O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Resenha de "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón





A SOMBRA DO VENTO – Livro de Carlos Ruiz Zafón
Resenha

                                                     Juliano Barreto Rodrigues

Um dos melhores livros que já li.

O título, que não antecipa ou sugere o enredo, é um substantivo próprio: o nome de um livro dentro da história. É ambíguo e dá ideia de fluidez, irrealidade, sonho, fugacidade. Diferente, provoca no leitor a tentativa de criar mentalmente uma imagem impossível: a sombra do vento. Dessa impressão confusa surge a força do título, aguçando a curiosidade e estimulando a leitura.

É o primeiro de quatro livros (aclamado, já passou de 6,5 milhões de unidades vendidas desde o lançamento em 2001, segundo a Wikipédia), que têm a característica de poderem ser lidos de forma independente, porque cada um tem enredos com começo, meio e fim, embora trabalhem as mesmas personagens. Minha intenção inicial era ler só o primeiro livro mas, antes de terminá-lo, adquiri os outros três.

São 464 páginas absolutamente necessárias, numa edição primorosa da Suma das Letras (hoje SUMA), selo do Grupo Companhia das Letras.

Produzida por Cláudia Espínola de Carvalho, a capa é linda, um destaque. Figurativa, enquadra pai e filho apressados rumo a algum lugar, que a sinopse na quarta capa indica como o Cemitério dos Livros Esquecidos. As duas figuras são emolduradas por um cenário nebuloso e frio, totalmente condizente com os descritos no livro – neste sentido, ecoam no texto as palavras “vapores”, “azul” ou “azuis” (até a repetição ficar meio excessiva) e “ocre”. Talvez outro capista, que não tivesse lido o livro, pudesse ter usado a imagem de uma livraria antiga, mas Cláudia Espínola teve a sensibilidade de apresentar o recorte de uma emoção: a expectativa da criança por conhecer aquele lugar mágico.

A ideia de um Cemitério dos Livros Esquecidos, onde são guardados os últimos exemplares de obras que estão se extinguindo é, por si só, preciosa a todos os amantes de livros. O tema prende, a velocidade da trama é constante, há altos e baixos perfeitamente conectados, os efeitos causados no leitor parecem milimetricamente calculados.

Quem conhece o Cemitério dos Livros Esquecidos escolhe e se torna responsável por um livro, que lido, continua vivo. Daniel Sempere conhece, ainda criança, aquela “Ordem” misteriosa, levado por seu pai. Lá “adota” um livro chamado A Sombra do Vento. Obcecado por ele procura, primeiro, por outras obras do autor, depois, pelo próprio escritor, que sumiu em circunstâncias obscuras.

Uma sinistra figura também está à caça dos últimos exemplares dos livros de Julián Carax. Quando encontra algum, o queima. Quem atravessa seu caminho corre perigo. Esse ser sombrio tem ligação com as pessoas e com os acontecimentos dramáticos descritos naquele livro, por isso o persegue. Daniel Sempere quer descobrir quem é ele e porque tem tanto ódio por Carax e seus livros. Mas os riscos são enormes.

Passado na Barcelona de meados do século XX, “A Sombra do Vento é sobretudo uma história trágica de amor, cujo eco se projeta através do tempo. Com uma grande força narrativa, o autor entrelaça tramas e enigmas […] num inesquecível relato sobre os segredos do coração e o feitiço dos livros, numa intriga que se mantém até a última página” (excerto da quarta capa).

O público-alvo é o leitor amante da escrita ficcional, dos livros, das livrarias, do mundo dos escritores, embora qualquer pessoa que goste de aventura, tragédia e romance terá ali entretenimento de primeira qualidade. 
 
O livro fictício A Sombra do Vento é tratado como um “romance para romancistas”, aquele tipo de obra de excelente qualidade mas que não alcança o leitor médio (pelo tipo de linguagem ou pela profundidade das divagações, etc.). Esta tragédia editorial não deixa de ser uma crítica e uma lição para quem escreve.

Para mim, a personagem mais marcante é Fermín Romero, o velho cheio de histórias e experiências de vida, munido de aforismos e conselhos certos (alguns engraçados) para todo tipo de situação. Sofrido mas forte, coadjuva com o protagonista Daniel Sempere, como um fiel escudeiro.

O enredo tem – sem faltar nada – tudo que marca as melhores ficções: tragédia; amor; violência; mistério; morte e vida; sucessos e fracassos financeiros; personagens verossímeis; diálogos marcantes; encontros e rompimentos; tempo histórico bem definido (que facilita imaginar a sucessão de acontecimentos); ambientação bem narrada; cenas construídas só com os detalhes que importam (sem excessos nem faltas); tessitura do enredo sem brechas; uma prosa simples sem ser simplória, clara, mas, ainda assim, formal; algumas frases aforísticas muito boas; o tema “grande”, no sentido de atemporal, válido para além do recorte escolhido para a ocorrência da trama, bem como para além dos leitores da época em que o livro foi lançado; contém grandes lições metafísicas – mas dentro da concreção dos fatos ocorridos com os personagens, de modo que as transcendências nascem da capacidade de divagação do leitor analisando as situações – sem advirem de narrações professorais pedantes; capítulos nem tão curtos nem tão longos; estrutura impecável. Ou seja, é um clássico inato, com todo o arsenal para hipnotizar o leitor e fazê-lo submergir nas imagens em movimento (as palavras são, no bom sentido, quase invisíveis, um instrumental a serviço do fluxo das sequências).

Acompanhamos parte do crescimento de Daniel Sempere, suas descobertas: do amor, com a frustração e outros perigos; da violência; das responsabilidades e outras coisas graves da vida. É interessante a relação de cumplicidade que tem com o pai e também a parceria construída com Fermín, um homem bem mais velho do que ele. Acompanhamos o desenvolvimento de Daniel, que se torna um homem decidido e corajoso.

Várias vezes me peguei tampando parte da página com a mão para não cair na tentação de ver, nem com a visão periférica, a solução de um suspense nas linhas seguintes (os olhos teimavam em escorregar para lá, por causa da expectativa).

O final do livro é parecido com os finais de novela de TV: nos últimos momentos todos os acontecimentos, referentes a todas as personagens, se resolvem, para um "the end" quase literal.

Distingue-se a excelente revisão textual (só vi um erro de concordância, por volta da página 280). Sendo um volume relativamente grosso, o manuseio é facilitado pelo tamanho da impressão. Colaboram para a boa leitura a escolha tipográfica da fonte Capitolina Regular, o bom tamanho das letras e localização da mancha de texto (com margens adequadas e ótimo espaço entre as linhas). Também realço a escolha do papel Pólen Soft (da Suzano), de textura, brilho e cor bem agradáveis.

O livro é o resultado de uma arquitetura perfeita, funcional e bela. Fica evidente que foi pensado e planejado pelo autor e teve um primoroso trabalho de edição e desing. Sobram adjetivos para qualificá-lo. Meu escolhido é “imperdível!”.



ANEXO

Carme Font Paz – doutora em Filología e profesora de Literatura Inglesa na Universidad Autònoma de Barcelona, tradutora, escritora, leitora editorial profissional, especialista nas origens da escrita feminina na Europa, coordenadora de varios cursos em escritores.org – avaliando minha resenha, enviou um ótimo feedback, que gostaria de compartilhar, juntamente com a resposta que enviei:

Has escrito una reseña más integrada y menos técnica en la que aparece una descripción general de la trama, la temática y los personajes de la obra. Además, dejas entrever la fusión entre autor y texto. Mi única objeción es que tu argumento crítico parece unidireccional y bastante positivo. Das a entender que se lee de un tirón y que Zafón es hábil con la escritura y la caracterización de los personajes. Pero ¿esta obra no adolece de ningún defecto? ¿Qué aspecto negativo o poco recomendable resaltarías de ella (aparte del desenlace fácil al final del libro) ¿Te parece una obra de ficción para niños o se dirige también a adultos? Debido al éxito de ventas que obtuvo, ¿cuál dirías que es la clave de su originalidad y de su complicidad con el lector?”

Diante dos comentários da professora Carme, respondi o seguinte:

Realmente me entusiasmé con la obra (y de una forma muy diferente de lo que ocurrió con La otra vuelta de la tuerca, por ejemplo, que admiro pero no me gustó). Me encantó el libro de Zafón. Motivo de haber argumentado tan positivamente. Fue una reseña pasional, con el fin de convencer a quien quiera que sea a leer el libro. No consideré el desenlace fácil del final del libro un defecto. Creo que es una gran solución para una tetralogía que pretende que cada libro pueda ser leído de forma independiente, sin que el libro anterior sea un requisito previo obligatorio. Para ello funcionar, cada libro debe tener una trama independiente con comienzo, medio y fin bien delineados. No clasifico la novela como infantojuvenil, hasta porque no sé si la velocidad de la narrativa (y tal vez la cantidad de páginas y también el hecho de ser una tetralogía) agradaría a ese público, ávido por soluciones más rápidas. Creo que el éxito de ventas se dio justo 1) por el "cebo" perfecto para los amantes de los libros - la historia del Cementerio de los Libros Olvidados y la trama siguiendo la línea principal de suspense en relación a un libro misterioso; 2) por la forma simple de contar una buena historia, con comienzo, medio y fin bien definidos, sin experimentalismo; (3) por alcanzar "griegos y troyanos", presentando elementos para todos los gustos: violencia, pasión, ruina, revertérios, suspense y misterio, relaciones familiares, miedo, tensión, ambientes bien construidos, buenas y óptimas escenas, etc.

Para mí el secreto fue éste: Zafón cogió la fórmula antigua, ya probada y con la eficiencia comprobada y, sin arriesgarse mucho, contó una buena historia. Recuerdo muy bien cuánto deseé que otro libro, El comerciante de inicios de romance (de Matei Visniec), un libro con una idea muy buena pero una escritura muy experimental, hubiera sido escrito por Zafón y no por Visniec. Me gusta ciertos excesos, ya considerar que "menos es aburrido", pero estoy obligado a admitir que, en muchos casos (en este em particular) "menos es más".

¿Quién no piensa en los libros que nunca va a leer? Y más, en aquellos a los que nunca tendrá acceso? Y en aquellos que fueron quemados por los diversos regímenes radicales? ¿Y en los agotados? Un Cementerio de los Libros Olvidados, donde ejemplares amenazados de extinción son preservados, es un deseo (consciente o inconsciente) reprimido por todo y cualquier ávido lector. Junte ese "leitmotiv" a una lucha de defensa específica a un libro que quieren quemar a toda costa, y ya se tiene la promesa de una gran historia. Y Zafón la contó con maestría. Tal vez yo haya pecado por haber sido tan rápidamente convencido de eso, pero siempre soy sincero. Voy a tratar de ser menos ingenuo y leer (y escribir) de forma más sentimental, en el sentido dado por Schiller y por Orhan Pamuk.”