A OUTRA VOLTA DO
PARAFUSO
Resenha Literária
Por
Juliano
Barreto Rodrigues.
“Quando eu sou
mau, eu sou mau mesmo!”
Frase de Miles, na
pág. 87.
JAMES,
Henry. A
outra volta do parafuso.
Tradução de Paulo Henriques Britto; posfácio de David Bromwich –
São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. 199 págs.
Publicada
pela primeira vez em doze partes, na revista Collier’s
Weekly, no
ano de 1898, e reeditada inúmeras vezes, A
Outra Volta do Parafuso
se tornou um clássico das histórias de fantasmas, tendo sido
adaptada para o cinema mais de vinte vezes1.
Do
método de análise
Gosto
de analisar um livro individualmente, sem levar em conta, até o
momento da resenha, a importância histórica da obra, seu contexto
no mundo literário, o status
do
seu autor. Isso para tentar realizar um juízo de valor o mais isento
possível, focado na qualidade do texto em si, como quem estivesse
julgando a qualidade de um escritor de primeiro livro.
Eu
nunca havia lido nada de Henry James, nem visto qualquer adaptação
do romance para o cinema. Embora já soubesse da importância
literária do autor, tentei deixá-la de lado durante a leitura e
interpretação, e fiz questão de não ler – até o momento de
finalizar a resenha – qualquer biografia dele, nem resenhas ou
ensaios sobre a obra (a fortuna crítica disponível é imensa). Tudo
para não me contaminar com qualquer impressão de antemão,
predisposição ou pré-julgamento.
Adianto
que esta resenha não se dirige a quem ainda vai ler o livro. É que
trato de especificidades e miudezas que só quem interpretou o texto
vai aproveitar a contento. Advertência feita, vamos a analise.
Título
O
título é incrível, provoca aquilo de mais importante que um bom
título de ficção deve provocar: curiosidade. “A outra volta do
parafuso” pode ser qualquer coisa, é um enigma, um título de
interpretação absolutamente subjetiva. Não é o parafuso,
concreto, que importa aqui, e sim “a outra volta” (abstração),
que pode conotar inúmeros sentidos. No decorrer do texto um
significado é sugerido.
Enredo
Já
é um spoiler frustrante, trazido na quarta capa, a informação de
que é história de fantasmas. Como eu não tinha lido nada sobre o
livro, nem sequer tal sinopse, só fiquei sabendo que tocava o
sobrenatural no terceiro capítulo, o que deixou tudo mais
interessante. Eu preferiria classificar o gênero como um thriller
psicológico, nem terror nem mistério, embora exista um pouquinho de
ambas as coisas.
Uma
professora de vinte anos (cujo nome nunca é dito), caçula de um
pobre pároco do interior e saída de um presbitério em Hampshire,
vai a Londres por conta de um anúncio de emprego. Ela deveria
trabalhar como governanta em Bly, uma velha mansão campestre em
Essex, administrando a casa e, principalmente, cuidando de duas
crianças órfãs, sobrinhas de um rico cavalheiro solteiro, que as
queria bem, mas longe dele. Havia a condição de “Que ela não
deveria nunca incomodá-lo – nunca, jamais: nem apelar para ele,
nem reclamar, nem escrever-lhe a respeito de qualquer assunto; teria
de enfrentar todos os problemas sozinha, receber todas as remessas de
dinheiro do advogado dele, assumir toda a situação e deixa-lo em
paz.” (pág. 15). Apesar de temer a responsabilidade, ela aceitou.
Chegando
em Bly, ficou deslumbrada pelo lugar e pela menina Flora. O
irmãozinho dela, Miles, chegou dias depois, expulso (por misteriosos
motivos) do internato em que estudava.
Encantada
com as crianças e contando apenas com a companhia delas e da Sra.
Grose, empregada da casa e preceptora de Flora, a jovem governanta
parece sempre desconfiar da tamanha perfeição de tudo – do lugar
perfeito, das crianças sem defeito, do emprego maravilhoso etc. –
e a cultivar temores alimentados por suas próprias insegurança e
solidão. Até que... algo inesperado acontece: começa a ver os
fantasmas da governanta anterior e de outro empregado de Bly.
Acreditando
que as crianças são o motivo das aparições, e crendo que elas não
só veem, mas também se comunicam secretamente com os fantasmas,
teme por elas e se dispõe a fazer tudo para protegê-las contra a
influência corruptora. Tem como única aliada a simplória Sra.
Grose.
Desse
modo, a narradora-personagem passa a considerar o lugar ruim para
seus pupilos; eles próprios como coniventes, manipuladores e
ocultadores da situação, “tão cândidos e condenados”, como
diz na páginas 70-71; o tio (por quem se encantara) como omisso; ela
própria como a possível ‘salvadora’. Daí, o enredo é a
narração de suas desmedidas.
É
uma história de fantasmas (e o texto só revela isso na página 47),
mas que diz bem menos do que se espera. Deixa mais dúvidas do que
certezas. Fato é que a governanta atribui aos espectros intenções
e influências ruins, mesmo sem jamais terem se comunicado e, na luta
contra tais fantasmas, é a única que efetivamente acaba causando
mal comprovável às crianças.
Cada aparição –
são oito no total – retroalimenta o efeito das anteriores (embora
o impacto da quebra com o natural, da primeira aparição, seja o
mais relevante) e vai aumentando a tensão pouco a pouco, construindo
um clímax inevitável. Ele acontece no fim do livro, mas bem poderia
ser o “nó” mais importante da trama, a partir do qual as coisas
se esclareceriam e a situação de todas as personagens se
definiriam. Mas não é: é apenas o fim da narrativa, deixando ao
leitor a tarefa de imaginar um milhão de coisas e de tomar suas
próprias conclusões sobre tantas situações mal explicadas ou nem
explicadas.
Estrutura
Há
um prefácio não titulado em que um narrador ou narradora (o texto
não define) apresenta, em primeira pessoa, a cena de pessoas
reunidas contando histórias de terror numa casa velha, no Natal. O
narrador(a) participante se vale do personagem Douglas (protagonista,
nesta primeira parte) para criar a atmosfera, predispondo o leitor
para o gênero e introduzindo o tema, que será a leitura de um
manuscrito antigo, confiado a Douglas há décadas, pela governanta
de sua irmã.
O
primeiro parágrafo é longo – como são os inícios de outros 19
capítulos, de um total de 24 mais o prefácio – e dita a tendência
geral do texto todo, em preferir muitos parágrafos longos e poucos
diálogos.
São
duas narrativas: a do prefácio, preparando para contar outra
história, e esta segunda narrativa. Cada uma tem um
narrador-personagem. Nem na primeira e nem na segunda são ditos os
nomes dos narradores e, na primeira, nem se é homem ou mulher. A
forma das narrativas é linear, sem digressões nem flashbacks
(embora a segunda se refira a acontecimentos ocorridos há 40 anos no
passado, não se trata de flashback,
narrativamente falando).
O
problema das duas narrativas consiste na coincidência de estilo. Se
são narradores diferentes, espera-se, para o bem da verossimilhança,
que contem suas histórias de formas diferentes, haja vista que cada
pessoa tem sua “voz própria”. E isso deveria ser ainda mais
evidente em se tratando de narradores participantes, falando em
primeira pessoa. Mas não, os dois enredos tem características
idênticas, abusam da adjetivação como responsável pela criação
de um efeito de suspense, e mais, praticamente dos mesmos adjetivos e
advérbios. Outras coincidências serão apresentadas, mas façamos
uma análise da primeira narrativa:
1ª
narrativa
O
primeiro parágrafo, abundantemente adjetivado, como já disse, traz
a caracterização do ambiente em que uma história de terror está
sendo contada, e o traz para a proximidade psicológica dos
presentes: uma “casa velha semelhante
àquela em que estávamos”.
É um belo recurso de imersão. Este primeiro parágrafo é eficiente
em provocar curiosidade, que cresce rapidamente nos parágrafos
seguintes, “fisgando” o leitor (na segunda narrativa o crescente
de suspense e curiosidade já é bem mais lento, já que “o peixe
não vai mais largar a linha”).
Prometendo
uma narrativa mais aterrorizante do que aquelas que estavam sendo
contadas na ocasião, Douglas comenta que o fato de um fantasma ter
aparecido a uma criança dá um toque especial à história do
fantasma de Griffin, contada pouco antes. E provoca: “Se uma
criança dá ao fenômeno outra volta do parafuso, o que me diriam de
duas2
crianças?”
(pág.8). A “volta do parafuso” passa a significar, nesse e em
outros momentos do texto, um toque
mais dramático.
A
existência de outras pessoas em redor da lareira tem função
importante para evocar o clima. O narrador, sendo personagem, pode
opinar como ente bem mais concreto do que um narrador não
participante, e ainda conta com diálogos para inserir outras pontos
que poderiam ficar deslocados ou distantes na voz de um narrador
espectador, por exemplo. A escolha do autor foi pertinente, nenhum
pouco aleatória. Funciona.
A
cena é bem criada, Douglas adia o momento de contar a história (e
voltará a fazê-lo), frustra os ouvintes, aumentando o suspense,
dizendo “Não posso começar. Vou ter de mandá-la buscar na
cidade.” [...]. “A história está escrita.” (pág. 8). Ele
dirige a expectativa.
Na
hora de falar do manuscrito que lerá, Douglas valoriza sua
antiguidade e dá carga dramática ao documento: “Está registrado
numa tinta velha e desbotada, e na mais bela das caligrafias”.
[...]. “Letra de mulher. Ela morreu há vinte anos. Foi ela quem me
enviou as páginas em questão antes de morrer.” (pág. 9).
Em
seguida, respondendo à pergunta do narrador(a) sobre o motivo da
coisa ser tão assustadora, Douglas toma-o(a) como cúmplice,
olhando-o(a) fixamente e dizendo “Vocês vão entender”, [...]:
“Você
vai
entender” (pág. 10). Este também é um artifício para nos
envolver. Assim, trabalha a expectativa das personagens,
especialmente do(a) narrador(a), de maneira a formar reflexo em nós
leitores. De repente, o(a) narrador(a) prenuncia para as outras
personagens (e para nós): “[...] todos concordaram comigo que,
depois disso, nada mais atrairia nossa atenção" (pág. 11).
O(A)
narrador(a) enfeita um pouco mais a história se valendo de algo que
vai permear toda a narrativa (a morte) dizendo que a conta tempos
depois, a partir de uma transcrição exata que fez, após Douglas
ter morrido, após ter lhe confiado, em vida, o manuscrito.
Alguns
hóspedes haviam ido embora e, na quarta noite após a promessa da
história, sua partida “[...] teve o efeito de tornar seu público
final ainda mais compacto e seleto, de mantê-lo, em torno da
lareira, submetido a uma emoção comum” (pág. 12). Parece que
o(a) narrador(a) está resumindo a situação deles e excedendo-a
para a nossa, de leitores, supostamente já cativados nesse momento,
cooptados, sintonizados e predispostos, afinados com o desejado
estado de espírito (a “emoção comum”, de que falou).
É
feito um prólogo daquilo que será contado a partir do Capítulo 1,
contextualizando o tempo e espaço da próxima pessoa a narrar, quem
era, como chegou no lugar da ação, quem a contratou, a quem
substituiria, com quem conviveria etc. Nesse ponto, ainda no
prefácio, a caracterização das personagens e ambientes é
econômica, certeira. Os diálogos também são econômicos, servindo
para dar ação, conferir credibilidade ao que está sendo contado,
bem como para situar o leitor na cena de uma contação de histórias.
Muito
interessante é a “presença” furtiva do autor que se imiscui
metaliterariamente para enaltecer, sutilmente e sem aparecer, a
importância de um título apropriado para as histórias:
A narrativa acabou
levando mais de uma noite, mas na primeira delas a mesma senhora fez
outra pergunta. “Que título deu a ela?”
“Não tenho um
título.”
“Ah, mas eu
tenho!”,
disse eu. Porém Douglas, sem me dar atenção, já havia começado a
ler, num belo tom límpido que era como uma tradução sonora da
esmerada letra da autora. (Págs. 15-16).
O
prefácio sintetiza todas as estratégias de escrita e persuasão da
segunda narrativa (com exceção do final do livro), constituindo-se,
por si mesmo, num delicioso objeto de análise de técnicas
narrativas.
2ª
narrativa
O
que foi dito sobre a economia na caracterização das personagens, na
descrição de ambientes, nos diálogos etc., continua da mesma forma
aqui. Em certos momentos tal economia é favorável, noutros,
desfavorável à trama. Os inícios dos capítulos têm, na sua
imensa maioria, parágrafos longos, a adjetivação é intensa e
repetitiva, a construção de efeitos é idêntica à da primeira
narrativa, embora mais lenta. É o que eu havia apontado antes: um e
outro narrador narram exatamente
da
mesma forma, o que “tira tinta” da verossimilhança, também
dolorosamente abalada pelo fato da narradora estar relatando sua
experiência pessoal mas parecer uma narradora onisciente quando se
mete a falar das sensações das crianças. É o caso da observação
“A única coisa que ele sentiu foi uma surpresa pequena e
desagradável” (pág. 155), feita sobre Miles durante uma conversa
que tiveram. Esse tipo de conclusão extrapola as possibilidades de
sua narrativa participante, de quem escreve um diário ou uma
missiva, e que, para ser crível, não deve elucubrar sobre
pensamentos e sentimentos alheios que ela, na vida real, na condição
de personagem, de participante, não teria condições de saber.
Outro
exemplo que atenta contra a verossimilhança pode ser visto no trecho
“Enrubesci, no instante seguinte, quando percebi no rosto de minha
amiga... [...]” (pág 69). Aquele “enrubesci” não deveria
estar em um relato escrito da governanta. É um detalhe que um
interlocutor poderia ver, não a própria narradora. Se ela tivesse
dito, por exemplo, “Lembro-me de sentir meu rosto arder”, seria
menos ruim.
Apresento
um exemplo da adjetivação e da excessiva repetição (quase todo
adjetivo é repetido mais uma vez no mesmo parágrafo ou, no máximo,
no seguinte):
“A senhora ficará
deslumbrada
com o pequeno cavalheiro!”
“Pois bem, creio
que é para isso que estou aqui – para me deslumbrar.
Devo confessar, porém”, lembro que um impulso me levou a
acrescentar, “não é nada difícil me deslumbrar.
Já me deslumbrei
em Londres!” (Pág. 20. Sem sublinhado no original).
Eu
não faço parte da polícia contra adjetivos na literatura. Pelo
contrário, eu gosto deles, mas o excesso – até do melhor perfume
do mundo – dá dor de cabeça. Em A outra volta do parafuso não só
há adjetivos de mais, como suas escolhas são bem exageradas. Dois
exemplos que “gritam” no texto são as palavras ‘extraordinário’
e ‘horrível’ (com todas as suas variantes: horrendo, horroroso
etc.). A primeira se repete tantas vezes, e se trata de uma palavra
tão extraordinariamente grande e impressiva, que se torna um eco em
todo o texto, simplesmente é impossível não tomá-la como um
cacoete do autor. E há também muitas frases exuberantes de mais, do
tipo “Eu fora levada às alturas por uma grande onda de fascínio e
piedade” (pág.29), mas dá para entender tais escolhas como
recursos para situar psicologicamente a narradora em sua tendência
superlativa (ruim é que, lá no prefácio, com outro(a) narrador(a),
são utilizadas construções semelhantes).
É
possível notar, em algumas passagens, uma escolha deliberada de
palavras específicas para aumentar o efeito pré-clímax. Exemplo: a
governanta falava recorrentemente em medo, até que, lá na página
49, substitui-o por “pavor”.
Na
página 95, no meio do livro, a governanta vai além do jogo de
palavras para aumentar a carga dramática, e então transforma a
imagem do cenário, narrando a mudança de estação, do verão para
o outono, deixando o lugar
[...] com seu céu
cinzento e grinaldas murchas, seus espaços esvaziados e folhas secas
espalhadas, era como um teatro após o espetáculo – todo coberto
de programas amassados. Havia no ar os exatos estados, condições de
som e silêncio, impressões indizíveis da espécie
de
momento propício, que me traziam de volta à consciência, pelo
tempo suficiente para que eu a apreendesse, a sensação do meio em
que, naquela tarde de junho ao ar livre, pela primeira vez eu tivera
uma visão de Quint, [...].
O
Capítulo I começa com a descrição de sensações sem, no entanto,
esmiuçá-las. Há uma das raras alusões a cores (Cf. final da pág.
17). O texto chama a atenção para a diferença de classes sociais,
intensificando as contradições entre o mundo que a governanta
conhecia e aquele novo que se lhe apresenta.
O
texto é muito restrito aos sentidos da visão e da audição. Pouco
trata do tato e, muito menos ainda, do olfato. Mais descrições
sensíveis, do tipo cheiros, sabores, cores etc., poderiam dar mais
concreção às impressões.
Há
um coloquialismo na narrativa em primeira pessoa, que aproxima a
narradora do leitor e a torna mais “concreta”.
É
interessante ver a técnica em ação nas coisas mínimas. É o caso,
por exemplo, de “Passei a vigiá-las num suspense
sufocado,
[...].” (pág. 54). A repetição “su” e “su”, sibilada, dá
a ideia de sussurro, reforçando a sensação de “suspense
sufocado”.
Alguns
preconceitos (de gênero etc., e até de tipos de livros) são
evidenciados, como em “O mais espantoso de tudo era constatar que
havia no mundo um menininho capaz de ter tanta consideração por
alguém de idade, sexo e inteligência inferiores.” (pág. 73), ou
em “Havia uma sala cheia de livros velhos em Bly – alguns eram
obras de ficção do século passado, que tinham chegado, sob forma
de uma notoriedade claramente reprovada, [...]. “(pág. 74).
No
segundo capítulo há um novo exemplo de adiamento para gerar
suspense. O patrão manda uma carta para a governanta falando sobre
uma outra missiva, do diretor do colégio de Miles. É feito um
rodeio, gerada uma expectativa para, de repente, dizer somente: “O
que isso significa? O menino foi desligado da escola”. E nada sobre
os motivos, que nem no final da história se esclarecem direito.
O
nó da história se dá quando a governanta vê o fantasma pela
primeira vez (pág. 32 e ss.). É muito interessante como a narradora
descreve a cena da visão, fazendo com que nós, leitores,
construamos com toda liberdade a imagem do homem que ela vê e, daí
a mais de dez páginas, descreve-o detalhadamente, dirigindo-nos,
remodelando a imagem que já havíamos livremente criado (pág. 45).
Essa estratégia é usada outras vezes no texto.
Seguem-se
outras visões e a degradação sutil da relação da governanta com
as crianças. Ela desconfiava, desde o início, da ventura de estar
em Bly, da perfeição daquela casa, daquele emprego, principalmente
daquelas crianças, sobre quem, em determinado momento, chegou a
dizer à senhora Grose: ‘“A beleza celestial dos dois, sua
bondade absolutamente antinatural.
É um jogo”’,
prossegui; ‘“é uma tática,
uma fraude!”’
(pág. 89. Sem negrito no original). E assim ela foi construindo,
primeiro mentalmente, depois concretamente, um julgamento e uma
situação, como exemplifica a continuação do trecho citado acima:
“Da parte de
minhas criancinhas queridas...?”
“Desses pequeninos
tão lindos? Sim, por mais que pareça loucura!” O próprio ato de
pôr em palavras me ajudava a compreender – a juntar as peças uma
por uma e formar um todo. [...]. (pág. 89).
Ela
se desilude com as crianças e as vê corrompidas e más.
Para
mim, a história é sobre como alguém, mesmo em situações
aparentemente seguras, perfeitas e felizes, consegue não partilhar
delas como naturalmente se espera. É sobre os desequilíbrios,
traumas e inseguranças da própria governanta, que simplesmente não
podia acreditar que tudo estava dando tão certo para si. Via mesmo
fantasmas ou estava alucinando? O livro leva a crer que via, mas
mesmo isso parece advir de seu estado de espírito predisposto a
criar um enredo, algum problema que justificasse sua desconfiança
acerca daquela perfeição toda. Nesse sentido, a obra não diz tanto
respeito aos fantasmas e às crianças, mas sobre ela, a governanta.
Final
do livro
O
final é um show à parte, um clímax surpreendente, mas não um
desfecho, no sentido de meio de resolução do conflito. Este fica em
aberto. O livro termina onde as explicações deveriam começar. Há
um choque, uma ruptura abrupta. Essa é a sacada de mestre do autor,
que deixa ao leitor, desnorteado, a tarefa de imaginar finais
possíveis para a trama.
É
um final fatal, tanto figurativa quanto literalmente. Quando parece
que o melhor vai começar, o livro acaba. É um romance do não dito.
O
arco dramático – que normalmente apresenta uma conclusão fechada
para histórias focadas nas ações dos personagens e na progressão
do enredo, centradas um único protagonista e que têm relação
clara de causalidade, bem como cronologia linear – é incomum: não
conclui, cabalmente, nada. E pode tanto ter levado a governanta do
estado de inocente a vítima, quanto de inocente a assassina de uma
criança3.
O
que mais interessa ao autor, acredito, é que o final é
inesquecível, por tudo que não explica, por tudo que nos faz
imaginar para além dele.
Alguns
comentários esparsos
O
leitor de ficção já tem um trato tácito com o autor de que vai
tentar acreditar naquilo que ele inventou. Pelo menos para mim,
histórias de fantasmas parecem mais verdadeiras na vida real do que
na ficção – talvez pelas ênfases da linguagem não verbal de
quem diz ter visto, pela tentativa do ouvinte de não ridicularizar
quem fala etc. – de modo que, no papel, o esforço deve ser bem
mais medido e bem pensado. Em A
outra volta do parafuso,
um texto de ficção, o autor insere inicialmente um narrador (ou
narradora), que diz que vai contar uma história verdadeira (ponto
positivo, indução), que será, no final das contas, a leitura
daquilo que escreveu quem a vivenciou (2ª narradora). Aquele
primeiro narrador e aquelas personagens do prefácio nunca mais
aparecem no texto, só serviram para “preparar”, “envolver” o
leitor. Ou seja, a estrutura é de patamares, imergindo
deliberadamente o leitor, um degrau de cada vez, nas profundezas de
um estado psicológico propício para chegar aos efeitos pretendidos
pelo autor.
Também
há omissões que confirmam alguma coisa sem, no entanto, confirmá-la
explicitamente, apresentando fato novo que não é bem explicado nem
aprofundado, a exemplo do trecho em que a governanta fala com a
senhora Grose sobre Quint:
[…]. “Então a
senhora me garante – pois isso é da maior importância – que ele
era definitiva e assumidamente mau?
“Ah,
assumidamente, não. Eu
sabia,
mas o patrão não.”
Essa
fórmula de dizer um pouco sem responder a quaisquer porquês,
aumenta a sensação do leitor de não ter acesso a tudo, de estar
tratando com algo realmente misterioso. Em outras vezes, algo é dito
sucintamente e só retomado com novas informações bem à frente na
trama. O leitor fica com a pergunta “por que a narradora não falou
tudo isso da primeira vez que tocou no assunto?”. A resposta é
obvia: para alimentar o suspense. O mesmo ocorre, por exemplo, em
“[...] se eu tivesse me poupado – bem, logo se verá do quê”,
nas páginas 78 e 79, onde ela anuncia a tensão mas deixa as
explicações para depois.
Que
narradora confessa uma mentira que depõe contra sua própria
credibilidade junto ao leitor que quer convencer? A governanta faz
isso quando inventa (e nos revela esse expediente), para a senhora
Grose, a conversa que teve com Miss Jessel, afirmando que ela diz
sofrer os tormentos dos perdidos, dos danados (Cf. págs. 110-111).
Nesta
obra, o autor é um grande ilusionista sugestionador, enfatiza e
dirige muito bem os efeitos da narrativa. Talvez o uso repetitivo de
adjetivos e advérbios específicos e exagerados, martelando
cadenciadamente no texto, quase num padrão de tempo, seja uma
estratégia de reforço subliminar para manter e afundar o sulco da
marca psicológica criada.
Henry
James mantém a tensão narrativa de forma parabólica regular, no
tempo e no espaço narrativos, através de ondas que vão crescendo e
culminam em pequenos clímax (as aparições), até que uma onda
maior acontece: o desfecho. Parece tudo calculado para que os altos e
baixos da tensão ocorram em intervalos periódicos sequenciais
iguais, garantindo uma cadência perfeita e mantendo o fluxo de
sensações provocadas no leitor.
É
um livro que eu jamais leria, se estivesse elegendo livremente
conforme minhas preferências literárias. E acredito que não verei
nenhuma das adaptações para cinema. É que o gênero não me
estimula. Desafiei-me à leitura e, agora, reconheço o privilégio
de ter lido uma história tão bem construída, orquestrada para dar
certo, precisa como os mecanismos de um relógio.
Não
é à toa que A
Outra Volta do Parafuso foi,
tantas vezes, adaptado para o cinema. É breviloquente, apela às
emoções, dá muita margem para interpretações. Além disso,
possui poucos personagens e as cenas se passam quase todas em Bly, o
que exige poucas locações, barateando a produção. É o segundo
livro que leio (o outro é O
Grande Gatsby,
de Scott Fitzgerald) que parece ter sido escrito para cinema.
A
edição
A
tradução de Paulo Henriques Britto não deixou qualquer passagem
mal-acabada, daquelas que deixam a impressão de adaptação forçada.
Graças à preparação de Ciça Caropreso e à revisão de Jane
Pessoa e Marise Leal, não consegui identificar qualquer erro
ortográfico nem falta de padronização. A escolha de hifenizar as
palavras na margem direita é interessante e nostálgica, lembra a
edição mais “artesanal” que se obtinha com as máquinas de
escrever.
Trata-se
de uma edição de bolso. A escolha tipográfica é boa, o tamanho da
fonte é um pouco pequeno. Isto parece ser uma escolha acertada,
porque embora o texto seja denso – com parágrafos longos, formando
blocos sólidos de texto – a letra pequena se adequa à tensão do
texto, provocando, na minha opinião, maior imersão no suspense.
Outra vantagem é que o livro tem poucas páginas, dando a ideia de
leitura rápida, apesar das letrinhas. A ampla mancha gráfica é bem
dimensionada, com os dois centímetros de margem direita minimizando
o efeito de “condensação”, da edição econômica.
A
capa não tem orelhas e mede, como o miolo do livro, 20 x 13 cm. Um
recorte da xilogravura Os
Solitários – Two Peoples. The Lonely Ones
– de Edvard Munch, gravada em 1899, a ilustra. A obra é releitura
de um tema já pintado por Munch, em 1894, e repetido posteriormente,
em 1930. Tem a força expressionista característica das criações
do autor (amplamente conhecido pelas quatro versões de O
Grito,
dentre outras obras-primas).
Foi
muito acertada a escolha de Os
Solitarios para
a capa do livro. Lendo A
Outra Volta do Parafuso
é impossível não ver, nas duas personagens gravadas por Munch, as
figuras de Peter Quint e Miss Jessel.
Abro
um parêntesis para dar, em três parágrafos, minha breve
interpretação estrutural da tela Os
Solitários – Two Peoples. The Lonely Ones
– de Edvard Munch:
As
figuras do quadro estão de costas, em frente ao que parece ser um
lago, próximos mas distantes um do outro, numa relação de
cumplicidade sugerida (o pé esquerdo e a cabeça do personagem
masculino se voltam para a moça) mas de forte contraste (visível na
preponderância do branco e do preto). O homem permanece um pouco
atrás da moça, com os braços na mesma posição que ela, parecendo
uma sombra. Ela olha para o “infinito” do lago, o homem, para
ela. Na realidade, embora o homem ocupe o primeiro plano perspectivo,
estando mais próximo do observador – e tanto ele quanto ela
estejam em posições equilibradas e equidistantes na tela – a
mulher é o primeiro plano da cena. Tudo se volta para ela. O
destaque de ser pintada em branco evidencia isso.
O
título, Os
Solitários,
induz textualmente nossa interpretação, completando a cena pesada,
escura e fechada (por retratar os personagens de costas). No chão,
entre eles e também do lado direito do personagem masculino, há
duas figuras em branco que me fazem ver – inevitavelmente como nas
associações involuntárias que fazemos quando olhamos para nuvens
que se parecem com algo – dois rostos que miram, lúgubres e
fantasmáticos, a moça.
Munch, Edvard (1899)
Duas Pessoas. Os Solitários – Two
People. The Lonely Ones
O
impressionismo reduz as cenas a seus tons mais fortes e
impressionantes, superlativos, representando o efeito pungente
causado no autor da obra – efeito que ele pretende replicar (já a
primeira vista e de forma impactante) no interprete que vê seu
quadro. O expressionismo tem a mesma força estilístico-visual do
impressionismo, mas destaca, principalmente, o momento psicológico,
os sentimentos (geralmente negativos, de angústia, ansiedade, terror
etc.), das personagens pintadas. É esse o “fundo” de Os
Solitários,
de Munch.
Não
é da tensão impressionista e do sofrimento psicológico de uma
personagem (a governanta) que trata A
Outra Volta do Parafuso?
Se a tela tivesse sido encomendada para ilustrar a capa do livro não
teria sido mais perfeita. Coube como a mão e a luva.
Dois
terços da primeira capa são ocupados por Os
Solitários,
de Munch. O terço restante traz a marca Penguin / Companhia em fundo
branco seguida da coleção, do nome do autor e, no final, no pé da
página, do título do livro, todos em fundo preto. Nos livros
publicados pela Penguin, a marca ganha mais destaque na primeira capa
do que o título da obra e o nome do autor.
A
quarta capa começa com uma citação direta, narrando uma das
aparições presenciadas pela governanta. É um artifício que nos
põe em contato com a verve da escrita do autor, antes mesmo de
abrirmos o livro. Segue uma sinopse, que adianta o gênero do livro
(tive a sorte de deixar para ler a quarta capa só no final, entrei
na história sem saber do que se tratava).
Breve
biografia do autor
“Os
romances de Henry James, que abrangem o período de 1876 a 1904,
estão preocupados com o que tem sido chamado de tragédia das boas
maneiras. A sociedade que James projeta é sofisticada, sutil e
sinistra. Os inocentes e os bons são destruídos [...]”
(Enciclopédia Britânica4).
Henry James nasceu em Nova York
em 15 de abril de 1843 e morreu em Londres, no dia 28 de fevereiro de
1916. A inocência e exuberância do Novo Mundo, em contradição com
a sabedoria e corrupção do Velho constituem o tema fundamental de
sua obra.
Henry foi um menino tímido,
aficionado por livros, educado – ele e seu irmão mais velho –
por tutores e governantas. Aos 21 anos começa a publicar suas
primeiras histórias e logo passa a ser considerado um dos mais
habilidosos escritores de contos da América. Era criticado por
escrever mais sobre os aspectos psicológicos dos personagens do que
sobre a ação. Fez resenhas, artigos, contos, por mais de uma década
antes de se aventurar em um romance. Nunca se casou e, embora fosse
amigável e participante da sociedade da sua época, na meia-idade
podia ser classificado como “distante”.
Naquela que é considerada a
segunda fase (ou fase intermediária, anterior àquela que viria a
ser chamada de sua fase “maior”) de sua carreira, James escreveu,
dentre outros livros, “A Outra Volta do Parafuso”, já utilizando
“[...] os métodos
de alternar 'imagem' e cena dramática, aderência estreita a um
determinado ângulo de visão, uma retenção de informações do
leitor, disponibilizando para ele apenas o que os personagens veem.
Os sujeitos desse período são o desenvolvimento da consciência e
da educação moral das crianças – na verdade, o antigo tema
internacional da inocência de James em um mundo corrupto,
transferido para o cenário inglês.” (ibidem).
Henry James teve uma
das mais longas e produtivas carreiras entre os escritores
americanos. Com um estilo individual e marcante, escreveu, em 51
anos, vinte romances, cento e doze contos, doze peças, várias
críticas, relatos de viagens e jornalismo literário. “Seu tema
fundamental era o de uma América inocente, exuberante e democrática,
confrontando a sabedoria e a corrupção mundanas da cultura
aristocrática mais antiga da Europa.” (EDEL, Leon. Idem.). Gostava
de escrever sobre a realidade, mas sob a perspectiva pessoal e
peculiar do artista. “[...] foi reconhecido no final do século 20
como um dos mais sutis artesãos que já praticaram a arte do
romance.”
Henry James, placa de vidro negativa, c. 1910
Biblioteca do Congresso, Washington, DC (LC-DIG-ggbain-04703)
Notas
1
Cf. lista de adaptações em
<https://www.tudosobreseufilme.com.br/2016/03/a-volta-do-parafuso-no-cinematv.html>
.
2
O autor utiliza muito o recurso de destacar em itálico aquilo que
pretende enfatizar nos diálogos.
3
Se a governanta foi amiga de Douglas e tutora de sua irmã, sem
dúvida não foi responsabilizada, à época dos fatos narrados por
ela, pela cogitável (por mim, pelo menos) morte de Miles, embora
seja uma hipótese plausível.
4
Enciclopédia Britânica. Disponível em
<https://www.britannica.com/art/tragedy-literature/The-American-tragic-novel#ref504880>
, acesso em 26 dez. 2018.
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