O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Indústria Cultural

 


INDÚSTRIA CULTURAL

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

As leituras de Adorno e Horkheimer (1985), Marx (2011) e Benjamin (1969), suscitaram as seguintes reflexões, acerca da Indústria Cultural:

 

Theodor Adorno e Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, cunharam a expressão “Indústria Cultural”, designativa da concepção de produção/reprodução em massa (característica do sistema fabril-industrial capitalista) de bens culturais. A reprodutibilidade técnica das obras artísticas, possível com a evolução tecnológica, fez com que saíssem da condição de obras únicas (de fruição limitada a poucos privilegiados que a elas tinham acesso) e alcançassem as massas. Isso operou mudanças radicais: seguindo a lógica da produção em série, violou a lógica da exclusividade, tornando aquilo que tinha valor “imaterial” em produto livremente comercializável, com valor de coisa (reificação) segundo a lógica capitalista; também afetou a “aura” do original artístico; além disso, naturalizou (ou desmistificou) pela democratização do acesso, a arte e a criação artística, objetificando a obra de arte (obra do espírito) e o artista, que foi se tornando, historicamente, em um trabalhador, que precisa atender as demandas de um mercado baseado na reprodução em escala industrial das criações.

 

Segundo essa lógica, da produção capitalista, a cópia do objeto de arte é acessível a quem pode pagar (os preços são muito mais baixos do que da obra original) e, para os responsáveis pela alimentação desse mercado da reprodução, é possível criar demandas, seja educando/direcionando o gosto coletivo, fomentando modismos, da mesma maneira que também é possível controlar a própria produção artística, já que a arte válida será aquela que seguir certos padrões de mercado (se um determinado estilo vende, o artista que se preze será aquele que cria conforme aquele estilo, desviando-se minimamente, só até onde a própria indústria cultural veja margem para fomentar novas demandas de consumo).

 

Indústria Cultural, na acepção da expressão dada por Adorno e Horkheimer, está baseada na reprodutibilidade dos bens culturais (agora produtos), voltados a um mercado consumidor (ao lucro). Esse mercado funciona como outro qualquer, onde atendem-se ou criam-se as demandas e os produtos para elas, a custo razoável para o público visado e garantindo altíssimos lucros para as corporações dessa indústria (sobre volume e segundo as leis capitalistas da oferta e da procura).

 

Em lugar daquela concepção de arte como “rasgo do espírito”, maneira do ser humano alcançar a Deus, a perfeição, surgiu uma ideia diferente, de arte como produto, que precisa ampliar seu mercado, seu público, precisa ser consumida, precisa atingir o máximo de pessoas possível. Para isso, em vez seguir rumo àquela “elevação” (daquela concepção de arte anterior à era da reprodutibilidade técnica), a arte foi para o rumo contrário, foi se aproximando da terra, se humanizando, ao ponto de se aproximar cada vez mais da realidade rotineira das pessoas (talvez por isso a autoficção, por exemplo, seja o gênero mais em voga). As personagens e lugares dos livros, dos quadros, dos filmes, se parecem com as pessoas e paisagens comuns, porque os consumidores têm que se identificar com eles. A desempedestalização da arte, rumo ao vulgo, popularizou-a e tornou-a menor em certo sentido, fez do artista um trabalhador e da sua obra um produto a satisfazer o senso comum (para ser consumida).

 

Fala-se muito da fotografia como representação do início do processo de reprodutibilidade que abriu caminho para a indústria cultural, que alcançou seu ápice com o cinema e a televisão. No entanto, a prensa de tipos móveis, muito anterior, é verdadeira precursora dessa Indústria Cultural. Talvez não seja tão referida porque anterior à Revolução Industrial. Mas imagine: até a Bíblia era reproduzida antes por copistas e, nesse processo artesanal, com iluminuras etc., cada volume era uma obra de arte a parte, caríssima, escassa e, portanto destinada a pouquíssimos (até porque era escrita, originalmente, em hebraico, aramaico e grego). Com a prensa de Gutenberg e as traduções para a vulgata latina, o acesso se popularizou enormemente. A igreja inicialmente reagiu, porque queria manter sua exclusividade na divulgação e interpretação da “palavra”, mas depois se adaptou, passando inclusive a rezar missas na língua dos fiéis. Com o aumento da alfabetização, da publicação de panfletos e livros, um mercado se formou - só possível por uma tecnologia de reprodução industrial e venda - e muitos o usaram para educar as massas conforme alguma ideologia.

 

De lá para cá, com o crescimento da Indústria Cultural, observa-se que a imposição coletiva e massiva dos bens culturais, feita de um modo que todos consumam os mesmos bens, tenham os mesmos desejos, reproduzam a mesma forma de pensar, gerou um processo de alienação em massa (a luz que ilumina é em excesso a luz que cega), onde as pessoas são iguais até em suas diferenças (e esta sociedade expurga os outsiders).

 

Conforme Adorno e Horkheimer disseram, em 1947,

 

A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle. (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, p. 57).

 

Hoje, a realidade é um pouco diferente e esse domínio quase absoluto da Indústria Cultural parece estar sendo posto em xeque. Com o surgimento da internet, com as possibilidades de comunicação social via rede mundial de computadores, quase todo mundo se tornou protagonista, não só replicando, mas produzindo informação. Em um processo tecnologicamente democrático, há uma disseminação não controlada (ou menos controlada) e descentralizada de dados, opiniões, com a criação de demandas de forma mais ou menos caótica. Valorizam-se os nichos, que vivem e crescem paralelamente ao padronizado. Fala-se em mercados, no plural, em públicos, também no plural. O movimento de contração e centralização anterior, parece ter dado lugar à dispersão e descentralização.

 

Antes, por exemplo, o mercado editorial controlava, quase exclusivamente, a literatura que era publicada. Mas surgiram blogs, ferramentas de autopublicação, comunidades alternativas de leitores e escritores. Também surgiram resenhistas e “vlogs” que tiraram das instituições (academia, jornais, meios literários “oficiais” e outros meios autorizados) a exclusividade da formação de opinião e eleição do que deveria ou não ser lido e escrito.

 

Os representantes da Indústria Cultural ditam, cada vez menos exclusivamente, a produção artística. Mas se adaptaram (ou criaram, eles mesmos, uma nova realidade?): como tudo circula nas redes e é indexável, contabilizável, analisável (a adesão a qualquer coisa ou pessoa é verificável; o número de seguidores e likes é dado revelado etc.), essa Indústria tem à disposição um instrumento de pesquisa, atualizado em tempo real, acerca de todas as tendências em qualquer campo que lhe interesse. E isso lhe permite entrar e aproveitar cada variação, cada nicho de mercado, trazendo para si o que tem público consumidor (tornando, por exemplo, aquele autor de blog, com 100.000 seguidores, alguém do seu catálogo, ou então publicando coisas parecidas com as que ele produziu etc.). Nota-se, portanto, que a Indústria Cultural não está em crise nem perdeu o seu poder. Continua a controlar, mas de forma mais invisível (aparentemente colaborativa e menos impositiva), o que se “consome” de arte e cultura. Agora, pelo menos, qualquer artista tem voz e espaço para divulgar sua arte e alcançar algum público. A Indústria cultural é co-criada, não dá as cartas sozinha. Mas não se engane, está maior do que nunca.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. 1947. (Dialektik der Aufklärung – Philosophische Fragmente). Theodor W. Adorno. &. Max Horkheimer. 24 páginas. Disponível em: < https://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2014/04/Adorno-e-Horkheimer-A-ind%C3%BAstria-cultural.pdf>. Acessado em: 29 jun. 2022.

MARX, Karl. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo. In: O Capital. Vol I. São Paulo : Boitempo, 2011. pp. 204-218. Disponível em: <https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/o-capital-livro-1.pdf/view>. Acessado em 30 jun. 2022.

BENJAMIN, W.  A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: GRÜNEWALD, J. L. (trad. e org.). A Ideia do Cinema: Ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. pp. 165-196. Disponível em: <http://www.hrenatoh.net/curso/artetec/txt_benjamin.pdf>. Acessado em 29 jun. 2022.