O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Sina Guerra (ou Assaz Sina)




SINA GUERRA
(ou ASSAZ SINA)

Juliano Barreto Rodrigues

A explosão metálica

Meteórica e feérica de uma bala

A atingir, em cheio,

O peito insone e pré-morto

De um datado.



Inércia resistindo a atrito

Calor girostático, eufórico,

Prenunciando o gelo ardente de Aita

Um raio, um flash

O estouro, um risco

A seta mercurial incandescente

A traçar uma linha perfeita,

Pontiaguda,

A abrir a massa tic-táquica sem fechadura.



O destino em um click de pontinha de dedo

Espocando um clarão branco

Que tingirá a noite sonora de vermelho

E jogará, num segundo,

O corpo inerte na pretura já indolor.



Nem tempo de ai

Ou últimas palavras.

Só o soco surdo

De milésimo

A romper o fôlego,

O feixe

A ligação umbilical entre alma e corpo.



O cano esfria,

O corpo esfria

E vão dormir, ambos,

A tranquilidade da sina cumprida.





Roseiral ou Espinheira

https://medium.com/@ohcwilliam/remove-the-thorn-get-to-the-heart-of-the-problem-5040806dbde0

Roseiral ou espinheira?


Juliano Barreto Rodrigues


Suponhamos que você nunca tenha matado um ser humano: como você explica nunca ter chegado lá?
(Max Frish in “Diário 1966-1971”).



25 de maio de 1968. O doutor Hector Prudêncio me disse que o que eu tenho não tem cura, que devo durar só seis meses. Meu Deus, o que faço?

Minhas filhas vão ficar sem mãe. E Fortunato? Somos muito mais do que marido e mulher, somos feito irmãos gêmeos, uma só alma dividida em duas. Não posso deixá-lo sozinho. Ele não me deixaria.

[...]

13 de julho, 1968. As meninas estão de férias. Acertei a cabeça de Fortunato com o martelo dele, enquanto ele lanchava na cozinha. Pensei que fosse mais fácil, tive que bater muitas vezes enquanto ele estava no chão. Coitado. Mas ele não me deixaria sozinha neste mundo, fiz o que ele faria por mim. Ele nem imaginava que estou para morrer. Melhor assim. Enterrei no buraco que pedi para ele fazer ontem, onde eu disse que iria fazer uma compostagem. Tampei e plantei roseiras. Ele ficaria feliz.


FOLHA ARAXAENSE

Obituário

O falecimento de Dona Maria Elvira, acontecido na noite de ontem 27 de janeiro de 1988, deixa a sociedade araxaense muito consternada. Mãe de duas filhas, ilustre integrante da Sociedade Eclesiástica Senhora da Alvura. Toda uma vida dedicada à filantropia, ao aconselhamento e a fé, Dona Maria Elvira, que teve o esposo provavelmente sequestrado em 1968, dedicou as últimas duas décadas de sua vida a encontrá-lo e ao serviço do povo de Araxá. O presidente da Câmara de Vereadores apresentou pesares, anunciou homenagens públicas e disse que a casa de Dona Maria Elvira, que já funcionava como escola, será transformada em fundação.


Mamãe foi uma mulher incrível, nos criou praticamente sozinha. Quando sumiram com o papai eu tinha sete e minha irmã nove. Ela quase morreu de desgosto. Estava passando por problemas de saúde mas, assim que papai desapareceu, ela milagrosamente melhorou. O problema é que, como ninguém soube o que aconteceu com papai, não tinham como aprovar pensão para ela. Ficamos à mercê da sorte. A igreja, o padre Antônio Amaro, é que nos socorreu. Por pouco não passamos fome.

O amor dos meus pais não era deste mundo. Viviam grudados, parece que pensavam a mesma coisa e que conversavam sem falar. Foi um castigo enorme para a mamãe ter ficado sem meu pai. Acho que só não morreu porque tinha que nos criar. Ficou traumatizada, com mania de lavar as mãos e obcecada com a limpeza da cozinha. Mas, tirando o sofrimento dos primeiros meses, posso dizer que, no final das contas, aquilo foi um importante divisor de águas na vida dela. Mamãe abraçou a causa social e a fé com muita força, deixou de ser a dona de casa que era e criou uma obra de referência para todo o povo mineiro. Da dor dela fez algo para amenizar a dor de muitos. Criou um hospital, uma casa de repouso, duas escolas, uma biblioteca, a oficina técnica lá em casa, e um monte de outras benfeitorias. Se não tivesse acontecido algo com papai, nada disso teria sido criado.

Era uma mulher doce, com uma expressão de meio sorriso, parecendo uma boneca de porcelana. Acontecesse o que fosse ela estava sempre com a mesma feição. Sempre escreveu diários, mas nunca pudemos ler. Dizia que era coisa boba de menina, que tinha vergonha. Até agora, eu e minha irmã nem tínhamos tido a curiosidade de procurar onde guardava. Como se tornou uma figura pública – membra honorária da Câmara e da Prefeitura, premiada pela Assembléia Legislativa do Estado, reconhecida até pelo bispo –, e como nossa casa de família vai ser desapropriada para se tornar uma fundação com o nome dela, com um pequeno museu a ser construído no quintal, onde fica o roseiral, nos pediram para procurar coisas pessoais que refletissem as ideias dela.

Depois de muito procurar, Lídia, minha irmã, que é quem ainda morava com mamãe, me mandou um recado escrito: “Martinha querida. Encontrei vinte e sete cadernos escondidos em uma mala velha lá no sótão. São os diários da mamãe. O último estava no criado mudo dela. Diante das tratativas todas, referentes à fundação que vão criar e aos procedimentos para a indenização que vão nos dar, não tive, nem tenho, tempo para ler. Sei que você também não, por causa dos seus filhos e de seu trabalho. Nem precisa, a gente conhecia bem a mamãe. Assim, mandei tudo para a comissão da Câmara, que designou um grupo para a constituição do museu. Vão ler e catalogar tudo, antes da homenagem, que será daqui dez dias, no dia primeiro de março. Beijos. 20 de fevereiro de 1988.”

Vinte e nove de fevereiro, segunda-feira, dez e quinze da manhã. Estou atarefadíssima com os preparativos. Lídia me passou um monte de encargos. A festa será linda, o governador estará presente, alguns deputados também, além de quase todos os vereadores da cidade. O bispo virá.  O telefone começa a tocar sem parar. Grito para meus filhos atenderem. Marquinhos vem da sala com uma expressão diferente.

--- Mamãe, é lá de uma tal comissão da Câmara. Vá atender, a pessoa disse que tem... uma bomba?!






Lalú




LALÚ


Juliano Barreto Rodrigues.


“Ei menino, o que está fazendo aí?”, perguntei vendo o moleque cavoucando o jardim da porta do terreiro. “Ôxe, nhanhá, nada não, estava procurando uma batata doce pra comer.”

Lalú chegou assim, numa segunda-feira cedo, de fins de agosto. Vendo o menino com fome, chamei para dentro. Tinha doze para treze anos e dizia ter vindo lá de Cachoeira, sozinho. Achei esquisito demais e, depois de dar de comer, levei para falar com mãe Deinha de Oxaguiã. Não sei do que falaram, só sei que, quando saíram lá do barracão, estava decidido que o menino ficaria.

Entrão e curioso feito ele só, sempre foi sabido e pitaqueiro, metia o dedo em tudo. Bom para falar até, explicava coisa difícil do jeito mais mastigadinho do mundo, facinho de entender. Mas quando alguém perguntava de sua família em Cachoeira, ou onde morava, desconversava ou confundia tanta história que, no fim, o perguntador saía sem saber mais do que antes.

Engraçado é que, no salão do candomblé, os novos não podiam sentar em cadeira, nem fazer certas coisas, mas Lalú andava onde queria, batia tambor, dançava e, quando mãe Deinha estava cuidando de alguma obrigação por ali, ele sentava no trono dela. Uma coisa de desacreditar. Remexia até na peneira de búzios da mãe, e já o vi até jogar para Yaô, sem nunca ter aprendido. Ou será que veio com isso lá de Cachoeira? Sei lá, o que sei é que não foi feito no terreiro, embora nossa mãe tenha dado obrigação de Exú nele. No santo, ficou sendo chamado Exú Ómókunrin.

Com uns dois anos da chegada de Lalú, mãe Deinha foi ao ló, morreu. Foi feita toda a cerimônia de Axexê, com a ajuda de todos os grandes dos terreiros de Salvador. Todo mundo a considerava. Dias depois já se falava em sucessão. Uma banda pendia para a mãe pequena, a Iyá Kekerê Joaninha de Oyá, a outra para a Mayê Cidélia de Oxum, muito mais nova e filha de sangue de mãe Deinha. O moleque, que se dava com todo mundo, resolveu por conta própria ajudar e, desobedecendo um tabu, catou a peneira da mãinha, como ele a chamava e, escondido, jogou os búzios para saber quem deveria sucedê-la na condução do Ilê. Saiu falando a torto e a direito, tomou bronca, mas deixou todo o mundo com a pulga atrás da orelha: mãe Deinha, quando viva, ouvia o moleque. Ele indicou Mayê Cidélia. A mãe pequena, Joaninha de Oyá, ficou melindrada, começou a destratar o menino. Bateu o pé que a tradição tinha que ser seguida, que um babalaô de fora tinha que vir ao terreiro e, sob o testemunho de pais e mães de outras casas, deveria fazer um jogo para o orixá indicar quem assumiria o posto. Acontecia, às vezes, até de não ser quem se candidatava para o posto.

Babá Martinho, babalaô respeitadíssimo, viajado para a África, vaidoso e importante, foi convidado para presidir a consulta. Ia ser assim: duas iyás fariam seus jogos na presença do povo do terreiro e das testemunhas das outras casas, e ele daria a palavra final, só confirmando se fosse unânime ou, se não, fazendo seu jogo.

Data marcada para daí três meses. Mãe Deinha só podia ser sucedida, efetivamente, com um ano do Axexê. O moleque começou a dar umas saídas. “Onde você vai, Lalú?”, eu perguntava todos os dias. “Vou pras bandas do Mercado das Sete Portas”, respondia. Saía de manhã e voltava só à tardezinha. Dizia que ia ganhar uns trocados. Éramos bem próximos, me chamava de tia, mas mesmo assim eu nunca soube muito sobre ele. Achei que estava aprontando, então, um dia pedi para que o seguissem. Marquinhos disse que Lalú rumou para o rumo oposto ao do mercado, mas que, já bem longe, deu meia volta e foi para o Sete Portas. Deve ter desconfiado e mudou o destino, matreiro que era.

Chegou o dia “D”, todos estavam apreensivos. Como o terreiro estava dividido quase no meio, era certo que uma das metades ficaria insatisfeita. O povo nem comentava o jogo que o Lalú tinha feito, embora ele cutucasse de vez em quando. A cerimônia começou, internamente, de madrugada. Os convidados foram chegando lá pela hora do almoço. Todos os preceitos estavam sendo seguidos direitinho, coisa bonita de se ver.

Noca da Pedreira, mãe de santo da velha geração, rígida, um pouco antipática, mas com uma mão de búzios respeitadíssima, jogou primeiro. Em onze búzios abertos ela declarou: “Deu Oyá, a Iyá Kekerê Joaninha deve assumir. Parte do terreiro comemorou só com os olhos e cutucões de cotovelos uns nos outros.

Mãe Idália de Oxalufã, senhora doce, conciliadora e avoadinha, mas muito cuidadora das tradições e conhecida por ter o terreiro com mais filhos naquelas bandas da Bahia, montou sua linda peneira do lado do poste central do salão. Primeiro fez discurso, cantou, depois rezou a mojuba do jogo e lançou. Depois de esfregar as mãos, fez mais um discurso de meia hora, até que babá Martinho interrompeu e ela teve que dizer, enxugando a testa: “deu Oxê, Oxum fala em cinco búzios. Quem assume é Mayê Cidélia de Oxum.” Ela estava enrolando não era atoa, sabia que não deveria ser assim, o melhor é que as duas tivessem visto a mesma resposta, porque agora quem tinha que decidir era babá Martinho e, quem tivesse o jogo vencido ficaria com o ego meio abalado.

Já beirando às cinco da tarde o babá Martinho pega seus búzios, reza a salva e, para o espanto geral, pede que chamem o filho mais novo do terreiro. Lalú se adianta, de branco alvíssimo, como era seu costume, super arrumado e todo sorriso, parecendo que já estava esperando. Babá Martinho diz que o lançamento será feito pelo mais novo e que ele, babá, só fará a interpretação. A cara de todo mundo estava engraçada. Não é que o moleque estava no centro das atenções? A Iyá Kekerê pede para falar no ouvido do babá, mas Mayê Cidélia interrompe, dizendo que é melhor que a conversa seja a três. Saíram para a camarinha e, por lá, ficaram uma meia hora. Acredito que devem ter falado no jogo que Lalú tinha feito antes e que a Iyá Kekerê deva ter levantado suspeita sobre ele, dizendo que era tendencioso. Sei lá, nunca fiquei sabendo, o fato é que o babá manteve sua decisão. Naquele calor dos infernos, a gente, já cansada, só queria que aquilo acabasse.

Lalú parecia até mais alto, orgulhoso que estava. Eu lá me tremendo de nervoso. Ele pegou com toda a reverência os búzios do babá, esfregou eles nas mãos com toda intimidade – que já tinha de mexer com os búzios dos outros –, olhou para todo mundo com a maior cara de santo e lançou: Xangô respondia em doze búzios abertos. Seria preciso mais uma jogada, para saber qual mãe, ou qual orixá, Xangô indicaria, poderia até ser outra pessoa além das duas. Antes, não sei por que cargas d’água, se para aparecer ou porque achou bonito o porte do moleque, ou para torturar mais ainda quem estava na espera, o babá resolve perguntar para Lalú: “diz aí, menino, o que você acha que o orixá está dizendo?” Foi a deixa, o menino começou: “está falando é do senhor, que o senhor precisa parar de comer tanto feijão fradinho, que está lhe soltando muito o intestino, que o senhor deve olhar mais para aquele outro filho que o senhor tem com a morena lá de Cruz das Almas e que o babá tem que usar cozimento de fava de sucupira no pé direito, para acabar com a dor no Tendão de Aquiles. É esse nome mesmo, não é?” Foi um silêncio geral, os olhos do babá estavam desse tamanho. Depois de uma engasgada ele falou: “Quem é você, moleque? De que orixá você é?” Lalú, que não era bobo nem nada, respondeu seu nome de santo, que já indicava filho de quem era: “Sou Exú Ómókunrin”. O babalaô ficou olhando para ele um tempo, depois mandou que jogasse os búzios. Deu um búzio aberto, respondendo Exú. O normal é que se jogasse novamente até sair Oyá, orixá da Iyá Kekerê, ou Oxum, orixá da Mayê, mas o fato é que o babá pegou na mão do menino, olhou nos olhos dele e disse: “Quem deve ocupar o lugar de mãe Deinha?” Então Lalú sai com “conforme eu já tinha dito pra todo mundo, quem deve tocar o terreiro é a Mayê Cidélia, vi no jogo de mãe Deinha”. Ouvi uns risinhos e uns resmungos. O lado da Iyá Kekerê começou um muxoxo, mas o babá interrompeu perguntando se a Iyá aceitava ou discordava do que foi dito. Ela, que era brava mas muito respeitadora das coisas de santo, chegou perto do menino com cara ruim, olhou bem nos olhos dele, pegou em suas mãos e gritou: “Laroiê Exú!” Depois abriu um sorriso e o abraçou. Tinha acatado. Foi bonito demais. O caso é lembrado até hoje.

Dias depois da festa catei o moleque zanzando pelo terreiro e o chamei num canto. “Como é que você fez aquilo, menino tinhoso? Como é que sabia tanta coisa do babá?” Com a cara mais boa e deslavada ele me respondeu: “Naqueles dias em que saía, não ia pras Sete Portas, eu ia é pra Federação, onde o babá mora. Lá eu assuntei bastante.” Depois da minha bronca ele disse: “O que tá certo tá certo, Exú faz o certo até por linhas tortas.” Só me bastou acreditar.

No dia seguinte à sucessão, dei falta de Lalú pelo quintal. Como, no outro dia, também não apareceu, saí perguntando a todo mundo do terreiro. Ninguém sabia do moleque, então mandei uma yaô lá no bairro da Federação para saber dele. Como o menino andou por lá muito tempo, era certeza que alguém daria notícia. Ela voltou encabulada, dizendo que ninguém viu ou ouviu falar de Lalú, nem em alguém com suas características, por lá. Falou que esteve nos mercados, nas feiras, conversou com os vigilantes e o povo dos candomblés, com os meninos nas ruas, com negociantes, os vadios e os donos de botecos, e nada, nem uma noticiazinha. Nunca mais ficamos sabendo de Lalú. Hoje, lembrando tudo e conhecendo as coisas do santo, eu me pergunto se ele era gente de verdade, assim de carne e osso, ...ou não.




segunda-feira, 15 de julho de 2019

O último Pai do Segredo e Guardião de Almas

Agoli-Agbo, 12º rei do reino do Daomé - Foto: Wiki




O último Pai do Segredo e Guardião de Almas



Juliano Barreto Rodrigues



“Vovó Enitióró, conte uma história lá da África para nós?”

Eu, longíssimo da minha terra e tentando trazer um pouquinho de lá para falar para as meninas, olhei para os lados e vi o livro no criado mudo. Me lembrei, na hora, de algo que tinha ouvido, há muitos e muitos anos.

“Peguem suas esteiras e sentem-se, filhas. Vou contar uma história antiga, coisa da época do meu tataravô, Babá Ofátibá.

Houve um tempo, na época no Dahomey, hoje parte da República do Benin, em que quem mantinha as tradições, os interditos, a genealogia, as leis, relações de poder, eram também adivinhos e conselheiros dos reis. Uns cultuavam voduns, outros orixás. Os adivinhos que cultuavam orixás eram chamados Babalawôs, os Pais do Segredo. Uma casta respeitadíssima e restrita, fechada em si e muito influente, politicamente.

Todo Pai do Segredo, cioso de sua posição e querendo manter o prestígio de sua família, escolhia um de seus filhos para, desde pequenininho, ir memorizando todo o saber da tradição oral.
A derrocada dos últimos grandes reis tribais africanos, não só do Benin, também dissolveu toda essa rede de influência e memória. Os adivinhos passaram a prestar serviços para quem pagasse, mas sofriam o rancor do povo, que ficava feliz em vê-los destituídos daquilo que consideravam privilégios.

Cada Babá tomou rumo próprio, as Ordens Centenárias a que pertenciam se esvaziaram, eles passaram a lutar contra a pobreza, mas mantinham-se fiéis a toda sua vida de repositórios da tradição. Não sabiam fazer qualquer outra coisa. E eram muito necessários, mas seus descendentes já não queriam a mesma profissão.

Nosso ancestral, o velho Babá Ofátibá, sempre vivera das lembranças alheias, mas de repente estava preso às suas próprias lembranças dos tempos áureos. Seus filhos não quiseram seguir seus passos, à exceção da filha mais velha, Ojú Inú, que com sua doçura e boa memória tinha aprendido muito, embora não pudesse servir como oráculo, função, naquele tempo, exclusiva de homens. O pai contava-lhe tudo - mais por desejo de falar do que para satisfazer a própria curiosidade da filha. Se tranquilizava acreditando que com ela a tradição não se perderia, já que estava velha para se casar e era a mais feia das irmãs. Ficaria para sempre em casa. Enganou-se. A filha se casou com um bom homem de outra tribo e foi embora, levando toda a história de seu povo, de nosso povo.

Ninguém aprendia mais o oráculo, ninguém queria mais ser guardião dos segredos. Mas as famílias importantes tinham, ao menos, seus Guardiães de Almas, mantenedores da memória de seus ancestrais, de seus cultos familiares, de suas histórias. Alguns forçavam um escolhido a aprender, mas era sempre um processo frustrante. Também surgiu uma nova classe de gente, os griots, que por vocação e prestígio social recolhiam aleatoriamente a sabedoria oral a que tinham acesso e se apresentavam, contando histórias, fantasiando, entretendo os povoados. Eram artistas, que viviam de andanças e não tinham compromisso nenhum, além de consigo mesmos.

Um dia apresentaram um jovem branco a Ofátibá, já velho e desgostoso da vida. Seu oráculo já o advertira, e tinha sonhado com um pombo branco pousando-lhe no ombro. Pois bem, o rapaz inglês não falava sua língua, mas tinha um bom tradutor. Vivia-se entre franceses, mas era bem esquisito um inglês por lá. Ele dizia algo sobre as tradições, a necessidade de mantê-las, sobre a importância do conhecimento de gerações e gerações, coisas que soavam deliciosas aos ouvidos do velho. Disse que queria aprender. Foi acolhido feito filho.

Em sete anos, Ofátibá já era o último da última linhagem de grandes babalawôs. E nem era procurado mais para o oráculo, mas só para tirar dúvidas a respeito de títulos e terras. Tinha deixado, na prática, de ser um Guardião do Segredo para ser apenas um Guardião de Almas. Tinha esperanças: fazia oferendas para que as divindades mantivessem a memória na cabeça de mais alguém.

Nesse meio tempo as mulheres, contadoras de histórias no âmbito da casa, também começaram a se reunir para trocar histórias. Como as pessoas não contavam mais com babalawôs, mas ainda precisavam de conselhos e oráculos, recorriam a elas, que passaram a manipular as conchas de búzios para consultar os deuses.

Dois anos mais, o velho Ofátibá tinha enterrado todos os Babás da velha tradição. Contava com seu “filho branco inglês” adotado, para continuá-lo. Sonhava casá-lo com alguém da tribo e mantê-lo sob suas asas. Mas o rapaz foi embora, sem muita cerimônia. O pombo nos ombros do Babá tinha voado.

Nonagenário, ressentido com as pessoas e, principalmente, sentindo ter falhado em manter a memória de seus ancestrais, seus cultos e costumes, Ofátibá se entregava ao próprio tempo, só esperando a morte. Pensava nisso dia e noite, deveria ter obrigado os filhos a aprender, nem que fosse à custa de crueldade. Tinha uma dívida para com seus mais velhos, que já tinham partido para o Orun. Sentia vergonha de seus deuses, que o tinham visto cair e cair, sem deixar quem os cultuasse a altura.

Pouco antes de morrer, Ofátibá recebe a visita do estudante inglês, que chega diferente, em roupas importantes, portando um ar professoral. O Babá o repreende por ter ido embora, pede ao tradutor que lhe transmita as esperanças que tinha em relação ao rapaz, e chora. Então o moço, que já nem era mais tão moço, tira da mala dois grandes volumes e os apresenta ao velho. São o resultado de seu doutorado, a transcrição e análise de todas as histórias ouvidas por anos naquelas tribos. O doutor, empolgado, abriu o livro em uma página aleatória e leu um trecho, que foi traduzido para o Babá. Ofátibá não acredita naquele objeto mágico. Do alto da lembrança de sua grandeza, o antigo babalawô, então reduzido a último Guardião de Almas, vira criança. Sorri encantado, mas logo cai em si e se desilude. Os deuses, provavelmente irritados, tinham encontrado uma solução para a manutenção da tradição, mas que parecia um castigo para os ingratos nas tribos: haviam trocado a mente dos homens, seus ouvidos e bocas, seus corações, por um objeto, que cochichava segredos só para quem conseguisse decifrá-lo. E teve ciúme do seu conhecimento todo, de gerações e gerações, nas mãos dos brancos, que eram os que sabiam ler. Também se preocupou com o engessamento do que estava ali, porque a tradição oral era viva, o que era contado ia se modificando aos poucos, de um contador para outro, que acrescentava algo de sua própria intuição ou reinterpretava, enquanto o escrito era aquilo e aquilo mesmo, quase sem margem para crescer.

O doutor, que ia autografar o livro para Ofátibá, também tem uma revelação e se inquieta. Vê que transpôs para o papel centenas de histórias, de crenças, de receitas, disso e daquilo, mas que mutilou a alma daquilo tudo, que só podia ser efetivamente entendido e sentido do lado de dentro daquela cultura, e transmitido conforme eles recebiam: da boca para o ouvido, da mão que faz para a mão que imita. Saiu de lá sem autografar livro nenhum, menos orgulhoso, menor de ego, mas maior de espírito.

Fato é que Ofátibá morreu dali há dias e, com ele, toda uma forma de pensar. O velho babalawô já se havia ido há muito tempo, mas agora partira o que restara dele, o último Guardião de Almas.”