Mazzaropi - por William Medeiros |
Juliano Barreto
Rodrigues.
Vitorino, um matuto de cara amarrada, rijo
feito aroeira por causa da lida sem trégua na roça era compadre de Juvêncio, um
tipo escorregadio e folgadão com cara de malandro, mas boa gente. Tirando as maneiras
e gestos, que os diferenciavam muito, dormindo eram a cara d’um o focinho do outro,
bem parecidos.
Há muito Juvêncio, padrinho de “Tainha”, o
mais novo dos cinco filhos de Vitorino, procurava um pé para enredar uma
conversa sobre o menino. O moleque era esperto que só vendo, mas estava
internado com o pai nas grotas, abrindo picadas e derribando mato para fazer
pasto, e nada de escola.
Mandou recado ao compadre avisando que iria no
seu rancho, na barra do dia seguinte, para tomar o café da comadre Don’Ana,
depois o ajudaria no curral com a tirada de leite. Senhor de uma lábia
conhecida, iria com os argumentos prontos para chacoalhar o Vitorino. O dedo de
prosa seria ligeiro, já que o compadre era homem de poucas palavras, sujeito
apoquentado, e a Don’Ana – barata de igreja – logo o puxaria pelo pé, para a missa
de domingo.
Avistou a casa de taipa na chapada assim que o
Sol apontou. Foi recebido no alpendre por Vitorino, que o mandou entrar. A
comadre estava no fogão à lenha, acabando de coar o café, e a mesa já estava
posta com cuscuz, bolo de goma, beijú e pêta.
--- Bons dias, cumadi. Como vai vosmicê? O
cheirinho do bule tá de revirar os zói. E a cara do cuscuz? Vosmicê sabe que eu
tenho um apetite de esmeril da França.
--- Bão dia, cumpadi, tô boa. Vamo chegando.
Pegue uma chicrinha aí que eu te sirvo.
Depois do desjejum saíram os dois amigos para
o terreiro a fim de pitar um paiero e jogar conversa fora. Sentaram-se perto da
moita de Maria-sem-vergonha que rodeava uma Coroa-de-frade e ficaram olhando as
criações comendo quirera de arroz e o milho que a comadre debulhava. Ficaram de
conversê fiado um tiquinho até que Juvêncio atalhou a falar do menino:
--- Adiscuipa ser meio entrão meu cumpadi, mas
queria falar com vosmicê do “Tainha”.
--- O que tem ele? Fez arguma malcriação?
--- Né nada disso não, cupadi. Com licença da
palavra, é que já tá em tempo do menino estudá, não tá não?
Vitorino fez cara de quem comeu e não gostou,
arregaçou as mangas, arquejou arreliado, e disse tentando não ser um cavalo:
--- Modi o quê o cumpadi tá preocupado com
isso? Preciso do menino na lida comigo. Já tá aprendendo o ofício que eu
aprendi na idade dele. Todos meus filhos são da terra e tão tudo aí vivendo
bem, assim como eu, como meu finado pai e meu avô. Tenho orguio de ter meu
roçado, ele também vai herdar isso.
Aquela cantoria de pé de parede iria virar um
bafafá se Juvêncio não escolhesse bem as palavras. Sabia da veneração do
compadre pela terra, que vinha sustentando sua família há várias gerações.
--- Sei, cumpadi. Quem sou eu pra meter a
colher na criação dos seus filhos?! São tudo gente de bem. Mas nada impede que
o menino te ajude de tarde e estude de manhã, não é?
--- Óia bem Juvêncio, a escola é a umas três
léguas daqui e começa cedo, na hora de fechar as parida. O “Tainha” é quem me
ajuda na apartação, na separação dus bezerro, na peação das vaca. Quem labuta
na roça não tem tempo pra perder com iscreveção não. Isso vale de que aqui?
Adispois, não quero meu filho metido a besta feito os moleques da rua, quero ele
homi de verdade. Pra mim só existe vida pra valer é criando e plantando, e
pronto.
Antes de continuar, pra botar água fria na
fervura, Juvêncio lançou um chiste à comadre, que riu da brincadeira. Vendo que
a coisa estava difícil, resolveu improvisar.
--- Cumpadi, tamo falando da mesma coisa.
--- Ah, num tamo não!
--- Meu amigo, o papel em branco é que nem a
terra nua, que pode dar qualquer coisa. No descampado pode dar mato,
forrageira, Angico, Ipê, planta rasteira ou de floresta, só Deus sabe. Na folha
branca cabe um desenho, um rabisco, letras, palavras, o que quer que seja.
Vosmicê gosta é de plantar, não é?
--- Hum!
--- Pois então! A página pautada é terra
trabalhada. Suas linhas são veios de arado prontos para o cultivo de letras. As
folhas são palavras, as frases são frutos, o texto a colheita inteira – que
pode ser boa ou ruim, dependendo do que se plantou. Como aqui no seu chão, quem
sabe plantar bem terá safras ricas.
O palavrório baqueou Vitorino, que baixou a
crista e desanuviou a cara. Desarmou-se e viu a boa vontade no compadre.
--- Tá bão. Vô sortá o cabresto desse menino e
dá corda pra ele istudá. Vamo ver no que é que dá. Num vai fazê tanta farta pra
mim, ponho os mais véio pra tomá conta da parte dele, e não se fala mais nisso.
--- Ô, meu amigo, vosmicê é um homi que sabe
das coisa. Num é atoa que somos que nem irmão desde pequenos. Deixa que os material
e o uniforme eu compro, afinal, padrim é feito um segundo pai, num é?
“Tainha” apareceu correndo lá de dentro e
pediu a benção ao padrinho.
--- Deus te abençoe, sêo “Tainha”.
Os anos passaram e “Tainha” – quer dizer,
Tarcisio – colou grau em Direito. Na formatura foi o orador da turma. Com a voz
embargada e os olhos marejando pediu a presença dos pais ao seu lado. Agradeceu
a oportunidade de ter estudado e o apoio que lhe deram. Para sua surpresa o pai
quis responder.
--- A oportunidade nóis tem que agradecê ao
seu padrinho, que tá ali sentado se acabando de chorá. Foi ele quem me mostrou
que vaçuncê ia continuá plantando, só que letrinhas, e te deu os campos arados.
Os professores te ensinaram a plantá. Eu só aguei quando vi que tava brotando. Só entendia da terra, meu fio, hoje sei que não é só nela que a gente pode
cultivá.
Doutor “Tainha” se comoveu. A multidão
aplaudiu de pé até não poder mais. O padrinho levantou as mãos para o céu e
agradeceu a inspiração de outrora, que tinha lhe valido tão doce fruto e
transformado a vida da família de seu compadre.
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