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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

OS VESTÍGIOS DO DIA - Kazuo Ishiguro






Resenha literária

OS VESTÍGIOS DO DIA
 
(de KAZUO ISHIGURO)

Juliano Barreto Rodrigues.




ISHIGURO, Kazuo. Os vestígios do dia, seguido de “Depois do anoitecer” / Kazuo Ishiguro ; tradução de José Rubens Siqueira. - 2ª ed. - São Paulo : Companhia das Letras, 2016. 285 págs.


Atravessei Os Vestígios do Dia na frente de outros livros da minha lista de leitura principalmente porque a quarta capa indicava que muito seria dito sobre a rotina de um mordomo inglês da antiga geração, profissão que admiro e sobre a qual sempre quis saber mais. Quem não se encanta com os modos ingleses, dos quais o mordomo seja, talvez (e até por exigência profissional, além de meramente pessoal), o maior representante?

Alguns outros elementos somaram para aumentar meu interesse no livro: sua apresentação visual, com uma linda capa ilustrada com a fachada da mansão Darlington Hall; a elegante pintura marrom dos cortes da frente, da cabeça e do pé do miolo, que agrega sofisticação e evidencia esmero com a edição (um chamariz para apaixonados não apenas pelos conteúdos dos textos, mas também pela arte do objeto livro); as páginas amareladas, que são minha preferência; um adesivo vermelho pregado na capa, em que se lê “Premio Nobel 2017”, um atestado, em tese, da qualidade do autor; a tradução do experiente José Rubens Siqueira.

O enredo é a história, narrada em primeira pessoa, da vida profissional do mordomo de uma casa inglesa de grande prestígio e importância. Neste sentido, o âmbito pessoal se confunde com o do trabalho. É uma ficção que alcança elementos de Antropologia Social e Profissiografia, porque trata dos universos real e simbólico dos mordomos, a relação com sua própria posição social, a ideia de vocação, a visão que têm da profissão e das virtudes e qualidades que distinguem aqueles que são modelos de excelência, os aspectos práticos e também a aura profissional que emanam, e sua representação social. Tratar isso na ficção permite uma amplitude muito maior do que uma análise acadêmica, porque a narrativa pode descer a questões subjetivas, psicológicas, não meramente descritivas, possibilitando ao leitor imergir no universo alheio, dentro de tempos e espaços (reais ou imaginários) repletos de sensações, conflitos, questões íntimas etc., que uma obra de não-ficção1 provavelmente jamais atingiria.

O livro também é uma história de amor desencontrado, de relação familiar, de desigualdade social, de política internacional entreguerras, de ascensão e queda, de definitividades. Stevens, o narrador personagem, fala do seu presente, trabalhando como mordomo de Mr. Farraday, na Darlington Hall, e da viagem de carro que faz para o norte da Inglaterra, com o intuito de encontrar Miss Kenton, uma governanta que saiu há anos da mansão para se casar. Remete também ao passado do protagonista, servindo o antigo proprietário, Lord Darlington, talvez a pessoa mais relevante em toda sua história pessoal. 
 
Stevens é um homem de comportamento monocórdio e com apenas um grande mote na vida: se considerar e ser reconhecido como um grande mordomo. Ele incorpora um ideal, desenvolve uma confusão indissociável entre sua figura pessoal e a profissional, e frui o bônus dessa conduta para seu objetivo profissional, mas também o ônus proporcional na sua vida pessoal, para a qual não tem qualquer habilidade. O grande mordomo existe, em detrimento do homem Stevens. Neste sentido, é uma história triste, de abnegação extrema. Na trama, Stevens não passa por nenhuma grande desmedida. O mais parecido disso é sua coragem de sair em viagem da mansão, à procura de Miss Kenton.

A trama se desenvolve sem altos e baixos. Há episódios interessantes do passado e um conflito marcante (Cf. pág. 116), quando Mr. Lewis, um americano presente a uma das conferências extraoficiais na mansão, é confrontado com Mr. Dupin, o francês que é peça chave nas negociações acerca do relacionamento entre vencidos e vencedores no pós 1ª Guerra Mundial. Posso dizer que é o momento mais saboroso do enredo2. Depois disso, toda a narrativa caminha tranquilamente, intercalando digressões com reflexões filosóficas e práticas acerca do ofício de mordomo, das relações entre patrões e subordinados, daqueles com seus pares... até o nó da história, já no final do livro, quando finalmente Stevens encontra Miss Kenton e eles têm uma conversa reveladora. São os dois picos do enredo. 
 
Quando soube que havia uma adaptação para o cinema (1994), com atores icônicos – Anthony Hopkins, Emma Thompson, James Fox, Christopher Reeve, Hugh Grant, Peter Vaughan, Ben Chaplin, Michael Lonsdale – fiquei muito curioso em saber como a adaptação de um enredo tão sem conflitos poderia dar certo (levando em conta ainda que comumente o leitor já se decepciona com a síntese drástica necessariamente feita para a adaptação do livro para a tela). E, na minha opinião, não deu certo mesmo. O filme consegue até tornar mais insosso o final, omitindo uma declaração explícita de Miss Kenton que há no final do livro. Pior, enfatiza o acessório em detrimento do principal: o livro é o retrato de uma profissão interessante, isso é que o torna bom. O resto, neste caso, é só contexto e colorido. No filme mostram praticamente só esse resto, o acessório. Nem a atuação de Anthony Hopkins está à altura do personagem do livro. 

  
Então o livro é sem graça? De jeito nenhum. É interessantíssimo, desde que se leve em conta que o que o torna muito bom é a revelação dos meandros de uma profissão rara e antiga, muito discreta, com uma ética de serviço exigente e que está em extinção. 

O estilo narrativo é simples e direto, com poucas comparações e metáforas, não chama a atenção para si, não se exibe. Isso me lembra a ideia de Beatrice Warde (1932) sobre uma tipografia invisível, criada para ser funcional mas o mais sóbria e modesta possível, instrumento de bastidor. Ampliando o conceito para o texto em si, seria bem aplicado para o estilo empregado em Os Vestígios do Dia: um “copo de cristal”, uma escrita invisível, fantasma, transparente, totalmente a serviço do enredo (com exceção de uma ou outra deliciosa pérola de construção de frase, do tipo “Camas desconhecidas raramente se dão bem comigo [...]”). Kazuo Ishiguro não enfeita e não vai além do necessário nesta obra. O livro é quase mais curto do que o desejável.

Na página 250 começa um capítulo referente a noite do sexto dia de viagem. Stevens está em Weymouth e já se passaram dois dias do seu encontro com Miss Kenton, que só será narrado daí a algumas páginas, um bem-vindo artifício de escritor, gerador de muita expectativa. E essa expectativa é aumentada com a apresentação do progresso lento, passo-a-passo, da conversa que eles têm.

A caracterização dos personagens é muito boa, principalmente a de Stevens. Ele é um daqueles mordomos que estamos acostumados a ver em filmes, com seus clássicos “pois não” e “sinto muito”, empertigados, polidos, “cheios de dedos”, ciosos das aparências3, de ouvidos sempre atentos, seres de gostos apurados, no limite entre a simplicidade e o esnobismo, elegantemente a postos, orgulhosos de seu status de mordomos de grandes mansões e servindo a pessoas importantes, com a diferença que, neste livro, um mordomo é o protagonista, e é apresentado de uma forma tão verossímil que, me arrisco a dizer, nenhum leitor se deparará novamente com outro mordomo, na literatura, sem se lembrar de Stevens.

Estando o protagonista tão bem caracterizado e se mostrando tão constante em seu modo de ser, chega um momento em que o leitor já deduz o final. O arco dramático da história não é lá tão “dramático”: Stevens começa de um jeito, viaja com a expectativa de mudar alguma coisa, vive um contato mínimo com alguns sentimentos que ele mesmo não assume, e termina praticamente do mesmo jeito, apenas reforçando o que já era. 

Sentimentalmente, o livro é, de certa forma, uma tragédia íntima, no sentido do que poderia ter sido e não foi. O leitor experimenta – eu pelo menos tive – uma catarse diante da solução dada para um sofrimento inconfessado.

Uma alegoria que resume a ideia que Stevens faz da atividade que exerce é referida mais de uma vez no texto para tratar da dignidade do ofício e da “profundidade do profissionalismo”:
[...] certo mordomo [...] viajara com seu patrão para a Índia e lá servira durante muitos anos, cobrando dos empregados indianos o mesmo alto padrão que exigia na Inglaterra. Certa tarde, ele entrou na sala de jantar para conferir se estava tudo em ordem para a refeição e notou um tigre deitado debaixo da mesa. Com muita cautela, o mordomo deixou o recinto, tomando o cuidado de fechar as portas, e foi calmamente para a sala de estar, onde seu patrão tomava chá com um grupo de visitantes. Com um pigarro polido, chamou a atenção do patrão, depois sussurrou em seu ouvido: “Sinto muito, senhor, mas parece que há um tigre na sala de jantar. O senhor talvez permita que a calibre doze seja utilizada?”.
Segundo a lenda, minutos depois, o anfitrião e seus convidados ouviram três tiros de espingarda. Quando o mordomo reapareceu na sala algum tempo depois, para completar os bules de chá, o patrão perguntou se estava tudo bem.
Muito obrigado, senhor”, foi a resposta. “O jantar será servido na hora de sempre e tenho o prazer de informar que não haverá mais nenhum vestígio dos acontecimentos recentes”. (pág. 47).


Naquela conferência de 1923, o episódio entre o americano e o francês a que me referi, Stevens viveu situações que o ergueram ao patamar do mordomo da história do “tigre embaixo da mesa”.

Para o mordomo, a mansão é quase um “ente”, em que gerações se sucedem sob a distinção4 de seu renome, que deve ser preservado. A ambientação, no texto, é cuidadosa, sem se perder em descrições exageradas. Está quase sempre relacionada às sensações das personagens a respeito dos ambientes. Exemplo: quando a sala do mordomo é apresentada, além da descrição há o comentário sobre a sua sobriedade austera e opressora; quando o quarto do pai de Stevens é mostrado, chega-se a afirmar que parece uma cela.

Leitores se identificam com outros leitores e com livros. Vários momentos das personagens são passados na biblioteca e, não raro, algumas situações com livros são referidas. É feita até menção específica à Enciclopédia Britânica e aos volumes da The Wonder of England, de Mrs. Jane Symons, por exemplo. 
 
O primeiro parágrafo do livro é longo e quase não chama a atenção, gerando apenas curiosidade em saber por que Stevens está preocupado com a viajem que deseja fazer. Ele fala diretamente ao leitor, num tom confessional, utilizando expressões coloquiais que aproximam essa relação – como “devo dizer”, “devo confessar”, “na verdade”, “lembro bem” –, uma estratégia cativante de vínculo que continuará a ser utilizada nos parágrafos seguintes, repletos de expressões do tipo “como você deve saber”, “permita que eu esclareça”, “por que negar?”, “quero deixar bem claro” etc. Chama a atenção o fato dele estar sempre se desculpando ou se explicando, para garantir que não será mal interpretado.

Artifício interessante para a verossimilhança é o cuidado de Stevens em não expor alguém que supostamente existiu, como na passagem “Certa tarde, para sua própria tristeza e vergonha, Mr. Charles permitiu-se ficar bêbado na companhia de dois outros hóspedes, cavalheiros que chamarei apenas de Mr. Smith e Mr. Jones, uma vez que é possível que ainda sejam lembrados em certos círculos. […]. (pág. 48, sem negrito no original).

Por essas e outras, a leitura de Os Vestígios do Dia vale demais. O enredo é horizontal, sem acidentes no relevo – como se deduz que seja a rotina de trabalho de um empregado doméstico – mas não é chato. O livro é a prova de que uma história não precisa ser cheia de nós e pirotecnias para ser muito boa (e repare que esta trama só tem um grande personagem). É uma visão de lupa na realidade de alguém que exerce uma atividade devocional, quase de clausura. Trata-se de uma desmistificação. Ler Os Vestígios do Dia é quase como viajar para um país exótico. Talvez seja mais adequado dizer que é como viajar para dentro da vida de alguém exótico.

Notas:
 
1 A não ser, talvez, a biografia, embora muitos tratem tal gênero como ficção.
2 Stevens considera aquela conferência como o momento em que alcançou sua maturidade na profissão. O livro destaca que os grandes eventos são cruciais na carreira de um mordomo.
3 Nesse sentido, é muito interessante, por exemplo, a explicação, na página 152, da importância do estado de polimento da prataria para se determinar o “padrão” de uma casa.

4 Na página 131 há uma interessante explicação sobre a ideia de distinção.