COLÓQUIO ENTRE IRMÃOS
Juliano B. Rodrigues.
Na penumbra do gabinete, iluminado apenas por uma luminária
pendente, que incide a luz diretamente sobre o tabuleiro de xadrez na
mesinha de centro, encontram-se, sentados frente a frente, duas
figuras bem extravagantes. Lembram a história do primo pobre e o
primo rico: um é elegante, usa um chapéu bicorne meio exagerado,
terno alinhado, colarinho branco, calças de veludo, anelão de ouro
e florezinhas de figueira-brava na lapela. O outro, mais mirrado,
veste uma bata muito simples e calçolão parecendo de pijama. Calça
sandálias gastas e tem um estilo displicente de vestir. Ambos
barbudos, mas o primeiro com barba e cabelo impecavelmente aparados,
enquanto o segundo 'ao natural'. São irmãos. Assim, e como estão
sozinhos, conversam sem nenhuma cerimônia. O engomadinho, agarrado a
um peão, começa o assunto sem levantar os olhos do jogo:
– Você supervaloriza essas criaturas.
– Não é isso, irmão. Cada um se apega ao que tem.
– São todos uns ingratos. Vivem comigo e depois falam mal de mim.
Fazem suas porcarias e a culpa botam em quem? Em mim. E depois, com a
cara mais deslavada, falam para Ele e para os outros que estão na
sua, maninho.
– Sei disso, mas não fui eu quem
os criou assim.
– Não venha tirar o corpo fora.
Você pode não tê-los feito, mas me sacaneou feio naquela história
de Novo Testamento. Os profetas que armaram sua vinda já me passavam
a perna, mas a sua estratégia de marketing foi
violenta: além de pintar minha caveira por escrito e fazer todos
acreditarem que estou do lado oposto do Pai, ainda saiu de escolhido,
de Filho de Deus.
– Lú, não seja rancoroso. Não
fui eu quem escreveu a Bíblia. Você já tinha se dado mal com o
Velho Testamento e vacilou, deixou que um Novo fosse feito. Demorou a
ver que a ideia, que nem foi minha mas dos homens, de criar um
roteiro fantástico nos mitificando, era ótima. Quer dizer, pelo
menos foi para mim.
– Rapaz, você armou um complô
tão infernal, que me escorraçou até da Trindade. Meteram um tal
Espírito Santo no meu lugar. E olha que eu e você somos gêmeos
idênticos, fomos criados juntos lá na origem. Daí você reaparece
e apronta: brota no meio deles com um nome impactante, uma cara de
anjo, um discurso inédito e bum! De repente, todo o prestígio é
seu. E ainda me acusam de tentar usurpar o trono do Pai. Eu devia é
ter aulas contigo.
– Seu ciúme é porque todos me
amam, Lú.
– Isso é o que não entendo. Você
é tão econômico nas suas benesses... Já eu, sou pródigo em
divertir, estou em quase todos os prazeres, boto graça em tudo. É
um tédio sua carolice.
– Pode ser, pode ser. E até acho
que o problema talvez esteja aí. A maioria se aproveita tanto do que
eu ofereço quanto do que você dá. O rebanho é corrupto, não há
meus e seus, dividimos as mesmas cabeças. Fica difícil essa
contabilidade e a prestação de contas.
– Então. O pior é que o trabalho
tem sido muito mais meu. Te solicitam muito mais, mas quando vão
para a ação, quando querem pôr a mão na massa, meter o pé na
jaca, aí a coisa é comigo. Você sabe que até para ir além da
natureza e fazer milagres minha ajuda é essencial. Não tenho um
minuto de descanso. Salário então? Nem pensar. Pelo jeito, vou
viver eternamente de mesada. Eu gostava quando me chamavam de deus da
preguiça, mas isso é o que não sou faz tempo. Trabalho feito um
burro de carga. E até hoje me condenam pela rebeliãozinha que
causei tentando alcançar a coroa: quem aguenta viver sendo “braço
esquerdo” a eternidade inteira, sem chance de promoção? Nem você,
“braço direito”!
– Tá, e o que propõe, meu irmão?
Fazer um piquete e dividir o rebanho meio a meio, ou deixar que se
virem, ou pior: fazer logo um Apocalipse?
– O “Pai” não aceitaria
nenhuma das três opções. Se não tivesse criado a porcaria do
livre arbítrio, o plano ”a” até seria interessante. Mas eles
escolheram servir tanto a mim quanto a você, e se aparecer mais um
brilhante, seguem também. O saco é que nós dois nem servimos para
sócios, você é luz que ilumina, eu sou luz que ofusca; você
freia, eu acelero; você adula, eu castigo; você gosta da pasmaceira
e eu quero é ver o circo pegar fogo; íamos quebrar. Mas é tããão
chato vivermos disputando...
– Lú, não dá para te tirar de
cena e nem você a mim. Se o Pai quisesse diferente não teria feito
dois. Seja resignado.
– Tá vendo? Não suporto essa
conversa de cordeirinho. Você ainda leva alguém com esse papo? Não
que eu dê muita bola para o destino da humanidade, mas como disse
você, é só o que temos. Preciso lucrar de algum modo.
– Solução? O que sugere?
Após alguns minutos de silêncio,
Cristo e Lúcifer brindam, um com água outro com licor, se olham e
dizem em uníssono, como fazem muitos univitelinos:
– Tem jeito não, joga nas mãos
de Deus.
Levantam-se e saem rindo abraçados,
naquele abraço fraterno de irmãos que se querem muito, ainda
que tenham escolhido posições opostas.
Observação necessária: Embora seja o autor quem crie o narrador,
este é um “ser” independente, às vezes com opiniões
absolutamente opostas as do seu criador. Como o que escrevo já me
surge pronto na cabeça, faço de tudo para não me meter na opinião
do narrador, apenas modero minimamente a sua linguagem. No texto
acima, quero deixar claro que as opiniões, crenças e conclusões
são do narrador, não correspondendo em muita coisa com as minhas. O
texto é ficcional. Não tenciono ofender qualquer crença ou
religião, muito pelo contrário, sou defensor da liberdade religiosa
e de credo e, mais que isso, da liberdade de opinião. A quem não
tenha gostado, não leve a sério o texto, é mera ficção. Peço
vênia: Arte é arte, feita
para ser bela, romper com o cristalizado, extrapolar as velhas
estruturas. Como já disse muitas vezes, 'valei-me a licença
poética'.