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terça-feira, 15 de janeiro de 2019

"A outra volta do parafuso" ( La vuelta de la tuerca ) - resenha crítica


A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO
Resenha Literária


Por Juliano Barreto Rodrigues.


Quando eu sou mau, eu sou mau mesmo!”
Frase de Miles, na pág. 87.



JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. Tradução de Paulo Henriques Britto; posfácio de David Bromwich – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. 199 págs.

Publicada pela primeira vez em doze partes, na revista Collier’s Weekly, no ano de 1898, e reeditada inúmeras vezes, A Outra Volta do Parafuso se tornou um clássico das histórias de fantasmas, tendo sido adaptada para o cinema mais de vinte vezes1.

Do método de análise

Gosto de analisar um livro individualmente, sem levar em conta, até o momento da resenha, a importância histórica da obra, seu contexto no mundo literário, o status do seu autor. Isso para tentar realizar um juízo de valor o mais isento possível, focado na qualidade do texto em si, como quem estivesse julgando a qualidade de um escritor de primeiro livro.
Eu nunca havia lido nada de Henry James, nem visto qualquer adaptação do romance para o cinema. Embora já soubesse da importância literária do autor, tentei deixá-la de lado durante a leitura e interpretação, e fiz questão de não ler – até o momento de finalizar a resenha – qualquer biografia dele, nem resenhas ou ensaios sobre a obra (a fortuna crítica disponível é imensa). Tudo para não me contaminar com qualquer impressão de antemão, predisposição ou pré-julgamento.
Adianto que esta resenha não se dirige a quem ainda vai ler o livro. É que trato de especificidades e miudezas que só quem interpretou o texto vai aproveitar a contento. Advertência feita, vamos a analise.

Título

O título é incrível, provoca aquilo de mais importante que um bom título de ficção deve provocar: curiosidade. “A outra volta do parafuso” pode ser qualquer coisa, é um enigma, um título de interpretação absolutamente subjetiva. Não é o parafuso, concreto, que importa aqui, e sim “a outra volta” (abstração), que pode conotar inúmeros sentidos. No decorrer do texto um significado é sugerido.

Enredo 
 
Já é um spoiler frustrante, trazido na quarta capa, a informação de que é história de fantasmas. Como eu não tinha lido nada sobre o livro, nem sequer tal sinopse, só fiquei sabendo que tocava o sobrenatural no terceiro capítulo, o que deixou tudo mais interessante. Eu preferiria classificar o gênero como um thriller psicológico, nem terror nem mistério, embora exista um pouquinho de ambas as coisas.
Uma professora de vinte anos (cujo nome nunca é dito), caçula de um pobre pároco do interior e saída de um presbitério em Hampshire, vai a Londres por conta de um anúncio de emprego. Ela deveria trabalhar como governanta em Bly, uma velha mansão campestre em Essex, administrando a casa e, principalmente, cuidando de duas crianças órfãs, sobrinhas de um rico cavalheiro solteiro, que as queria bem, mas longe dele. Havia a condição de “Que ela não deveria nunca incomodá-lo – nunca, jamais: nem apelar para ele, nem reclamar, nem escrever-lhe a respeito de qualquer assunto; teria de enfrentar todos os problemas sozinha, receber todas as remessas de dinheiro do advogado dele, assumir toda a situação e deixa-lo em paz.” (pág. 15). Apesar de temer a responsabilidade, ela aceitou.
Chegando em Bly, ficou deslumbrada pelo lugar e pela menina Flora. O irmãozinho dela, Miles, chegou dias depois, expulso (por misteriosos motivos) do internato em que estudava.
Encantada com as crianças e contando apenas com a companhia delas e da Sra. Grose, empregada da casa e preceptora de Flora, a jovem governanta parece sempre desconfiar da tamanha perfeição de tudo – do lugar perfeito, das crianças sem defeito, do emprego maravilhoso etc. – e a cultivar temores alimentados por suas próprias insegurança e solidão. Até que... algo inesperado acontece: começa a ver os fantasmas da governanta anterior e de outro empregado de Bly.
Acreditando que as crianças são o motivo das aparições, e crendo que elas não só veem, mas também se comunicam secretamente com os fantasmas, teme por elas e se dispõe a fazer tudo para protegê-las contra a influência corruptora. Tem como única aliada a simplória Sra. Grose.
Desse modo, a narradora-personagem passa a considerar o lugar ruim para seus pupilos; eles próprios como coniventes, manipuladores e ocultadores da situação, “tão cândidos e condenados”, como diz na páginas 70-71; o tio (por quem se encantara) como omisso; ela própria como a possível ‘salvadora’. Daí, o enredo é a narração de suas desmedidas.
É uma história de fantasmas (e o texto só revela isso na página 47), mas que diz bem menos do que se espera. Deixa mais dúvidas do que certezas. Fato é que a governanta atribui aos espectros intenções e influências ruins, mesmo sem jamais terem se comunicado e, na luta contra tais fantasmas, é a única que efetivamente acaba causando mal comprovável às crianças.
Cada aparição – são oito no total – retroalimenta o efeito das anteriores (embora o impacto da quebra com o natural, da primeira aparição, seja o mais relevante) e vai aumentando a tensão pouco a pouco, construindo um clímax inevitável. Ele acontece no fim do livro, mas bem poderia ser o “nó” mais importante da trama, a partir do qual as coisas se esclareceriam e a situação de todas as personagens se definiriam. Mas não é: é apenas o fim da narrativa, deixando ao leitor a tarefa de imaginar um milhão de coisas e de tomar suas próprias conclusões sobre tantas situações mal explicadas ou nem explicadas.

Estrutura

Há um prefácio não titulado em que um narrador ou narradora (o texto não define) apresenta, em primeira pessoa, a cena de pessoas reunidas contando histórias de terror numa casa velha, no Natal. O narrador(a) participante se vale do personagem Douglas (protagonista, nesta primeira parte) para criar a atmosfera, predispondo o leitor para o gênero e introduzindo o tema, que será a leitura de um manuscrito antigo, confiado a Douglas há décadas, pela governanta de sua irmã.
O primeiro parágrafo é longo – como são os inícios de outros 19 capítulos, de um total de 24 mais o prefácio – e dita a tendência geral do texto todo, em preferir muitos parágrafos longos e poucos diálogos.
São duas narrativas: a do prefácio, preparando para contar outra história, e esta segunda narrativa. Cada uma tem um narrador-personagem. Nem na primeira e nem na segunda são ditos os nomes dos narradores e, na primeira, nem se é homem ou mulher. A forma das narrativas é linear, sem digressões nem flashbacks (embora a segunda se refira a acontecimentos ocorridos há 40 anos no passado, não se trata de flashback, narrativamente falando).
O problema das duas narrativas consiste na coincidência de estilo. Se são narradores diferentes, espera-se, para o bem da verossimilhança, que contem suas histórias de formas diferentes, haja vista que cada pessoa tem sua “voz própria”. E isso deveria ser ainda mais evidente em se tratando de narradores participantes, falando em primeira pessoa. Mas não, os dois enredos tem características idênticas, abusam da adjetivação como responsável pela criação de um efeito de suspense, e mais, praticamente dos mesmos adjetivos e advérbios. Outras coincidências serão apresentadas, mas façamos uma análise da primeira narrativa:

1ª narrativa

O primeiro parágrafo, abundantemente adjetivado, como já disse, traz a caracterização do ambiente em que uma história de terror está sendo contada, e o traz para a proximidade psicológica dos presentes: uma “casa velha semelhante àquela em que estávamos”. É um belo recurso de imersão. Este primeiro parágrafo é eficiente em provocar curiosidade, que cresce rapidamente nos parágrafos seguintes, “fisgando” o leitor (na segunda narrativa o crescente de suspense e curiosidade já é bem mais lento, já que “o peixe não vai mais largar a linha”).
Prometendo uma narrativa mais aterrorizante do que aquelas que estavam sendo contadas na ocasião, Douglas comenta que o fato de um fantasma ter aparecido a uma criança dá um toque especial à história do fantasma de Griffin, contada pouco antes. E provoca: “Se uma criança dá ao fenômeno outra volta do parafuso, o que me diriam de duas2 crianças?” (pág.8). A “volta do parafuso” passa a significar, nesse e em outros momentos do texto, um toque mais dramático.
A existência de outras pessoas em redor da lareira tem função importante para evocar o clima. O narrador, sendo personagem, pode opinar como ente bem mais concreto do que um narrador não participante, e ainda conta com diálogos para inserir outras pontos que poderiam ficar deslocados ou distantes na voz de um narrador espectador, por exemplo. A escolha do autor foi pertinente, nenhum pouco aleatória. Funciona.
A cena é bem criada, Douglas adia o momento de contar a história (e voltará a fazê-lo), frustra os ouvintes, aumentando o suspense, dizendo “Não posso começar. Vou ter de mandá-la buscar na cidade.” [...]. “A história está escrita.” (pág. 8). Ele dirige a expectativa.
Na hora de falar do manuscrito que lerá, Douglas valoriza sua antiguidade e dá carga dramática ao documento: “Está registrado numa tinta velha e desbotada, e na mais bela das caligrafias”. [...]. “Letra de mulher. Ela morreu há vinte anos. Foi ela quem me enviou as páginas em questão antes de morrer.” (pág. 9).
Em seguida, respondendo à pergunta do narrador(a) sobre o motivo da coisa ser tão assustadora, Douglas toma-o(a) como cúmplice, olhando-o(a) fixamente e dizendo “Vocês vão entender”, [...]: “Você vai entender” (pág. 10). Este também é um artifício para nos envolver. Assim, trabalha a expectativa das personagens, especialmente do(a) narrador(a), de maneira a formar reflexo em nós leitores. De repente, o(a) narrador(a) prenuncia para as outras personagens (e para nós): “[...] todos concordaram comigo que, depois disso, nada mais atrairia nossa atenção" (pág. 11).
O(A) narrador(a) enfeita um pouco mais a história se valendo de algo que vai permear toda a narrativa (a morte) dizendo que a conta tempos depois, a partir de uma transcrição exata que fez, após Douglas ter morrido, após ter lhe confiado, em vida, o manuscrito.
Alguns hóspedes haviam ido embora e, na quarta noite após a promessa da história, sua partida “[...] teve o efeito de tornar seu público final ainda mais compacto e seleto, de mantê-lo, em torno da lareira, submetido a uma emoção comum” (pág. 12). Parece que o(a) narrador(a) está resumindo a situação deles e excedendo-a para a nossa, de leitores, supostamente já cativados nesse momento, cooptados, sintonizados e predispostos, afinados com o desejado estado de espírito (a “emoção comum”, de que falou).
É feito um prólogo daquilo que será contado a partir do Capítulo 1, contextualizando o tempo e espaço da próxima pessoa a narrar, quem era, como chegou no lugar da ação, quem a contratou, a quem substituiria, com quem conviveria etc. Nesse ponto, ainda no prefácio, a caracterização das personagens e ambientes é econômica, certeira. Os diálogos também são econômicos, servindo para dar ação, conferir credibilidade ao que está sendo contado, bem como para situar o leitor na cena de uma contação de histórias.
Muito interessante é a “presença” furtiva do autor que se imiscui metaliterariamente para enaltecer, sutilmente e sem aparecer, a importância de um título apropriado para as histórias:
 
A narrativa acabou levando mais de uma noite, mas na primeira delas a mesma senhora fez outra pergunta. “Que título deu a ela?”
Não tenho um título.”
Ah, mas eu tenho!”, disse eu. Porém Douglas, sem me dar atenção, já havia começado a ler, num belo tom límpido que era como uma tradução sonora da esmerada letra da autora. (Págs. 15-16).

O prefácio sintetiza todas as estratégias de escrita e persuasão da segunda narrativa (com exceção do final do livro), constituindo-se, por si mesmo, num delicioso objeto de análise de técnicas narrativas.

2ª narrativa

O que foi dito sobre a economia na caracterização das personagens, na descrição de ambientes, nos diálogos etc., continua da mesma forma aqui. Em certos momentos tal economia é favorável, noutros, desfavorável à trama. Os inícios dos capítulos têm, na sua imensa maioria, parágrafos longos, a adjetivação é intensa e repetitiva, a construção de efeitos é idêntica à da primeira narrativa, embora mais lenta. É o que eu havia apontado antes: um e outro narrador narram exatamente da mesma forma, o que “tira tinta” da verossimilhança, também dolorosamente abalada pelo fato da narradora estar relatando sua experiência pessoal mas parecer uma narradora onisciente quando se mete a falar das sensações das crianças. É o caso da observação “A única coisa que ele sentiu foi uma surpresa pequena e desagradável” (pág. 155), feita sobre Miles durante uma conversa que tiveram. Esse tipo de conclusão extrapola as possibilidades de sua narrativa participante, de quem escreve um diário ou uma missiva, e que, para ser crível, não deve elucubrar sobre pensamentos e sentimentos alheios que ela, na vida real, na condição de personagem, de participante, não teria condições de saber.
Outro exemplo que atenta contra a verossimilhança pode ser visto no trecho “Enrubesci, no instante seguinte, quando percebi no rosto de minha amiga... [...]” (pág 69). Aquele “enrubesci” não deveria estar em um relato escrito da governanta. É um detalhe que um interlocutor poderia ver, não a própria narradora. Se ela tivesse dito, por exemplo, “Lembro-me de sentir meu rosto arder”, seria menos ruim.
Apresento um exemplo da adjetivação e da excessiva repetição (quase todo adjetivo é repetido mais uma vez no mesmo parágrafo ou, no máximo, no seguinte):

A senhora ficará deslumbrada com o pequeno cavalheiro!”
Pois bem, creio que é para isso que estou aqui – para me deslumbrar. Devo confessar, porém”, lembro que um impulso me levou a acrescentar, “não é nada difícil me deslumbrar. Já me deslumbrei em Londres!” (Pág. 20. Sem sublinhado no original).

Eu não faço parte da polícia contra adjetivos na literatura. Pelo contrário, eu gosto deles, mas o excesso – até do melhor perfume do mundo – dá dor de cabeça. Em A outra volta do parafuso não só há adjetivos de mais, como suas escolhas são bem exageradas. Dois exemplos que “gritam” no texto são as palavras ‘extraordinário’ e ‘horrível’ (com todas as suas variantes: horrendo, horroroso etc.). A primeira se repete tantas vezes, e se trata de uma palavra tão extraordinariamente grande e impressiva, que se torna um eco em todo o texto, simplesmente é impossível não tomá-la como um cacoete do autor. E há também muitas frases exuberantes de mais, do tipo “Eu fora levada às alturas por uma grande onda de fascínio e piedade” (pág.29), mas dá para entender tais escolhas como recursos para situar psicologicamente a narradora em sua tendência superlativa (ruim é que, lá no prefácio, com outro(a) narrador(a), são utilizadas construções semelhantes).
É possível notar, em algumas passagens, uma escolha deliberada de palavras específicas para aumentar o efeito pré-clímax. Exemplo: a governanta falava recorrentemente em medo, até que, lá na página 49, substitui-o por “pavor”.
Na página 95, no meio do livro, a governanta vai além do jogo de palavras para aumentar a carga dramática, e então transforma a imagem do cenário, narrando a mudança de estação, do verão para o outono, deixando o lugar
 
[...] com seu céu cinzento e grinaldas murchas, seus espaços esvaziados e folhas secas espalhadas, era como um teatro após o espetáculo – todo coberto de programas amassados. Havia no ar os exatos estados, condições de som e silêncio, impressões indizíveis da espécie de momento propício, que me traziam de volta à consciência, pelo tempo suficiente para que eu a apreendesse, a sensação do meio em que, naquela tarde de junho ao ar livre, pela primeira vez eu tivera uma visão de Quint, [...].

O Capítulo I começa com a descrição de sensações sem, no entanto, esmiuçá-las. Há uma das raras alusões a cores (Cf. final da pág. 17). O texto chama a atenção para a diferença de classes sociais, intensificando as contradições entre o mundo que a governanta conhecia e aquele novo que se lhe apresenta.
O texto é muito restrito aos sentidos da visão e da audição. Pouco trata do tato e, muito menos ainda, do olfato. Mais descrições sensíveis, do tipo cheiros, sabores, cores etc., poderiam dar mais concreção às impressões.
Há um coloquialismo na narrativa em primeira pessoa, que aproxima a narradora do leitor e a torna mais “concreta”.
É interessante ver a técnica em ação nas coisas mínimas. É o caso, por exemplo, de “Passei a vigiá-las num suspense sufocado, [...].” (pág. 54). A repetição “su” e “su”, sibilada, dá a ideia de sussurro, reforçando a sensação de “suspense sufocado”.
Alguns preconceitos (de gênero etc., e até de tipos de livros) são evidenciados, como em “O mais espantoso de tudo era constatar que havia no mundo um menininho capaz de ter tanta consideração por alguém de idade, sexo e inteligência inferiores.” (pág. 73), ou em “Havia uma sala cheia de livros velhos em Bly – alguns eram obras de ficção do século passado, que tinham chegado, sob forma de uma notoriedade claramente reprovada, [...]. “(pág. 74).
No segundo capítulo há um novo exemplo de adiamento para gerar suspense. O patrão manda uma carta para a governanta falando sobre uma outra missiva, do diretor do colégio de Miles. É feito um rodeio, gerada uma expectativa para, de repente, dizer somente: “O que isso significa? O menino foi desligado da escola”. E nada sobre os motivos, que nem no final da história se esclarecem direito.
O nó da história se dá quando a governanta vê o fantasma pela primeira vez (pág. 32 e ss.). É muito interessante como a narradora descreve a cena da visão, fazendo com que nós, leitores, construamos com toda liberdade a imagem do homem que ela vê e, daí a mais de dez páginas, descreve-o detalhadamente, dirigindo-nos, remodelando a imagem que já havíamos livremente criado (pág. 45). Essa estratégia é usada outras vezes no texto.
Seguem-se outras visões e a degradação sutil da relação da governanta com as crianças. Ela desconfiava, desde o início, da ventura de estar em Bly, da perfeição daquela casa, daquele emprego, principalmente daquelas crianças, sobre quem, em determinado momento, chegou a dizer à senhora Grose: ‘“A beleza celestial dos dois, sua bondade absolutamente antinatural. É um jogo”’, prossegui; ‘“é uma tática, uma fraude!”’ (pág. 89. Sem negrito no original). E assim ela foi construindo, primeiro mentalmente, depois concretamente, um julgamento e uma situação, como exemplifica a continuação do trecho citado acima:

Da parte de minhas criancinhas queridas...?”
Desses pequeninos tão lindos? Sim, por mais que pareça loucura!” O próprio ato de pôr em palavras me ajudava a compreender – a juntar as peças uma por uma e formar um todo. [...]. (pág. 89).

Ela se desilude com as crianças e as vê corrompidas e más.
Para mim, a história é sobre como alguém, mesmo em situações aparentemente seguras, perfeitas e felizes, consegue não partilhar delas como naturalmente se espera. É sobre os desequilíbrios, traumas e inseguranças da própria governanta, que simplesmente não podia acreditar que tudo estava dando tão certo para si. Via mesmo fantasmas ou estava alucinando? O livro leva a crer que via, mas mesmo isso parece advir de seu estado de espírito predisposto a criar um enredo, algum problema que justificasse sua desconfiança acerca daquela perfeição toda. Nesse sentido, a obra não diz tanto respeito aos fantasmas e às crianças, mas sobre ela, a governanta.

Final do livro

O final é um show à parte, um clímax surpreendente, mas não um desfecho, no sentido de meio de resolução do conflito. Este fica em aberto. O livro termina onde as explicações deveriam começar. Há um choque, uma ruptura abrupta. Essa é a sacada de mestre do autor, que deixa ao leitor, desnorteado, a tarefa de imaginar finais possíveis para a trama.
É um final fatal, tanto figurativa quanto literalmente. Quando parece que o melhor vai começar, o livro acaba. É um romance do não dito.
O arco dramático – que normalmente apresenta uma conclusão fechada para histórias focadas nas ações dos personagens e na progressão do enredo, centradas um único protagonista e que têm relação clara de causalidade, bem como cronologia linear – é incomum: não conclui, cabalmente, nada. E pode tanto ter levado a governanta do estado de inocente a vítima, quanto de inocente a assassina de uma criança3.
O que mais interessa ao autor, acredito, é que o final é inesquecível, por tudo que não explica, por tudo que nos faz imaginar para além dele.

Alguns comentários esparsos

O leitor de ficção já tem um trato tácito com o autor de que vai tentar acreditar naquilo que ele inventou. Pelo menos para mim, histórias de fantasmas parecem mais verdadeiras na vida real do que na ficção – talvez pelas ênfases da linguagem não verbal de quem diz ter visto, pela tentativa do ouvinte de não ridicularizar quem fala etc. – de modo que, no papel, o esforço deve ser bem mais medido e bem pensado. Em A outra volta do parafuso, um texto de ficção, o autor insere inicialmente um narrador (ou narradora), que diz que vai contar uma história verdadeira (ponto positivo, indução), que será, no final das contas, a leitura daquilo que escreveu quem a vivenciou (2ª narradora). Aquele primeiro narrador e aquelas personagens do prefácio nunca mais aparecem no texto, só serviram para “preparar”, “envolver” o leitor. Ou seja, a estrutura é de patamares, imergindo deliberadamente o leitor, um degrau de cada vez, nas profundezas de um estado psicológico propício para chegar aos efeitos pretendidos pelo autor.
Também há omissões que confirmam alguma coisa sem, no entanto, confirmá-la explicitamente, apresentando fato novo que não é bem explicado nem aprofundado, a exemplo do trecho em que a governanta fala com a senhora Grose sobre Quint:
 
[…]. “Então a senhora me garante – pois isso é da maior importância – que ele era definitiva e assumidamente mau?
Ah, assumidamente, não. Eu sabia, mas o patrão não.”

Essa fórmula de dizer um pouco sem responder a quaisquer porquês, aumenta a sensação do leitor de não ter acesso a tudo, de estar tratando com algo realmente misterioso. Em outras vezes, algo é dito sucintamente e só retomado com novas informações bem à frente na trama. O leitor fica com a pergunta “por que a narradora não falou tudo isso da primeira vez que tocou no assunto?”. A resposta é obvia: para alimentar o suspense. O mesmo ocorre, por exemplo, em “[...] se eu tivesse me poupado – bem, logo se verá do quê”, nas páginas 78 e 79, onde ela anuncia a tensão mas deixa as explicações para depois.
Que narradora confessa uma mentira que depõe contra sua própria credibilidade junto ao leitor que quer convencer? A governanta faz isso quando inventa (e nos revela esse expediente), para a senhora Grose, a conversa que teve com Miss Jessel, afirmando que ela diz sofrer os tormentos dos perdidos, dos danados (Cf. págs. 110-111).
Nesta obra, o autor é um grande ilusionista sugestionador, enfatiza e dirige muito bem os efeitos da narrativa. Talvez o uso repetitivo de adjetivos e advérbios específicos e exagerados, martelando cadenciadamente no texto, quase num padrão de tempo, seja uma estratégia de reforço subliminar para manter e afundar o sulco da marca psicológica criada.
Henry James mantém a tensão narrativa de forma parabólica regular, no tempo e no espaço narrativos, através de ondas que vão crescendo e culminam em pequenos clímax (as aparições), até que uma onda maior acontece: o desfecho. Parece tudo calculado para que os altos e baixos da tensão ocorram em intervalos periódicos sequenciais iguais, garantindo uma cadência perfeita e mantendo o fluxo de sensações provocadas no leitor.
É um livro que eu jamais leria, se estivesse elegendo livremente conforme minhas preferências literárias. E acredito que não verei nenhuma das adaptações para cinema. É que o gênero não me estimula. Desafiei-me à leitura e, agora, reconheço o privilégio de ter lido uma história tão bem construída, orquestrada para dar certo, precisa como os mecanismos de um relógio.
Não é à toa que A Outra Volta do Parafuso foi, tantas vezes, adaptado para o cinema. É breviloquente, apela às emoções, dá muita margem para interpretações. Além disso, possui poucos personagens e as cenas se passam quase todas em Bly, o que exige poucas locações, barateando a produção. É o segundo livro que leio (o outro é O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald) que parece ter sido escrito para cinema.

A edição 
 
A tradução de Paulo Henriques Britto não deixou qualquer passagem mal-acabada, daquelas que deixam a impressão de adaptação forçada. Graças à preparação de Ciça Caropreso e à revisão de Jane Pessoa e Marise Leal, não consegui identificar qualquer erro ortográfico nem falta de padronização. A escolha de hifenizar as palavras na margem direita é interessante e nostálgica, lembra a edição mais “artesanal” que se obtinha com as máquinas de escrever.
Trata-se de uma edição de bolso. A escolha tipográfica é boa, o tamanho da fonte é um pouco pequeno. Isto parece ser uma escolha acertada, porque embora o texto seja denso – com parágrafos longos, formando blocos sólidos de texto – a letra pequena se adequa à tensão do texto, provocando, na minha opinião, maior imersão no suspense. Outra vantagem é que o livro tem poucas páginas, dando a ideia de leitura rápida, apesar das letrinhas. A ampla mancha gráfica é bem dimensionada, com os dois centímetros de margem direita minimizando o efeito de “condensação”, da edição econômica.
A capa não tem orelhas e mede, como o miolo do livro, 20 x 13 cm. Um recorte da xilogravura Os Solitários – Two Peoples. The Lonely Ones – de Edvard Munch, gravada em 1899, a ilustra. A obra é releitura de um tema já pintado por Munch, em 1894, e repetido posteriormente, em 1930. Tem a força expressionista característica das criações do autor (amplamente conhecido pelas quatro versões de O Grito, dentre outras obras-primas).
Foi muito acertada a escolha de Os Solitarios para a capa do livro. Lendo A Outra Volta do Parafuso é impossível não ver, nas duas personagens gravadas por Munch, as figuras de Peter Quint e Miss Jessel.
Abro um parêntesis para dar, em três parágrafos, minha breve interpretação estrutural da tela Os Solitários – Two Peoples. The Lonely Ones – de Edvard Munch:
As figuras do quadro estão de costas, em frente ao que parece ser um lago, próximos mas distantes um do outro, numa relação de cumplicidade sugerida (o pé esquerdo e a cabeça do personagem masculino se voltam para a moça) mas de forte contraste (visível na preponderância do branco e do preto). O homem permanece um pouco atrás da moça, com os braços na mesma posição que ela, parecendo uma sombra. Ela olha para o “infinito” do lago, o homem, para ela. Na realidade, embora o homem ocupe o primeiro plano perspectivo, estando mais próximo do observador – e tanto ele quanto ela estejam em posições equilibradas e equidistantes na tela – a mulher é o primeiro plano da cena. Tudo se volta para ela. O destaque de ser pintada em branco evidencia isso.
O título, Os Solitários, induz textualmente nossa interpretação, completando a cena pesada, escura e fechada (por retratar os personagens de costas). No chão, entre eles e também do lado direito do personagem masculino, há duas figuras em branco que me fazem ver – inevitavelmente como nas associações involuntárias que fazemos quando olhamos para nuvens que se parecem com algo – dois rostos que miram, lúgubres e fantasmáticos, a moça. 
 
 
Munch, Edvard (1899)
Duas Pessoas. Os Solitários – Two People. The Lonely Ones

O impressionismo reduz as cenas a seus tons mais fortes e impressionantes, superlativos, representando o efeito pungente causado no autor da obra – efeito que ele pretende replicar (já a primeira vista e de forma impactante) no interprete que vê seu quadro. O expressionismo tem a mesma força estilístico-visual do impressionismo, mas destaca, principalmente, o momento psicológico, os sentimentos (geralmente negativos, de angústia, ansiedade, terror etc.), das personagens pintadas. É esse o “fundo” de Os Solitários, de Munch.
Não é da tensão impressionista e do sofrimento psicológico de uma personagem (a governanta) que trata A Outra Volta do Parafuso? Se a tela tivesse sido encomendada para ilustrar a capa do livro não teria sido mais perfeita. Coube como a mão e a luva.
Dois terços da primeira capa são ocupados por Os Solitários, de Munch. O terço restante traz a marca Penguin / Companhia em fundo branco seguida da coleção, do nome do autor e, no final, no pé da página, do título do livro, todos em fundo preto. Nos livros publicados pela Penguin, a marca ganha mais destaque na primeira capa do que o título da obra e o nome do autor.
A quarta capa começa com uma citação direta, narrando uma das aparições presenciadas pela governanta. É um artifício que nos põe em contato com a verve da escrita do autor, antes mesmo de abrirmos o livro. Segue uma sinopse, que adianta o gênero do livro (tive a sorte de deixar para ler a quarta capa só no final, entrei na história sem saber do que se tratava).

Breve biografia do autor

Os romances de Henry James, que abrangem o período de 1876 a 1904, estão preocupados com o que tem sido chamado de tragédia das boas maneiras. A sociedade que James projeta é sofisticada, sutil e sinistra. Os inocentes e os bons são destruídos [...]” (Enciclopédia Britânica4).

Henry James nasceu em Nova York em 15 de abril de 1843 e morreu em Londres, no dia 28 de fevereiro de 1916. A inocência e exuberância do Novo Mundo, em contradição com a sabedoria e corrupção do Velho constituem o tema fundamental de sua obra.
Henry foi um menino tímido, aficionado por livros, educado – ele e seu irmão mais velho – por tutores e governantas. Aos 21 anos começa a publicar suas primeiras histórias e logo passa a ser considerado um dos mais habilidosos escritores de contos da América. Era criticado por escrever mais sobre os aspectos psicológicos dos personagens do que sobre a ação. Fez resenhas, artigos, contos, por mais de uma década antes de se aventurar em um romance. Nunca se casou e, embora fosse amigável e participante da sociedade da sua época, na meia-idade podia ser classificado como “distante”.
Naquela que é considerada a segunda fase (ou fase intermediária, anterior àquela que viria a ser chamada de sua fase “maior”) de sua carreira, James escreveu, dentre outros livros, “A Outra Volta do Parafuso”, já utilizando

[...] os métodos de alternar 'imagem' e cena dramática, aderência estreita a um determinado ângulo de visão, uma retenção de informações do leitor, disponibilizando para ele apenas o que os personagens veem. Os sujeitos desse período são o desenvolvimento da consciência e da educação moral das crianças – na verdade, o antigo tema internacional da inocência de James em um mundo corrupto, transferido para o cenário inglês.” (ibidem).

Henry James teve uma das mais longas e produtivas carreiras entre os escritores americanos. Com um estilo individual e marcante, escreveu, em 51 anos, vinte romances, cento e doze contos, doze peças, várias críticas, relatos de viagens e jornalismo literário. “Seu tema fundamental era o de uma América inocente, exuberante e democrática, confrontando a sabedoria e a corrupção mundanas da cultura aristocrática mais antiga da Europa.” (EDEL, Leon. Idem.). Gostava de escrever sobre a realidade, mas sob a perspectiva pessoal e peculiar do artista. “[...] foi reconhecido no final do século 20 como um dos mais sutis artesãos que já praticaram a arte do romance.”

Henry James, placa de vidro negativa, c. 1910
Biblioteca do Congresso, Washington, DC (LC-DIG-ggbain-04703)


Notas


1 Cf. lista de adaptações em <https://www.tudosobreseufilme.com.br/2016/03/a-volta-do-parafuso-no-cinematv.html> .
2 O autor utiliza muito o recurso de destacar em itálico aquilo que pretende enfatizar nos diálogos.
3 Se a governanta foi amiga de Douglas e tutora de sua irmã, sem dúvida não foi responsabilizada, à época dos fatos narrados por ela, pela cogitável (por mim, pelo menos) morte de Miles, embora seja uma hipótese plausível.
4 Enciclopédia Britânica. Disponível em <https://www.britannica.com/art/tragedy-literature/The-American-tragic-novel#ref504880> , acesso em 26 dez. 2018.