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sexta-feira, 10 de maio de 2019

Análise de FACA SEM PONTA, GALINHA SEM PÉ, de Ruth Rocha


ANÁLISE DO LIVRO FACA SEM PONTA, GALINHA SEM PÉ, DE RUTH ROCHA, SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DE GÊNERO

Juliano Barreto Rodrigues

Faca sem ponta, galinha sem pé é um livro infantil brasileiro premiado e filmado (Cf. Referências), indicado, no site1 da autora Ruth Rocha, para leitores com 7 a 9 anos de idade. Grande sucesso editorial desde a primeira publicação, em 1983, tem como tema a questão de gênero. Dois irmãos, Pedro e Joana, discutem no dia a dia porque Joana quer fazer coisas que Pedro classifica como de menino e ela, por sua vez, implica com ele quando ele chora vendo algum filme ou fica se olhando no espelho com uma roupa nova. O argumento do texto está fundado na pergunta: há realmente coisas só de menino ou de menina?

Um dia Pedro e Joana passam debaixo de um arco-íris e se transformam (é o nó da história): Pedro vira Pêdra e Joana vira Joano. Fica uma menina em corpo de menino e vice-versa. Continua o conflito do que seriam coisas de menino ou de menina até que eles passam novamente por baixo do arco-íris, já com uma nova visão sobre a questão.

Título

O título é parte de um aforismo popular antigo que dizia “Homem com homem, mulher com mulher, faca sem ponta, galinha sem pé”, e que virou cantilena infantil nos anos 50 do século passado, se cantando para separar as brincadeiras de meninas das de meninos (CRITELLI, 2008). Xavier Toledo conta, no livro Visita aos Presídios do Brasil Império, que Dom Pedro II, em uma inspeção ao Hospício da Murrinha, ouviu um doente mental repetir essa frase sem parar. 
 
Parece que se atenuou o significado, fazendo com que a segunda parte do ditado (faca sem ponta, galinha sem pé) seja entendida como sinônimo da primeira. Porém, a segunda parte parece uma sentença pejorativa utilizada para reprimir especialmente os meninos: “faca sem ponta” é faca que não fura, que não agride, que funciona pela metade. “Galinha sem pé” remete a uma cruel e impactante brincadeira de roça que, às vezes, se fazia antes de finalmente degolar ou torcer o pescoço da galinha que ia para a panela, consistindo em cortar seus pés e lançá-la ao chão, ainda viva, para vê-la ficar só se debatendo espalhafatosamente. Tudo indica uma alusão a “trejeitos”, para constranger os meninos a não participarem de brincadeiras consideradas “de meninas”.

Discussão

Tomaz Tadeu Silva, em As relações de gênero e a pedagogia feminista traz um conceito estabelecido de gênero como significando os “[...] aspectos socialmente construídos do processo de identificação sexual” (SILVA, 2017, pág. 91) ou, como resumiu anteriormente Christine Delphy, “um produto social que constrói o sexo” (DELPHI apud. AUAD, 2006, pág. 20). Assim, sexo não é sinônimo de gênero, “as características e diferenças anatômicas são enxergadas, percebidas e valorizadas do modo como são, e não de outro modo, graças à existência das relações de gênero socialmente construídas” (AUAD, 2006, págs. 21-22).

Como diz AUAD (ibidem), a sociedade percebe cada um dos gêneros polarizadamente, sendo que o “[...] pertencimento a um gênero prevê a negação e o distanciamento ao sexo que não é o seu, o chamado sexo 'oposto'” (ibidem, pág. 22). É feita a correspondência de atributos como força, coragem, ímpeto e outros, ao gênero masculino, e meiguice, paciência, fragilidade etc., ao feminino. Tal ideia de oposição reforça desigualdades e faz as pessoas menos felizes (ibidem).

A chave está em atinar que, ainda que notemos características tipicamente masculinas ou femininas em homens e mulheres, muitas diferenças que consideramos entre eles não são naturais, mas construções socioculturais, senso comum. É essa a lição do livro de Ruth Rocha. Há um diálogo entre Pêdra e Joano que reflete bem isso: 
 
[…] Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular sela...
Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não podia – reclamou Joano.
Mas é que todo mundo diz isso – disse Pêdra. – Que menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa... [sem sublinhado no original]. (ROCHA, 2009, pág. 19).

A autora parece ter escolhido os nomes dos pais das crianças, Dona Brites e Seu Setúbal, pensando em reforçar a impressão de uma família “tradicional”, pois são nomes antigos, incomuns até para os anos 80. Há também a utilização, pelo narrador ou narradora, de algumas palavras e construções antiquadas, talvez com o intuito de provocar a mesma impressão – até as crianças utilizam algumas expressões anacrônicas, como é o caso de “encarapitada” (pág. 8), e de “Então vire-se” (pág. 23), esta usada no sentido de “resolva por si mesmo”, expressões que depõem até contra a verossimilhança. Que criança fala assim?

Essa família vê como um “problema” a situação das crianças (“problema”, palavra literal usada nas páginas 17 e 18 pelo pai e pelo narrador – ou narradora – ao se referirem à indecisão sobre como vestir as crianças). Há um diálogo que indica seu julgamento:

Acho melhor nem contarmos pra ninguém – dizia seu Setúbal.
Mas como é que vai ser? – argumentava dona Brites. – Todo mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior...
E o nome deles, como é que fica?
É mesmo! – choramingou dona Brites. […]. [sublinhamos]. (Ibidem, pág. 16).

Da reação de negação e do medo do outro “pensar coisa pior”, fica subentendido, ou sugerido, o temor da identificação alheia com a homossexualidade. SILVA (2017) afirma, tratando da teoria queer, que “Em geral, é a identidade homossexual que é vista como um problema” (pág. 106), já que a heterossexualidade é considerada normal pelo senso comum. 
 
A teoria queer contesta essa fixação identitária e toda forma de conhecimento hegemônico baseado na lógica heterossexual (predominantemente masculina). “O homossexual é o queer, o estranho da sexualidade, mas essa estranheza é virada contra a cultura dominante [...]” (ibidem, pág. 107). 
 
O livro de Ruth Rocha talvez não tivesse sido aceito no currículo escolar tradicional há tantos anos se tivesse apresentado personagens homossexuais. Nas palavras de LOURO (2008, pág. 67), “Não há lugar, no currículo, para a idéia de multiplicidade (de sexualidade ou de gênero) – essa é uma idéia insuportável”. Ruth transitou entre os gêneros masculino e feminino e manteve a temática homossexual excluída ou só sugerida sutilmente. TAVARES (2015) tem uma explicação para a fácil receptividade da obra no meio educacional: 
 
Quando Joana, Pedro, Joano e Pêdra, personagens de Faca sem ponta, galinha sem pé (ROCHA, 2000) são apresentadas para o público infantil, expõem claramente o motivo pelo qual a obra pode ser aceita no universo escolar: o retorno à origem de gênero normalizada no final da história (TAVARES, 2015, pág. 93).

Educacionalmente, o próximo passo é “estranhar o currículo”, trazendo as personagens queerizadas para a literatura, a fim de causar também o estranhamento das verdades impostas acerca de gênero e sexualidade, que têm admitido apenas duas configurações: o masculino e, como oposição, o feminino. Como disse LOURO (2008, pág. 56), “[...] havia um claro limite para pensar nesse terreno – o limite estava na sexualidade ou, mais especificamente, na homossexualidade”, tratada até então como um “problema” a ser corrigido.

[...] as personagens queerizadas não seriam aquelas que passariam a compor as narrativas infantis como figuras a serem incluídas, toleradas ou reconhecidas por suas características consideradas estranhas. Seriam personagens construídas evidenciando que as identidades são instáveis e admitem múltiplas combinações, fazendo com que a diferença deixasse de estar ausente e se fizesse presente. (TAVARES, 2015, pág. 90)

Meninos e meninas têm sido marcados a partir de uma construção histórica e cultural. “[...] o que faz Pedro ser menino e Joana ser menina são normas regulatórias que procuram garantir o modelo binário e heteronormativo na construção do gênero e da sexualidade” (TAVARES, 2015, pág. 95).

No final do livro os irmãos Pedro e Joana percebem que as diferenças de gênero são construídas e as superam (arco dramático das personagens), 
 
[...] porque essa viagem para dentro deles mesmos confirmou a existência de características tidas como femininas ou masculinas em ambos.
Ruth Rocha permite que o leitor perceba, juntamente com os personagens, o caráter ideológico das diferenciações de gênero, fazendo-o analisar criticamente, a partir deste novo ponto de vista, suas próprias práticas. A leitura proporciona uma visão questionadora quanto à manutenção de uma sociedade sexista. (FINCO, 2004, pág. 62)

Assim, Faca sem ponte, galinha sem pé é um livro fundamental para integrar o currículo, mas é apenas uma porta de entrada para literaturas e práticas (Cf. AUAD, 2005) que aprofundem nas questões de gênero.

Referências

Teórico-críticas

AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto., 2006, p. 13-23.

FINCO, Daniela. Faca sem ponta, galinha sem pé, homem com homem, mulher com mulher: relações de genero nas brincadeiras de meninos e meninas na pre-escola. 2004. 171 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/252827>. Acesso em: 13 mar. 2019.

LOURO, Guacira Lopes. Estranhar o currículo. In: ___. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 55-73.

SILVA, Tomaz Tadeu da. As relações de gênero e a pedagogia feminista. In: ___ . Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. São Paulo: Autêntica, 2017, p. 91-97.

TAVARES, Evelize Cristina. Faca sem ponta, galinha sem pé, homem com homem, mulher com mulher: quem defende a personalidade Queer nos livros para a infância? Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. 191 f. Disponível em: < https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/38166>. Acesso em 13 mar. 2019.

Artigo

CRITELLI, Dulce. Coisas de Homem e de Mulher. Equilíbrio. Outras Idéias. Folha de São Paulo. 02 out. 2008. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0210200801.htm> . Acessado em 13 mar. 2019.

Obra literária

ROCHA, Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé. São Paulo: Moderna, 2009.

Filmografia

FACA sem ponta, galinha sem pé. Direção de Antônio Carlos de Fontoura. Rio de Janeiro: Tv Brasil, EBC, 2010. (12 min.), son., color. Youtube. Disponível em: <https://youtu.be/m3ftV5ZJNdo>. Acesso em 10 mar. 2019.

Notas
 
1 CF. <http://www.ruthrocha.com.br/livro/faca-sem-ponta-galinha-sem-pe>




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