são impressionantes, foi muito competente na maneira de apresentar sua ideia. Independente de se gostar ou não do tema ou do entrecho, é um texto admirável.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

IMPÉRIO DO ESCRITO : A comunicação nunca foi tão textual




IMPÉRIO DO ESCRITO
A comunicação nunca foi tão textual

                                                             Juliano Barreto Rodrigues1

Resumo
A observação de que a comunicação tem migrado sensivelmente da fala para a escrita levou a elaboração deste artigo científico. O estranhamento pelo fato do fenômeno de deslocamento para o textual ocorrer em uma sociedade que tem, como senso comum, que “escrever é mais difícil do que falar” provocou a tentativa de explicar os motivos da mudança que, até simplesmente começar a acontecer, parecia tão improvável. Embora possam, por exemplo, falar diretamente via aparelho celular, as pessoas preferem mandar mensagens de texto. Mas o texto, por sua vez, está cada vez mais longe da norma padrão da língua. Estamos diante de uma transição cultural de proporções importantes e que está ocorrendo com atenção discreta do meio científico (provavelmente não do meio empresarial, que estuda o comportamento dos públicos para lucrar). Este artigo vem contribuir para a suscitação de hipóteses sobre os motivos da alteração do paradigma comunicacional e chamar a atenção para a importância dessa modificação.
Palavras-chave:
Fala; escrita; deslocamento; comunicação; tecnologias

Introdução

Parece estranho, em uma sociedade da sensação2 (imagética e auditiva por excelência), tratar o escrito, supostamente silencioso e limitado aos caracteres tipográficos3, como protagonista da comunicação. Mas não soará absurdo se o observador descer à gênese das representações comunicacionais mais comuns hoje – sejam elas imagens, vídeos, músicas, games, combinações de meios, soluções midiáticas, etc. – e constatar que, na origem, há quase sempre um roteiro, um plano, um script, (escritos) a direcionar a realização concreta daquilo que será exposto.
Mais que isso, as redes sociais – especialmente o Whatsapp que, instalado no smartphone, permite comunicação gratuita4, em tempo real, com um ou vários interlocutores situados em diversos lugares, com possibilidade de envio de mensagens escritas, de chamadas remotas, arquivos de áudio, de imagem e vídeo – dão prova incontestável de que o textual tem tido precedência, em comparação com a fala, na preferência comunicacional não presencial das pessoas. Aqui é necessário que se faça um recorte populacional: este artigo se refere às pessoas que têm acesso a tais tecnologias.
Entenda “textual” num sentido amplíssimo e polissêmico, empregado tanto para referência ao escrito como produto final quanto ao produzido a partir do escrito, seja vídeo, imagem, música, publicidade, etc.
Um problema surge quando o senso comum afirma que “pensar é fácil, falar o que se pensou é difícil e escrever é mais difícil ainda” e, a cada dia, prefere mais se comunicar por escrito. A hipótese aqui levantada é que a comunicação tem se complexificado e se transformado em resposta à complexificação das relações (humanas, humanas com as tecnologias e humanas mediadas por tecnologias), sem que os comunicantes se deem conta nem sofram5.
O escrito parece mais conveniente nesta sociedade complexa e de distanciamento físico (as pessoas conversam sem estar frente a frente e sem expor emoções que a fala revela). Por isso tem sido alçado, instintiva e artificialmente6, ao protagonismo comunicacional.

Metodologia

A proposta deste artigo científico segue o fluxo dos insights surgidos a partir da definição de tema inédito, talvez mais facilmente trabalhado em um ensaio (que permitiria maior liberdade discursiva) ou em uma tese, meio mais adequado ao tratamento de objetos de estudo originais.
Para construir a lógica dos argumentos e explicar porque o senso comum considera a comunicação escrita mais complicada do que a falada – e ainda assim tem migrado para ela – optou-se por particularizar e esclarecer três momentos da gênese comunicacional, não lineares e nem sempre realizáveis concomitantemente: o surgimento de uma ideia ou imagem, a sua transformação em pensamento (já vinculado à linguagem e processo comunicativo interno ou externo), a exteriorização do pensamento em fala ou em texto.
O sentido desta primeira exposição é indicar a progressiva complexificação que vai do primeiro processo até o da fala e, mais ainda, da escrita. Para tanto, o referencial teórico utilizado é o trabalho Pensamento e Linguagem, de Vygotsky (publicado originalmente em 1962).
As hipóteses levantadas incitam uma posterior análise mais detida, que pode, quando realizada (talvez no trabalho de conclusão de uma pós-graduação stricto sensu), inclusive refutá-las. São a defesa de um ponto de vista, lastreado teoricamente, a ser aprofundado e validado amplamente, mas são ideias que tem eco e partidários entre alguns estudiosos da pós-modernidade, fato que denota sua importância.
Pretensa função deste artigo: servir como startupping de uma maior atenção da academia para o fenômeno da suposta migração fala-escrita, resultante da atual fase das tecnologias da comunicação. É ser ponto de partida, sugestão para mais pesquisas, objeto de ratificação ou ataque (no todo ou em partes) - principalmente de aprofundamento -, com o fim de alcançar um maior entendimento das transformações no comportamento comunicacional para, a partir daí, prever novos mercados, possibilidades educacionais, psicológicas e médicas, políticas de proteção às liberdades de pensamento e informação, etc.

Do Pensamento à Fala, da Fala à Escrita – Complexificação Crescente

Embora haja estudos psicolinguísticos, neurolinguísticos, cognitivos, filosóficos, literários, históricos, acerca dos processos de formação do pensamento, da fala e da escrita, não se trata de assunto adstrito ao âmbito científico, haja vista que tais processos são experiências comuns, naturalmente vividas por todas as pessoas. Nesse sentido se, por um lado, pode ser difícil teorizar cientificamente acerca dos processos, por outro, são fáceis de entender, intuitiva e empiricamente, e de falar sobre. Ou seja, não é preciso ser um especialista para participar do debate.
Inicialmente, para definir melhor a discussão, é importante diferenciar duas expressões: pensamento e imaginação. Por 'imaginação' entenda-se a formação de imagens7 mentais, seja reproduzindo/reconstruindo o que já foi visto, seja criando imagens novas ou associando imagens diversas. Tome-se 'pensamento' como o processamento de ideias (imagéticas ou não), num diálogo mental interior com fins a alguma conclusão. Note-se que quando se fala no surgimento de imagens utiliza-se aqui os verbos “criar”, “associar”, “reproduzir”, “reconstruir8 ”, enquanto para pensamento utilizou-se “processar”, indicando um trabalho de transformação (neste caso amarrado, conforme será demonstrado, à linguagem).
Segundo VYGOTSKY (2002, pág. 3), os processos mentais são, até os dois anos de idade, desvinculados da linguagem e, a partir da sua aquisição, serão cada vez mais indissociáveis. Isso é regra, principalmente em relação ao pensamento: adquirida a linguagem, todo pensamento se realizará, necessariamente, por toda a vida do ser humano saudável, por meio dela ou a partir dela. A “conversa” mental se dará, discursivamente, utilizando a língua internalizada conhecida.
Kleist, no seu fragmento intitulado Sobre a Elaboração Progressiva dos Pensamentos Através da Fala (1805) descreve o paralelo pensamento/linguagem, como partes interdependentes:

As fileiras das ideias e seus nomes vão lado a lado, e são congruentes os atos emocionais para um e outro. A linguagem segue sem restrições, não como um freio da roda da mente, mas como uma segunda roda a ela paralela e contínua, rodando no seu [mesmo] eixo.” [tradução livre]. (KLEIST, 1805, pág. 3)9

Imagens são invasivas até durante o sono (sonhos) e em exercícios de “esvaziamento” como a meditação. Quase sempre puxam palavras (e vice-versa), evoluindo assim para o pensamento. Daí podem, ou não, vir a se tornar ato de comunicação exterior – momento que exige um trabalho mental específico de seleção e timing das palavras, bem como de adequação e reposicionamento diante das respostas (no caso da fala).
Conforme Vygotsky (2002, pág. 87), “Qualquer análise da interação entre o pensamento e a palavra terá de principiar por investigar os diferentes planos e fases que um pensamento percorre antes de se encarnar nas palavras”. Assim, faça-se uma graduação (rumo ao mais complexo) do processo que vai da imaginação à fala, e desta à escrita, nos seguintes momentos: imaginação, pensamento (organização e conclusões para si), pensamento sobre como dizer (tradução10 rápida do pensamento) ou pensamento sobre como escrever (tradução lenta do pensamento), exteriorização (fala ou escrita). Para clarificar tal ideia, ajudará explicar melhor cada etapa.
Imaginação, do latim imaginatĭo, é justamente a capacidade de criar imagens mentais11 , como dito anteriormente. É cinematográfica, mas fugidia, obnubilada e circular (sai e volta para o foco, às vezes se mescla ou se transforma a cada retorno) e nem sempre tende a alguma conclusão lógica. O cérebro busca preencher lacunas e comumente não o faz de forma coerente, cronológica, sequencial e para uma direção consequente. O maior exemplo são os sonhos, expressão mais vívida dos processos imaginativos: um rosto conhecido pode se tornar em outro sem que, no entanto, o sonhador deixe de reconhecer a nova representação como a da primeira pessoa; daí a pouco, esta pode se tornar um animal; a história pode tomar outro rumo absurdamente diferente do que vinha tomando ou voltar a algum ponto já ultrapassado e, frequentemente, o sonho acaba sem chegar a algum final coerente e lógico12 .
O imaginado pode surgir tanto sem como por estímulo. É menos dirigível do que o pensamento13, tanto que a mera suscitação da negação de algo traz à mente a imagem do negado. Pensar é submeter esse mailström14 a regras lógicas, linguísticas, discursivas, preferenciais, para se alcançar determinada conclusão.
A imagem não será externalizada, comunicada, se não submetida ao pensamento, que lhe dá um pouco mais de 'concreção' (um corpo exprimível), permitindo que seja traduzida para a fala ou para a escrita. Apresentar as diferenças entre esses dois trabalhos de tradução conduzirá para a validação da hipótese levantada no início do artigo.
A questão do pensamento para produzir a fala ou daquele para produzir a escrita pode ser resumidamente explicada fazendo-se a analogia com o trabalho das fibras musculares estriadas esqueléticas. As chamadas fibras de tipo IIb têm resposta rápida (explosão) e grande força, são de pronto emprego mas se esgotam rápido, não suportando esforços de longa duração. Já as fibras tipo I são de contração lenta e muito resistentes à fadiga, sendo apropriadas para exercícios de resistência15. Ambos os tipos de fibras estão presentes em todos os músculos estriados, mas fatores genéticos determinam o predomínio de umas ou outras em cada indivíduo, o que, em tese, imporia sua aptidão e facilidade para esportes de força ou de resistência. Neste ponto, cabe uma comparação com o cérebro humano que, embora não seja tecido muscular, também tem, em cada indivíduo, maior propensão, por exemplo, para o raciocínio lógico-matemático ou para o raciocínio discursivo. Seguindo esta linha de pensamento, sugere-se que algumas pessoas têm mais facilidade para a expressão oral, a fala – resposta rápida a estímulo imediato –, enquanto outras se expressam melhor por escrito, porque precisam remoer mais profunda e lentamente os pensamentos antes de externalizá-los com a clareza e exatidão que desejam (talvez esse desejo – autorregulação – seja marca deste grupo, e o que faz com que tenham certa limitação na comunicação falada, que exige resposta rápida).
Poder-se-ia argumentar que há quem se comunique muito bem tanto falando quanto por escrito. De fato, da mesma forma que existem atletas que têm bons resultados em provas de força e também nas de resistência, seja por efeito do treinamento ou por uma facilidade natural para as duas coisas. Mas, o que se afirma aqui é a propensão. As pessoas tendem a se polarizar em um lado ou em outro. Isso se exacerba e é mais notável nas atividades de alto rendimento. Se são muito boas correndo maratonas, não serão em tiros de cem metros. Se escrevem muito bem, provavelmente não serão tão boas debatendo ou discursando de improviso.
No ano 2000, em um seminário internacional realizado em Cortona16, na Itália, cientistas indicaram como provável época de surgimento da linguagem falada (embora salientem que não houve um momento único em todo o planeta) cerca 15 milhões de anos atrás. Contra cerca de 6 mil anos de escrita.
Sabendo que a evolução biológica humana se dá em contagem macro de tempo, a habilidade de fala já é, há muito, internalizada e, por isso, considerada “natural”, enquanto a da escrita ainda está em processo de “naturalização”. A fala surgiu de uma necessidade imediata de comunicação, enquanto a escrita foi desenvolvida para formar um repositório de memória (e precisa ser ensinada, a criança não a aprende livremente17 como a fala). Talvez tudo isso explique o porquê da dificuldade em se comunicar por escrito, comparado à fala (ainda que o texto permita mais tempo de raciocínio). Trata-se apenas de uma questão de adaptação evolutiva.
É importante, para as conclusões a que o artigo quer chegar, reforçar a questão da maior complexidade da escrita em relação à fala. Levando-se em conta que a fala é, grosso modo, uma tradução rápida da imaginação ou do pensamento em palavras, a escrita está pelo menos um nível acima em relação à complexidade: é a tradução da fala fabricada mentalmente mas não exteriorizada oralmente, que vai se demorar um pouco mais na mente, circulando por maior ou menor tempo, em um processo consciente e um pouco mais meticuloso de seleção e associação, para tentar sair redigida com a exatidão e o efeito desejados (e sob as regras próprias desse meio de expressão, que são diferentes das da fala). O processo mental para a escrita seria comparável, em complexidade, com um monólogo (embora seja possível argumentar que a comparação não é perfeita, precisando ser bem explicada nas diferenças, já que, muitas vezes ele – o monólogo interior – também ocorre, internamente, antes da fala, mas mais rapidamente):

A velocidade do discurso oral não se propicia a um processo complicado de formulação – e não deixa tempo para deliberações e opções. O diálogo implica a expressão imediata não pré-determinada. É constituído por respostas e réplicas: é uma cadeia de reações. Em comparação com isto, o monólogo é uma formação complexa dando ao seu autor tempo e vagar para uma cuidada e consciente elaboração lingüística. No discurso escrito, ao qual faltam os apoios situacionais, tem que se conseguir a comunicação por recurso exclusivo às palavras e suas combinações. (VYGOTSKY 2002, pág. 101).

Vygotsky (2002, págs. 99-101) acrescenta que, como no discurso escrito o tom de voz, os gestos, as expressões faciais – que podem dar significado diferente às palavras – não estão presentes, é necessário que se use muito mais palavras, de forma (escolha e colocação) muito mais exata, para deixar claro o sentido do que se quer dizer. “O espírito que transcreve é aquele que está sempre negando. Ele reprime a sensorialidade, relega o gesto e a palavra a um nível subalterno e solicita da audição interna um esforço sem precedentes de articulação e de discernimento.” (DUFOURT, 1997, pág. 10).
Sob outra perspectiva, psicossocial, talvez seja possível sugerir que as pessoas que têm maior facilidade de expressão por escrito, do que pela fala, são aquelas possuidoras de um mecanismo inibitório social mais sensível: ou temem que os interlocutores interpretem o que venham a dizer de forma errada ou, então, não têm autoconfiança suficiente para exprimirem-se sobre determinados assuntos sem um raciocínio mais demorado e cuidadoso.
Aquilo a que Robert Mckee, professor dos roteiristas de Hollywood, chama de “máscaras privadas” – os freios que impedem as pessoas de dizerem os pensamentos e sentimentos que lhes vêm à cabeça (e que ele afirma que se fossem expostos integralmente traumatizariam os outros) – provavelmente é mais limitante, intimamente, naqueles que optam pelo caminho mais complexo da escrita do que nos que se sentem mais confortáveis falando. O 'preço' da maior elaboração do raciocínio pelo escritor, processo mais penoso, seria compensado pela maior sensação de controle sobre o dito e sobre as possíveis interpretações que os outros poderiam lhe dar. Conforme Dufourt (1997, págs. 10-11), “[…] os artifícios da escrita conduzem a novos modos de pensamento. […] A pena faz uma limpeza. Ela reorganiza tudo. Escrever é eliminar. […]. A escrita permite criar um mundo que não deve mais nada nem ao conformismo, nem a espontaneidade [ou seja, à interpretação]”. Nesse sentido, “A mediação gráfica é o artifício supremo, a arte dos substitutivos. […]” (ibidem), substituindo gestos, sons, imagens, sentidos, de forma a controlar, mais do que é possível na fala, os efeitos e significados das palavras utilizadas.
“Não foi isso o que eu quis dizer”. Quem nunca disse ou pensou algo assim? Acontece porque são utilizados signos linguísticos para a comunicação (oral ou escrita), e eles são econômicos em sua representação. Está-se sempre à beira da ‘má’ interpretação. Quanto maior o repertório sígnico e seu domínio, maior a possibilidade de expressão mais exata, maior a especificidade. Mas a ‘boa’ interpretação, o ‘bom’ entendimento, dependerão também do repertório do destinatário (e de outros incontáveis fatores ideológicos, sociais, culturais, etc., que o influenciam).
Segundo Koch (1995), nenhuma expressão verbal (escrita ou oral) tem as informações completas para sua compreensão, sendo necessário que o receptor a relacione com o contexto e com suas próprias memórias para decodificar satisfatoriamente a mensagem. Assim, não é possível ao enunciador ou redator ter domínio total do significado. Se por um lado a fala tem, em relação à escrita, mais ruídos e perde na escolha minuciosa das palavras, por outro, a linguagem não verbal que lhe acompanha às vezes supre ou corrige, com vantagem, as faltas e falhas que levariam a significados dúbios. Talvez seja falsa ou superestimada a sensação de controle do discurso escrito.
Então, se as vantagens são discutíveis, o que estaria levando tantas pessoas a migrarem da preferência pela comunicação falada para a escrita, ainda que muitas delas sejam, aparentemente (de acordo com a norma padrão da língua), mal aparelhadas para sua utilização?
O preconceito linguístico é muito discutido e não tem lugar na sociedade que se apoderou do textual, o assumiu como seu e passou a aplicá-lo simbioticamente com os moldes da fala, a despeito das regras gramaticais da norma culta ou de qualquer norma que seja externa à prática dialogal. Este empoderamento18 democrático tem transformado os hábitos comunicacionais, principalmente na forma da expressão escrita.

O império do escrito: um paradoxo resultante do avanço tecnológico?


A linguagem dos smartphones e das redes sociais é fonética, baseada não só nos sons, mas nas regras da fala. Muito abreviada (fds, kkkkk, kbç, aki, qdo, vc, etc), despreocupada com a pontuação, com maiúsculas, possui recursos de ênfase e de sentimento (emoticons, trilha sonora, inclusão de vídeo ou imagem, etc.). Há um movimento de aproximação entre fala e escrita: de um lado a migração da fala para a escrita – esta, em tese, um artefato mais complexo – e, de outro, uma simplificação e coloquialização da escrita. Os usuários da língua adéquam suas maneiras de expressão com base nas situações encontradas, não se limitando a padrões absolutos (neste sentido, cf. BAGNO, 2007).
A primeira hipótese levantada no início do artigo, de que o deslocamento de preferência – da comunicação falada para a escrita – seria uma resposta natural à complexificação do mundo e das relações agora parece correta, embora evidencie uma lacuna sugestiva da necessidade de aprofundamento, em pesquisa de maior alcance, do que seja essa “complexificação”, do porquê da sua influência no processo aqui estudado. A justificativa de que o escrito, por permitir maior tempo e elaboração da expressão do que a fala, é forma mais conveniente para dar respostas nesta sociedade complexa, e de que o distanciamento físico entre as pessoas (característico da pós-modernidade) favorece o fenômeno, também são plausíveis, mas não concludentes. Além desses motivos, há outros possíveis, mais ligados aos meios, às fontes:
A propagação dos computadores e da internet teve, já nos primeiros anos da sua popularização, impacto enorme na sociedade, tanto que surgiram gerações definidas principalmente pela relação com essas tecnologias (gerações X, Y, Z...). É interessante notar que são tecnologias com as quais a parte ativa da interação19 é predominantemente via teclado, textual portanto. Dos computadores instalados em pontos fixos surgiram os portáteis – tablets, notebooks, iPad’s, smartphones, todos ainda com comandos de teclado (tradicionais, ou touchscreen20, ou até multitouch21). Em uma realidade que conta com 5 bilhões22 de celulares no mundo, para uma população de 7,5 bilhões23 de pessoas, sem falar nos outros aparelhos, fica óbvio que sua utilização tem transformado a forma de comunicação (bem como a aquisição de conhecimentos e a cultura) no mundo.
À utilização textual predominante (via vários tipos de teclados) das tecnologias, que interfere na relação das pessoas com a escrita, se juntam outros elementos psicossociais da pós-modernidade (em grande parte surgidos como consequência dessas tecnologias) que também empurram a comunicação para o meio escrito: a individualidade exacerbada, que rechaça o contato entre as pessoas; o gosto pela “virtualidade” das relações; a possibilidade de criar e alimentar uma imagem de si (criação e assunção de um personagem, glamorização, celebrização) que só pode ser sustentada à distância; a menor demonstração de sentimentos da mensagem escrita em comparação com a falada; a criação de “mundos fantásticos” insubsistentes às relações ‘reais’, etc.
Abrindo um parêntese, será tratada, nos próximos parágrafos, uma outra questão, mais abstrata, mas que traz aprofundamento do viés psicológico da preferência pela escrita:
Uma relação mais estreita pode ser criada entre os extremos imaginação e escrita. A chave está em um ponto médio (aparentemente não acessível a todos): no pensamento inventivo do criador de histórias ficcionais. Escrever ficções é criar imagens e tentar transportá-las ao leitor através do escrito. O pensamento atua costurando ligações coerentes, situando as imagens em um tempo e espaço ficcionais, trazendo linearidade para a narrativa, com o objetivo mais comum de se chegar a um iter com início, meio e fim (embora em uma chamada escrita de processo, em contraposição à de resultado, esta sequência não seja essencial, podendo até inexistir partes dela). A prática dessa escrita de ficção transforma o próprio mecanismo de imaginação, tanto que, no exercício de criar ficções, os sonhos (que são, em tese, o ápice da imaginação sem limites) também podem começar a ficar estruturados, passando a ter início, meio e fim, encadeados e lógicos24 .
Talvez, por esse tipo de expectativa de lógica, as pessoas tenham fascinação pelo cinema: as imagens (forma de percepção mais imediata) têm continuidade, linearidade e lógica temporal e espacial, começo, meio e fim (diferente do onírico). E não há ansiedade por desfecho, porque ele já está prometido. Há o Logos25 .
A segurança da lógica, de se chegar a uma conclusão com mais sentido, também parece ser maior na comunicação escrita do que na fala. Justamente porque o timing da escrita é diferente, sendo possível 'aparar arestas', reformular várias vezes, trabalhar o efeito, antes de entregar o que se quer dizer. E todos têm medo de como serão entendidos e do conceito que de si farão os outros, principalmente no caso da escrita, que é perene. Nesta sociedade da celebrização, a imagem tem um imenso valor pessoal. Deduz-se que este seja mais um motivo para a crescente valorização da escrita como meio de comunicação corriqueiro: embora mais complexa, em tese assegura, ou ao menos parece assegurar, maior controle da “representação do eu na vida cotidiana” (parafraseando Goffman). A mais provável contradição dessa hipótese é que a 'má escrita'26 (comum na comunicação mais descuidada do Whatsapp e das redes sociais) teria, possivelmente, efeito negativo na imagem que se quer criar ou destacar.

Considerações finais

São muitas as presunções aqui apresentadas, com o intuito de: 1º – demonstrar a maior complexidade da escrita em relação à fala; 2º – especular com raciocínio científico o porquê de, apesar disso, a escrita estar ganhando cada vez mais terreno em parte da comunicação interrelacional que antes era quase exclusivamente da fala. Para se chegar a uma argumentação lógica desses dois pontos é que se partiu do surgimento originário do pensamento (a partir da imaginação, que lhe é anterior) e demonstrou-se que, dele para a fala, há todo um processamento específico, do qual uma próxima etapa, a da escrita, se vale, em parte, para realizar sua própria organização, também específica, numa sucessão de eventos mentais particulares. Provado minimamente esse item, indicou-se hipóteses plausíveis para tentar explicar porque as tecnologias de comunicação têm alçado a escrita a uma parte do espaço dialógico que, até então, era preponderantemente da fala.
Trabalhou-se, inicialmente, a hipótese ampla de que a complexificação da comunicação – rumo ao impensável cenário de cada vez maior utilização da escrita, quando se achava que esta tendia a ser (com o advento das tecnologias da era da internet) cada vez menos empregada – responderia a uma complexificação das relações, entre as pessoas e delas com as máquinas. Esta hipótese parece, aqui nas conclusões, correta.
Como possível argumento a explicar a adoção crescente – apesar do maior trabalho mental de elaboração – da escrita em relação à fala, apontou-se a superior sensação de controle, pelo comunicador, do que apresenta por escrito, em relação àquilo que é dito. Porém, concluiu-se que essa suposta vantagem é discutível, já que mecanismos peculiares à fala (correções e substituições simultâneas de palavras em resposta às reações do enunciatário; a linguagem não-verbal dos gestos, silêncios, expressões; as ênfases, alterações de volume, velocidade, etc.) também podem ir burilando a interpretação a um resultado desejável pelo enunciador, em tempo real, no momento discursivo. Esta constatação levou à busca de outras possíveis explicações para o fenômeno da alegada crescente migração de preferência da comunicação falada para a escrita.
Uma delas sugere que o fato da interface com a maioria das tecnologias de comunicação atuais ser o teclado, obrigatoriamente utilizado por quem deseja acessá-las, tem interferido na relação das pessoas com a escrita, familiarizando-as com seu formato e naturalizando (até adaptando) sua utilização.
Apontou-se também elementos psicossociais característicos da pós-modernidade como estimulantes da comunicação por escrito: o individualismo, que reduz o contato pessoal ‘real’; as possibilidades de apresentar uma imagem virtual de si trabalhada como um personagem; a oportunidade de mascaramento dos sentimentos propiciada pelo escrito, sem interação cara a cara; a invenção de enredos e vidas irreais a partir de imagens e relações escolhidas e editadas com determinado objetivo.
Outra alegação foi a maior segurança em se alcançar uma conclusão lógica com a escrita (justamente por permitir ‘ruminar’ as ideias antes de apresentá-las), bem como a possibilidade de trabalhar melhor o efeito que se quer provocar no receptor com as palavras. O desejo de controle de como serão entendidos, de como serão julgados – em uma sociedade do marketing, em que a imagem pessoal é um capital – leva os indivíduos a preferir formas de se comunicar mais seguras, que não deponham contra a representação que pretendem ter socialmente.
Diante do que foi apresentado, é certo dizer que o fenômeno estudado advém de um conjunto de elementos, parte de uma transição cultural, não de uma evolução natural27 . Por causa do apelo imagético e sonoro, a maior apropriação da escrita parecia algo inesperado quando as tecnologias relacionadas à internet surgiram. Aqueles que cogitavam o fim do livro também vaticinavam que os jovens estavam se afastando irremediavelmente da escrita. Mas isso não se confirmou, tanto os livros continuam vendendo muito, seja no formato físico ou digital, como nunca se escreveu tanto (inclusive livros, coisa que prova a adaptabilidade das gerações on-line).
É fato que a comunicação é cada vez mais textual. Entender esse processo ajuda na compreensão do mundo e das relações. As tecnologias ainda vão alterar muito o comportamento das pessoas e pode até ser que outra reviravolta, como a ocorrida com o surgimento do computador, da internet, do aparelho de telefonia celular, dê novos rumos para a comunicação e destino humanos. Por enquanto, ter consciência do valor do textual é participar lucidamente, e de forma mais ativa, das oportunidades do império do escrito.

Notas:

1 Juliano Barreto Rodrigues é Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento (PUC-GO); especialista em Direito Penal (UFG), Análise Criminal (FASEM), Direito Privado (FESURV) e Direito Processual (FESURV); pós-graduando em Assessoria de Comunicação e Marketing (UFG) e em Português, Língua e Literatura (METODISTA – SP); graduado em Direito (PUC-GO). Autor publicado e criador do blog de criação literária Coletivo sem Ponto (<www.coletivosemponto.blogspot.com>). 

2 "Sociedade da sensação", ou “sociedade excitada” (TÜRCKE, 2010), faz referência ao momento histórico atual, caracterizado pelo espetacular, o chamativo, pela hiperestimulação sensorial através das tecnologias, que agem psicologicamente como drogas anestesiantes a afastar as pessoas de sua situação concreta. 

3 Genericamente tratados, seja letra impressa ou escrita cursiva. 

4 Na verdade a gratuidade é do aplicativo, mas o utilizador precisa ter acesso a internet e, obviamente, também um aparelho que sirva de suporte ao software

5 No sentido de ter que dispender qualquer esforço deliberado para se adaptar. 

6 Não significando aqui o antônimo de “naturalmente”, mas sim no sentido de expediente habilidoso, artifício facilitador. Neste caso, a utilização do artifício é não deliberada, mas evolução natural (simples utilização de ferramenta intuída como mais útil e oportuna para o momento histórico). 

7 Quando se fala “imagens” também se está referindo, para além do visual, a lembranças ou criação de sons, referências olfativas, táteis e gustativas. 

8 O que pressupõe a possibilidade de acrescentamentos ou modificações. 

9 Do original: “Die Reihen der Vorstellungen und ihrer Bezeichnungen gehen nebeneinander fort, und die Gemütsakte für eins und das andere kongruieren. Die Sprache ist alsdann keine Fessel, etwa wie ein Hemmschuh an dem Rade des Geistes, sondern wie ein zweites mit ihm parallel fortlaufendes Rad an seiner Achse.” 

10 No sentido de descrição, explicação, reflexão. 

11 Daí, também, a sua relação com “criatividade”, que seria a capacidade de criar a partir da combinação de imagens ou ideias. Mas aí, de acordo com o significado restrito de imaginação e pensamento que foram adotados neste artigo, a criatividade estaria englobada no âmbito dos pensamentos (caracterizados pela imaginação processada pelo diálogo psicológico interno do criador). 

12 Na imaginação, como no sonho, identifica-se o ethos, elemento de credibilidade (porque parte do próprio imaginador/sonhador, que pode ser comparado ao enunciador de um discurso), mas nem sempre se identifica o pathos (paixão, efeito) e o logos (lógica). 

13 Artistas são, ao que parece, mais familiarizados com a materialização onírico-concreta, sendo capazes de dirigir um pouco mais a imaginação e enfeixá-la (ou antes traduzi-la) em algo materializado. 

14 Turbilhão líquido. 

15 Cf. SANTIAGO, Renato. Os tipos de músculos e as fibras musculares. Hora do Treino [site]. 9 de maio de 2018. Disponível em: <https://horadotreino.com.br/os-tipos-de-musculos/> . Acessado em 30 de maio de 2018. 

16 Cf. DA REDAÇÃO. Como, quando e porque o ser humano começou a falar? As mais recentes respostas contam uma história apaixonante, que começa com um pequeno comedor de insetos. Super Interessante [site]. 31 de dezembro de 1988. Disponível em: <https://super.abril.com.br/comportamento/palavra-de-homem/>. Acessado em 17 de julho de 2018. 

17 Generalização conceitual. Sabe-se que nem a fala surge “do nada”, sem um aprendizado por imitação, que pode ser considerado um processo de ensino, fragmentário, sem método e informal, mas, ainda assim, uma forma de ensino. 

18 Termo da moda, empregado aqui com o sentido de o sujeito atribuir-se o domínio, o poder de algo. 

19 Talvez seja um termo inexato, por remeter à ideia de relação entre organismos vivos inter-relacionados, pessoas. 

20 Tela sensível ao toque. 

21 Diferentes toques na tela executam diferentes funções. 

22 Segundo um estudo realizado pela associação global de operadoras (GSMA) e divulgado em 27 de fevereiro de 2017, no Congresso Mundial do Celular em Barcelona. Cf: <https://oglobo.globo.com/economia/mais-de-cinco-bilhoes-de-pessoas-terao-celular-em-2017-20988439#ixzz4kaRkKxiQ>. Acessado em 20 de jun. 2017. 

23 Conforme o “Relógio da População Mundial”, disponível em: <http://countrymeters.info/pt/> . Acesso em 20 de jun. 2017. 

24 A afirmação se baseia em experiência pessoal do autor do artigo, na sua vivência escrevendo narrativas ficcionais. É hipótese que depende de pesquisas para ser comprovada e adquirir generalidade científica. 

25 Ethos, Pathos e Logos - formas retóricas de apelo persuasivo articuladas por Aristóteles. Ethos apela à ética, Pathos às paixões e emoções, Logos à lógica. 

26 Termo controverso. Cabível aqui somente por ser o comumente utilizado pelo leitor médio para classificar e criticar o texto que foge flagrantemente de alguns padrões que reconhece para a escrita, ainda que coloquializada. 
 A expressão “leitor médio” também é relativa, sem definição científica objetiva. Designa, em comunicação, o leitor que não é especialista em algum gênero, nem é autor, nem tem – em regra – profundos compromissos literários de interpretação, estéticos e/ou críticos nas leituras que realiza.

27 Talvez seja interessante tratá-lo como resultante de uma evolução artificial.


REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007. 

DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano. Mem Martins Publicações Europa-América, 1995. 

DUFOURT, Hughes. O Artifício da Escrita na Música Ocidental. Debates – Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música. Nº 1, 1997. Centro de Letras e Artes Uni-Rio.

KLEIST. Heinrich von. Über die Von der allmählichen Verfertigung der Gedanken beim Reden (Sobre a Elaboração Progressiva dos Pensamentos Através da Fala), 1805. Disponível em: <http://pubman.mpdl.mpg.de/pubman/item/escidoc:2352284/component/escidoc:2352283/Kleist_1> . Acessado em 07 jun. 2017. 

KOCH, Ingedore G. V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1995. 

TÜRCKE, Christoph. Sociedade Excitada: filosofia da sensação. Tradução: Antônio A. S. Zuin... [et al]. Campinas: Ed. Unicamp, 2010, 323 p. 

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. 2002. Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org). Acessado em 20 jun. 2017. Disponível em: <http://www.institutoelo.org.br/site/files/publications/5157a7235ffccfd9ca905e359020c413.pdf>.
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