Juliano
Barreto Rodrigues
Mania estranha aquela. Pouco depois
que teve contato com seu primeiro computador passou a migrar tudo o que lhe
interessava para disquetes. Era adolescente na época e a mãe achava útil aquela
brincadeira: fazia com que o menino se concentrasse em coisas importantes –
textos, imagens, músicas, vídeos, etc. – em vez de pensar bobagens. Melhor ainda
que começou a escrever um diário, também digital. Ia tudo para a pequena pilha
de disquetes, que crescia ano a ano.
O surgimento do pendrive deu um upgrade
na esquisitice do garoto. Após ter passado tudo que tinha nos disquetes para a
nova tecnologia – que pendurava no pescoço atada a um colar – começou a gastar
todo o dinheiro do primeiro emprego digitalizando os livros que lera, as
matérias de jornais e revistas que lhe interessavam, os documentos que
guardava, as fotos de família, para incluir no arquivo digital.
Já adulto ficou maravilhado com o HD
externo. Passava seus dias juntando aquilo que considerava o “resumo de sua vida”.
A filosofia era absurdamente minimalista: guardar todas as suas referências,
tudo o que lhe importava, dentro de algo pequeno que pudesse segurar entre as
mãos. Aquela obsessão o fez impopular e motivo de riso.
Não se achava estranho,
principalmente levando em conta seu melhor amigo, o Derick, que não punha a mão
em dinheiro de jeito nenhum, fosse de metal ou papel. Valia-se das amizades e
da sua habilidade de bom amante para conseguir o que precisava com os
companheiros e com as malucas com quem ficava.
Numa dessas encruzilhadas da vida,
preocupado com alguns sonhos que andava tendo, o colecionador se viu na casa de
uma cartomante amiga de uma amiga. A coroa falou de amores, de decepções, de
inimigos, e disse que cuidasse de seu pequeno mundo, que estava para ser posto
a perder. Nosso herói agradeceu sem entusiasmo, sentindo-se enganado, e
perguntou se a mulher aceitaria o pagamento em cocaína.
--- O que vou fazer com isso, rapaz?
--- Ué, a senhora pode cheirar,
aplicar, ou vender para alguém.
A mulher pensou consigo "Que moleque louco, cocaína não. Mas até
aceitaria uns amassos desse malandro se não fosse o risco das más línguas". Disse
ao cliente que voltasse depois para pagá-la em dinheiro – assim, pensou, também
teria tempo para avaliar o risco de abusar daquele corpo com cheiro de moleque.
Dois meses depois, seguindo aquela
vida deslocada de outsider, o maluco
acorda de uma bebedeira de comemoração de aniversário e procura por suas
memórias virtuais, e nada. Lembra-se da cartomante com a história da perda. Revira
o quarto, revira a casa, põe abaixo o escritório em que trabalhava, liga para
amigos, colegas, parentes, sem solução.
O desespero de ter todas as suas
referências perdidas por aí o desorienta tanto que não consegue mais dormir,
nem trabalhar, nem comer direito. Vai à polícia, investiga sozinho, promete
recompensa. Meu Deus, não tinha feito sequer um backup, não havia cópia de nada. Parte da sua ideia era justamente ir
se desfazendo de todas as fontes e acumulando todos os dados em um só lugar,
que seria seu templo, sua memória extracorpórea.
Noite em sua vida. Não voltava mais
para casa, não tinha paciência com ninguém. O delegado chegou a ouvir um
receptador, que disse ter comprado o HD de alguém na rua. O idiota disse que
apagou o hardware, de forma
irrecuperável, porque estava cheio de coisas imprestáveis. Só pegou uma pena de
pagamento de cestas básicas. Era o fim.
Sem identidade, sem memória, agora
sem endereço, sem amigos e sem emprego, o rapaz chegou ao fundo do poço. Não se
reconhecia em mais nada, estava despojado de tudo que o representava. Pensou na
morte.
--- Que lixo, morrer sem deixar nenhum
sinal de mim... Eu sou um corpo vazio, uma cabeça oca, meu mundo estava naquele
HD.
Teve uma iluminação quando leu a
palavra “niilismo” na capa da revista Seleções. No raso que se tornara
relembrou superficialmente do que achava significar: 'não acreditar em nada'.
Pronto, esse agora era ele, o símbolo da negação, do pós-tudo, inclusive do
pós-si-mesmo (Só não desacreditava das cartomantes). Daí começou a juntar grão
a grão novas histórias, novas memórias, sem aquela mania besta de guardar as
coisas fora da própria cabeça.
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