ANÁLISE
DO LIVRO FACA SEM PONTA, GALINHA SEM PÉ,
DE RUTH
ROCHA, SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DE GÊNERO
Juliano
Barreto Rodrigues
Faca
sem ponta, galinha sem pé
é um livro infantil brasileiro premiado e filmado (Cf.
Referências), indicado, no site1
da autora Ruth Rocha, para leitores com 7 a 9 anos de idade.
Grande sucesso editorial desde a primeira publicação, em 1983,
tem como tema a questão de gênero. Dois irmãos, Pedro e Joana,
discutem no dia a dia porque Joana quer fazer coisas que Pedro
classifica como de menino e ela, por sua vez, implica com ele
quando ele chora vendo algum filme ou fica se olhando no espelho
com uma roupa nova. O argumento do texto está fundado na
pergunta: há
realmente coisas só de menino ou de menina?
Um
dia Pedro e Joana passam debaixo de um arco-íris e se transformam
(é o nó da história): Pedro vira Pêdra e Joana vira Joano.
Fica uma menina em corpo de menino e vice-versa. Continua o
conflito do que seriam coisas de menino ou de menina até que eles
passam novamente por baixo do arco-íris, já com uma nova visão
sobre a questão.
Título
O
título é parte de um aforismo popular antigo que dizia “Homem
com homem, mulher com mulher, faca sem ponta, galinha sem pé”,
e que virou cantilena infantil nos anos 50 do século passado, se
cantando para separar as brincadeiras de meninas das de meninos
(CRITELLI, 2008). Xavier Toledo conta, no livro Visita aos
Presídios do Brasil Império, que Dom Pedro II, em uma
inspeção ao Hospício da Murrinha, ouviu um doente mental
repetir essa frase sem parar.
Parece
que se atenuou o significado, fazendo com que a segunda parte do
ditado (faca sem ponta, galinha sem pé) seja entendida como
sinônimo da primeira. Porém, a segunda parte parece uma sentença
pejorativa utilizada para reprimir especialmente os meninos: “faca
sem ponta” é faca que não fura, que não agride, que funciona
pela metade. “Galinha sem pé” remete a uma cruel e impactante
brincadeira de roça que, às vezes, se fazia antes de finalmente
degolar ou torcer o pescoço da galinha que ia para a panela,
consistindo em cortar seus pés e lançá-la ao chão, ainda viva,
para vê-la ficar só se debatendo espalhafatosamente. Tudo indica
uma alusão a “trejeitos”, para constranger os meninos a não
participarem de brincadeiras consideradas “de meninas”.
Discussão
Tomaz
Tadeu Silva, em As relações de gênero e a pedagogia
feminista traz um conceito estabelecido de gênero como
significando os “[...] aspectos socialmente construídos do
processo de identificação sexual” (SILVA, 2017, pág. 91) ou,
como resumiu anteriormente Christine Delphy, “um produto social
que constrói o sexo” (DELPHI apud. AUAD, 2006, pág. 20).
Assim, sexo não é sinônimo de gênero, “as características e
diferenças anatômicas são enxergadas, percebidas e valorizadas
do modo como são, e não de outro modo, graças à existência
das relações de gênero socialmente construídas” (AUAD, 2006,
págs. 21-22).
Como
diz AUAD (ibidem), a sociedade percebe cada um dos gêneros
polarizadamente, sendo que o “[...] pertencimento a um gênero
prevê a negação e o distanciamento ao sexo que não é o seu, o
chamado sexo 'oposto'” (ibidem, pág. 22). É feita a
correspondência de atributos como força, coragem, ímpeto e
outros, ao gênero masculino, e meiguice, paciência, fragilidade
etc., ao feminino. Tal ideia de oposição reforça desigualdades
e faz as pessoas menos felizes (ibidem).
A
chave está em atinar que, ainda que notemos características
tipicamente masculinas ou femininas em homens e mulheres, muitas
diferenças que consideramos entre eles não são naturais, mas
construções socioculturais, senso comum. É essa a lição do
livro de Ruth Rocha. Há um diálogo entre Pêdra e Joano que
reflete bem isso:
– […]
Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular
sela...
– Ué,
eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que
menina não podia – reclamou Joano.
– Mas
é que todo mundo diz isso – disse Pêdra. – Que
menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa... [sem
sublinhado no original]. (ROCHA, 2009, pág. 19).
A
autora parece ter escolhido os nomes dos pais das crianças, Dona
Brites e Seu Setúbal, pensando em reforçar a impressão de uma
família “tradicional”, pois são nomes antigos, incomuns até
para os anos 80. Há também a utilização, pelo narrador ou
narradora, de algumas palavras e construções antiquadas, talvez
com o intuito de provocar a mesma impressão – até as crianças
utilizam algumas expressões anacrônicas, como é o caso de
“encarapitada” (pág. 8), e de “Então vire-se” (pág.
23), esta usada no sentido de “resolva por si mesmo”,
expressões que depõem até contra a verossimilhança. Que
criança fala assim?
Essa
família vê como um “problema” a situação das crianças
(“problema”, palavra literal usada nas páginas 17 e 18 pelo
pai e pelo narrador – ou narradora – ao se referirem à
indecisão sobre como vestir as crianças). Há um diálogo que
indica seu julgamento:
– Acho
melhor nem contarmos pra ninguém – dizia seu Setúbal.
– Mas
como é que vai ser? – argumentava dona Brites. – Todo
mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior...
– E
o nome deles, como é que fica?
– É
mesmo! – choramingou dona Brites. […]. [sublinhamos].
(Ibidem, pág. 16).
Da
reação de negação e do medo do outro “pensar coisa pior”,
fica subentendido, ou sugerido, o temor da identificação alheia
com a homossexualidade. SILVA (2017) afirma, tratando da teoria
queer, que “Em geral, é a identidade homossexual que é
vista como um problema” (pág. 106), já que a
heterossexualidade é considerada normal pelo senso comum.
A
teoria queer contesta essa fixação identitária e toda
forma de conhecimento hegemônico baseado na lógica heterossexual
(predominantemente masculina). “O homossexual é o queer,
o estranho da sexualidade, mas essa estranheza é virada contra a
cultura dominante [...]” (ibidem, pág. 107).
O
livro de Ruth Rocha talvez não tivesse sido aceito no currículo
escolar tradicional há tantos anos se tivesse apresentado
personagens homossexuais. Nas palavras de LOURO (2008, pág. 67),
“Não há lugar, no currículo, para a idéia de multiplicidade
(de sexualidade ou de gênero) – essa é uma idéia
insuportável”. Ruth transitou entre os gêneros masculino e
feminino e manteve a temática homossexual excluída ou só
sugerida sutilmente. TAVARES (2015) tem uma explicação para a
fácil receptividade da obra no meio educacional:
Quando
Joana, Pedro, Joano e Pêdra, personagens de Faca sem ponta,
galinha sem pé (ROCHA, 2000) são apresentadas para o público
infantil, expõem claramente o motivo pelo qual a obra pode ser
aceita no universo escolar: o retorno à origem de gênero
normalizada no final da história (TAVARES, 2015, pág. 93).
Educacionalmente,
o próximo passo é “estranhar o currículo”, trazendo as
personagens queerizadas para a literatura, a fim de causar também
o estranhamento das verdades impostas acerca de gênero e
sexualidade, que têm admitido apenas duas configurações: o
masculino e, como oposição, o feminino. Como disse LOURO
(2008, pág. 56), “[...] havia um claro limite para pensar nesse
terreno – o limite estava na sexualidade ou, mais
especificamente, na homossexualidade”, tratada até então como
um “problema” a ser corrigido.
[...]
as personagens queerizadas não seriam aquelas que passariam a
compor as narrativas infantis como figuras a serem incluídas,
toleradas ou reconhecidas por suas características consideradas
estranhas. Seriam personagens construídas evidenciando que as
identidades são instáveis e admitem múltiplas combinações,
fazendo com que a diferença deixasse de estar ausente e se
fizesse presente. (TAVARES, 2015, pág. 90)
Meninos
e meninas têm sido marcados a partir de uma construção
histórica e cultural. “[...] o que faz Pedro ser menino e Joana
ser menina são normas regulatórias que procuram garantir o
modelo binário e heteronormativo na construção do gênero e da
sexualidade” (TAVARES, 2015, pág. 95).
No
final do livro os irmãos Pedro e Joana percebem que as diferenças
de gênero são construídas e as superam (arco dramático das
personagens),
[...]
porque essa viagem para dentro deles mesmos confirmou a existência
de características tidas como femininas ou masculinas em ambos.
Ruth
Rocha permite que o leitor perceba, juntamente com os personagens,
o caráter ideológico das diferenciações de gênero, fazendo-o
analisar criticamente, a partir deste novo ponto de vista, suas
próprias práticas. A leitura proporciona uma visão
questionadora quanto à manutenção de uma sociedade sexista.
(FINCO, 2004, pág. 62)
Assim,
Faca sem ponte, galinha sem pé é um livro fundamental
para integrar o currículo, mas é apenas uma porta de entrada
para literaturas e práticas (Cf. AUAD, 2005) que aprofundem nas
questões de gênero.
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Referências
Teórico-críticas
AUAD,
Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na
escola. São Paulo: Contexto., 2006, p. 13-23.
FINCO,
Daniela. Faca sem ponta, galinha sem pé, homem com homem, mulher com
mulher: relações de genero nas brincadeiras de meninos e meninas na
pre-escola. 2004. 171 p. Dissertação (mestrado) - Universidade
Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP.
Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/252827>.
Acesso em: 13 mar. 2019.
LOURO,
Guacira Lopes. Estranhar o currículo. In: ___. Um corpo estranho:
ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008, p. 55-73.
SILVA,
Tomaz Tadeu da. As relações de gênero e a pedagogia feminista. In:
___ . Documentos de identidade: uma introdução às teorias
do currículo. São Paulo: Autêntica, 2017, p. 91-97.
TAVARES,
Evelize Cristina. Faca sem ponta, galinha sem pé, homem com
homem, mulher com mulher: quem defende a personalidade Queer nos
livros para a infância? Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. 191 f. Disponível
em: < https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/38166>. Acesso
em 13 mar. 2019.
Artigo
CRITELLI,
Dulce. Coisas de Homem e de Mulher. Equilíbrio. Outras Idéias.
Folha de São Paulo. 02 out. 2008. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0210200801.htm>
. Acessado em 13 mar. 2019.
Obra
literária
ROCHA,
Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé. São Paulo: Moderna,
2009.
Filmografia
FACA
sem ponta, galinha sem pé.
Direção de Antônio
Carlos de Fontoura. Rio de Janeiro: Tv Brasil, EBC, 2010. (12 min.),
son., color. Youtube. Disponível em:
<https://youtu.be/m3ftV5ZJNdo>.
Acesso em 10 mar. 2019.
Notas
Excelente!Parabéns pela discussão do livro!
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