O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez

 


Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez

(Por Juliano Barreto Rodrigues)


O "realismo mágico", movimento literário em que o escritor Gabriel García Márquez mais se destacou, joga com a disposição do leitor de se dar à fantasia. É como nas peças representadas no teatro: o espectador sabe que atores apenas representam, mas topa a ilusão, participa acreditando, para poder sentir aquilo que a peça traz. No caso do realismo mágico, em que o autor ‘viaja’, criando cenas, ou personagens, ou situações e diálogos, claramente impossíveis racionalmente, o leitor tem que estar suscetível e disposto a embarcar na ilusão. Nesse sentido, considero que seja uma literatura de extremo, de limite, que pode dar muito certo ou muito errado, porque as impossibilidades têm que ser, a despeito de impossíveis, muito verossímeis. No mínimo o leitor tem que estar tão enlevado pela escrita que suas sensações ultrapassem a necessidade de coerência racional absoluta. Isso não é comum em toda literatura? Sim, mas no caso do realismo mágico... é pressuposto.

Quem teve o privilégio de ler Cem Anos de Solidão sabe que Gabo (apelido do autor, que os leitores apaixonados por sua escrita, como eu, adoram usar para sentir uma ilusão de intimidade) domina essa forma de escrita totalmente. É um prestidigitador da palavra, um habilidoso enredador, que leva os leitores para onde quer. Esse é meu jeito de dizer que ele é um grandissíssimo escritor de ficção. 

O conto A luz é como água dá um gosto do que é a escrita de Gabo. Você escorrega da realidade para o onírico sem ver, como se estivesse sentado, dormisse sem sentir e, de repente, estivesse no meio de um sonho mágico, do qual você também acorda sem perceber, olha para os lados para ver se o que estava sonhando está mesmo acontecendo. Engraçado é que as coisas são pertinentes, tem algum rumo, levam a algum sentido (coisa que os sonhos malucos não costumam ter). 

Quem não vê aquela torrente dourada quando lê a parte da luz escorrendo do prédio? É falsa? Claro que não. É super verdadeira na nossa imaginação. É ou não é? É essa a mágica que Gabo faz com as palavras.

 

Partilha de Leitura - "Para além do sentido: posições e conceitos em movimento", capítulo do livro "Produção de Presença", de Hans Ulrich Gumbrecht



“Paraguaçuismo”[1] discursivo


 Juliano Barreto Rodrigues


 

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... (Lima Barreto in O Homem Que Sabia Javanês).

 

Faço aqui uma partilha de leitura que foi significativa para mim, mas de forma negativa. Eis uma ousadia crítica que não aconselho, já que feita em desfavor da escrita de um dos celebrados teóricos profissionais de hoje.

Fui instado a ler o capítulo Para além do sentido: posições e conceitos em movimento, do livro Produção de Presença (PUC Rio, 2012), escrito pelo teórico literário alemão Hans Ulrich Gumbrecht. Como disse, a leitura me impressionou, em mau sentido. Explico!

Primeiro Gumbrecht escreve meio capítulo, mais de vinte páginas, se escusando pela ousadia de defender uma posição minoritária, o que talvez se justifique pelo fato de ele, que não é filósofo de formação, lutar em campo alheio, tendo que pedir tanta licença e invocar máxima data vênia para ser ouvido pelo público que elegeu.

Quando parte efetivamente para o tratamento da tese que traz, o faz de forma quase barroca, enfeitando e complicando o que já é, por natureza, complicado. Problema de linguagem artificiosamente encriptada. Isso o que me indispôs com o texto e fez com que me sentisse um pouco manipulado pelo autor.

Gumbrecht considera a forma de conhecimento baseada tão somente nos sentidos, limitada, uma sucessão interminável de interpretações. Os objetos de estudo (inclusive a arte) são o que são (no tempo). O autor propõe uma outra forma de ver as coisas e seres, como presença (no espaço), numa relação de aproximação e afastamento em relação ao mundo. Aqui há que se diferenciar os conceitos de terra e mundo. O primeiro, vinculado ao universo dos sentidos, isola o objeto em sua existência temporal e o conhecimento que se tem dele depende de observação e interpretação. O segundo, defendido por Gumbrecht, é mais amplo, vê os objetos de conhecimento horizontalmente, em relação ao seu entorno e aos observadores. Na aproximação e no afastamento o objeto se mostra e se oculta, dando-se a conhecer nesta relação e de acordo com as modificações que cada tempo nele opera. Ele não é somente o que é, como quando surgiu; ele é como se apresenta no tempo da aproximação e em relação com o mundo. Assim, uma ruina de coluna jônica, vista hoje, será considerada uma ruina de coluna jônica, e não uma coluna jônica em si, como se estivesse intacta. Difícil de entender? Muito. E embora eu talvez não tenha entendido bem, nem explicado a contento, o texto de Gumbrecht não faz nada para tornar a ideia mais inteligível.

A experiência de leitura do texto me trouxe à memória dois outros pensadores: Michel Foucault e Gayatri Chakravorty Spivak (autora de Pode o Subalterno Falar?). Ambos escreveram da mesma forma hermética que Gumbrecht usou em seu texto. Podendo clarificar os conceitos e o entendimento, os emaranharam em uma linguagem rebuscada, redundante e “pavônica”, para dar ares de maior gravidade e erudição para suas teorias.

Foucault, na terceira entrevista que concedeu a Roger-Pol Droit, em 1975, se afirmou um “pirotécnico”. Ele se autodesignou assim para afirmar sua tendência a polemizar temas que o senso comum preferia deixar ‘por baixo dos panos’. Mas, para mim, pirotecnia também adjetiva a sua linguagem. Seus textos são de um exibicionismo intelectual e de uma autocondescendência enormes. Não é, no entanto, um autor condescendente com seus leitores. Em uma linguagem intrincada, que se afasta e se aproxima do objeto, o rodeia à exaustão, transforma cada leitor em tradutor de suas ideias, quando bastava que as colocasse de forma clara. A mesma coisa acontece na leitura de Spivak: complica o que era para ser simples. Um texto chamado Pode o Subalterno Falar? deveria ser vedado ao entendimento do subalterno? Mas Spivak ainda tem o mérito de esclarecer que, partindo da subalternidade, para ser ouvida teve que se adequar ao império da academia, à forma de linguagem, às regras, ao jeito de produzir e difundir conhecimento, que ela legitima. Ou seja, expôs a máscara que teve que vestir para ser aceita nos círculos restritos.

Não estou criticando os conceitos nem os conhecimentos dos citados autores (gosto muito das obras de Foucault), mas a linguagem utilizadas em seus textos. Quem ouve as entrevistas de Gumbrecht ou já leu As muitas camadas do mundo dos sonetos de Shakespeare, capítulo do livro Atmosfera, ambiência, Stimmung (GUMBRECHT, 2014, págs. 55-69), percebe a enorme diferença da linguagem do livro Produção de Presença. Gumbrecht é entendível quando quer ser. Nesta obra Gumbrecht chega ao ponto de, apresentando uma ideia, dizer que ela seria melhor definida por outra expressão. Daí ele apresenta a melhor expressão, mas volta ao uso daquela primeira, menos adequada. Como explicar? Sou obrigado a crer que há qualquer insegurança na defesa de sua teoria e que ele deliberadamente a complica para fazer passar despercebidas quaisquer fragilidades lógicas ou, ao menos, dificultar a vida dos outros teóricos que venham a tentar refutá-lo. Se não tivesse lido qualquer outra coisa de Gumbrecht iria acreditar, vendo como escreveu Produção de Presença, que, sendo crítico literário, não havia aprendido nada com seu objeto de crítica, ou seja, com a linguagem literária.

Minha primeira formação é em Direito, ciência social aplicada em que o conservadorismo e a tradição são claramente representados pelo jargão profissional que só se justifica, a despeito dos representados por advogados e dos que recorrem ao judiciário, pela reserva de mercado. Acuso os teóricos, de algumas outras áreas do saber, do mesmo problema ético-político: restringir, pelo artifício da complicação da linguagem, o acesso ao conhecimento. Sei que, obviamente, cada ciência e cada especialidade dentro dela, tem conceitos próprios, objetos próprios etc., que justificam significados próprios para determinados termos. O que critico é a deliberada tentativa de restringir mais ainda o entendimento através de construções que não esclarecem, antes confundem.

Uma autoridade que não sabe dizer claramente algo, mistifica, dá voltas e mais voltas, ilude, mas não perde a autoridade. A impressão que a leitura me deixou foi essa. Respeito as leituras alheias e ressalto que essa foi, apenas, a minha leitura.

 

REFERÊNCIAS

 

Foucault, M.  Eu sou um  pirotécnico. Em  R. Pol­Droit (Org.). Michel Foucault:  entrevistas (V.P. Carrero & G.G. Carneiro, Trad.) (pp. 67­100). São Paulo: Graal.  (Original publicado em 2004).

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura; tradução Ana Isabel Soares – 1. ed. – Rio de Janeiro : Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?; tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa – Belo Horizonte : Ediotora UFMG, 2010.

 



[1] Referência ao personagem ficcional Odorico Paraguaçu, um adorado político demagogo, com discursos incríveis e um dialeto próprio. Personagem criado pelo dramaturgo Dias Gomes, por volta de 1969.



 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam - RESENHA

 


A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER: EM TRÊS ARTIGOS QUE SE COMPLETAM

(RESENHA - por Juliano Barreto Rodrigues)


O opúsculo A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam, de Paulo Freire, talvez fosse mais propriamente subintitulado “em três discursos que se completam", já que os dois primeiros capítulos são exatamente isto, discursos que realizou em congressos. Só o último, tratando de um programa de alfabetização em São Tomé e Príncipe é, nas palavras do próprio autor, um artigo.

No primeiro capítulo (discurso escrito em 1981) o autor parte do particular, da sua relação pessoal com a leitura - de mundo e da palavra e da palavramundo (o mundo do aprendiz, a experiência e as palavras que ele reconhece) -, revelando conceitos que perpassam os capítulos seguintes. O segundo capítulo (discurso feito em 1992) se atém a algo mais geral, uma introdução sobre a alfabetização de adultos e sobre as bibliotecas populares. No terceiro capítulo, um artigo propriamente dito (publicado na Harvard Educational Review em 1981), Paulo Freire trata da experiência particular de um programa governamental de alfabetização que ele coordenou na República Democrática de São Tomé e Príncipe, então recém-independente (1975) e, no final, apresenta e discute partes dos Cadernos de Cultura Popular que foram utilizados no programa.

Partindo do início, Paulo Freire fala sobre sua relação com o mundo durante a infância e de como a palavra surgiu e se desenvolveu no seu mundo particular – o aprendizado da fala, a alfabetização, a escola, a faculdade, a docência – e de como a palavra também transforma o mundo. Insere o conceito de palavramundo, simbiose entre mundo e palavra, que representa a ideia de que a leitura de mundo precede à leitura da palavra, que o aprendizado deve partir das experiências do próprio aprendiz (que tem que participar ativamente da criação de seu saber), e que a palavra também transforma o mundo pessoal e coletivo.

O tempo todo Paulo Freire faz referência àqueles que facilitam a aprendizagem – os pais, professores, colaboradores, animadores dos Círculos de Cultura etc. – para destacar a importância que têm no processo. Já explicando o método de alfabetização, emprega várias vezes o prefixo “re”, em re-encontro, re-ler, re-escrita  etc., destacando que as experiências prévias do aprendiz, suas vivências, devem lastrear todo o método de ensino-aprendizado.

Paulo Freire destaca sempre o caráter político da alfabetização e várias vezes afirma que não deve ser uma mera repetição de bá-bé-bí-bó-bú, que todo aprendizado deve partir da experiência de mundo do aprendiz e tem que levá-lo a pensar seu próprio fazer, a posição que ocupa no mundo, as relações de poder em que está inserido, o que precisa fazer e aprender para pensar criticamente e mudar sua realidade (e da sua comunidade) para melhor. É o que o autor chama de um dever revolucionário, destacado principalmente no último capítulo, que trata da educação de um povo que vivia sob o jugo do colonizador e que, independente, precisava se preparar para se autogovernar. Assim, o que preconiza, em pouquíssimas palavras, é uma educação para a consciência e realização de direitos.

A ideia-base do método de alfabetização de adultos consiste em não achar que o seu objetivo é encher cabeças vazias. Olhando o aprendizado como processo de conhecimento e de criação, o alfabetizando é o seu sujeito, participante consciente, sendo o professor alguém que o ajuda sem, no entanto, tirar dele a criatividade e responsabilidade pelo aprendizado. Repetindo: o professor não enche algo vazio.

O autor traz uma crítica às comumente chamadas “lições de leitura” mecânicas. Para ele, a gramática também não deveria ser reduzida a “tabletes de conhecimentos que devessem ser engolidos pelos estudantes” (FREIRE, 1989, pág. 11), mas algo que partisse e se desenvolvesse no decorrer das discussões do que foi lido.

Outro importante conceito tratado é o da magicização da palavra escrita, consistente em uma equivocada ideia da palavra escrita como uma palavra salvadora, que alguém recebe passivamente e transforma magicamente sua vida. O conceito é estendido também para abarcar a ilusão de pensar que a quantidade de palavras (e leituras) tem, automaticamente, a ver com a qualidade da leitura, da escrita, da inteligência de quem fala, lê ou escreve.

Chama muito a atenção o conceito de Paulo Freire de Biblioteca Popular, mais como um centro cultural ou, como ele tratou no artigo sobre a alfabetização em São Tomé e Príncipe, “Círculo de Cultura”: não um local de depósito de livros, mas de atividades de leitura, teatro, discussão, compartilhamento de saberes, organização política, repositório de histórias da comunidade. Neste último sentido, é muito interessante o incentivo à gravação e transcrição das histórias, mitos e costumes dos membros da comunidade, para formar um arquivo aberto para manutenção dos conhecimentos ancestrais e, principalmente, fortalecer a identidade própria do povo e sua coesão.

A narrativa de Paulo Freire condiz inteiramente com sua ideia de palavramundo, pois, partindo de suas experiências pessoais (seu mundo), narrando quase sempre em primeira pessoa e numa linguagem próxima do coloquial, ilustra sua teoria com suas próprias vivências, ressignificadas, trazendo um texto próximo de quem lê, em uma linguagem que é mais comum no contador de histórias, no ficcionista, do que nos cientistas da academia. No seu texto há reminiscências, afetividade, opinião declarada, coisas que, provavelmente, contribuíram para tornar a obra tão difundida (porque sua linguagem extrapola o modus corrente do discurso científico e alcança um espectro maior de leitores, inclusive externos ao meio acadêmico). Não há linguagem empolada, e isso sem detrimento do desenvolvimento de uma teoria muito bem estruturada. É difícil até sublinhar o texto à procura das partes mais importantes, porque quase todos os parágrafos as têm. Parece que tudo ali é essencial. Se Paulo Freire tivesse caído, ele próprio, na armadilha da magicização da palavra, engordado e enfeitado seu texto como costumam fazer os que se afirmam pesquisadores e, mais ainda, os criadores de uma teoria, talvez já tivesse sido esquecido. Mas sua humildade intelectual e entrega ao objetivo o levaram a escrever de forma simples, mas profunda (não simplista), a dizer muito em poucas palavras, a valorizar as ideias acima do autor. Nesse sentido é, afirmo, um grande artista da palavra.

É fácil crer que nenhum leitor (não somente os educadores) saia incólume da leitura de A Importância do Ato de Ler. O texto cativante causa simpatia imediata por induzir, pelo exemplo do autor, à rememoração dos próprios leitores acerca de suas experiências pessoais, primeiro de mundo – situação em que o texto passa a ser do leitor também, que recorda - depois de palavras, clareando coisas que se intui, mas nas quais nunca se parou para pensar. Também aprofunda enormemente o tema do livro, sem mistificações de uma escrita acadêmica. Trata-se, sem dúvida de um texto fundamental - no sentido de texto fundador mesmo -, daqueles que “abrem a cabeça” de quem lê. Deveria ser leitura e discussão obrigatória já na escola.

Pessoalmente, achei o texto muito pertinente, principalmente no contexto de precarização da educação no Brasil. Queria que tudo fosse aplicado aqui. É muito importante a ênfase no aspecto da formação crítica e política, a educação vista como dever revolucionário de um povo. Paulo Freire falou muito da educação no e pelo trabalho. Mas até isso é desvirtuado por governos mal-intencionados, que sob o pretexto do pleno emprego, dificultado pela falta de qualificação profissional, investem nos cursos técnicos em detrimento dos cursos de formação critico-humanista. Talvez esse seja o único ponto do livro que vejo com cautela. Aquela afirmação cabia perfeitamente para o contexto de São Tomé e Príncipe, recém libertas da colonização e precisando construir bases econômicas que garantissem seu progresso material imediato. Já em uma pátria como o Brasil, há muitos séculos livre do colonizador, até o trabalho pode ser instrumento de alienação. A elite política quer que se ensine a trabalhar, mas sem pensar e nem, muito menos, criticar.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam / Paulo Freire. – São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

 


Memorial de Leitura


DO MUNDO À PALAVRA, DA PALAVRA AO MUNDO: PALAVRAMUNDO

(Memorial de Leitura)

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

O mundo de uma criança é mágico, o espaço parece enorme, o tempo... algo que os adultos inventam, todas as coisas a serem descobertas. É um universo das primeiras vezes. Ainda trago em mim um pouco daquele jeito de ler a realidade. Falando em leitura, de mundo e de palavras, faço aqui um relato de memórias em que recorto algumas gostosas lembranças de leitura de mundo, daquelas vinculadas às palavras (ditas, lidas, escritas), lembranças que vêm de supetão assim que penso nessa relação.

Era uma vez...

Sol alto, cheiro de poeira, o caminho de terra da subida ao morro tinha uma cruz enorme de madeira marcando a chegada a algum lugar. De repente, o amplo mundo se abriu para um mundo menor, eu estava dentro de um barraco de lona preta, sentado num banquinho colocado em frente a um altar. No meio do dia estava escuro. A benzedeira dizia uma oração e fazia referência à palavra “soldado”, pertinente a santo ou orixá. A cena é a minha lembrança fundadora. Tinha dois anos de idade. Ali, junto daquela experiência de mundo, vivi a experiência de transcendência extramundo da fé e a impressão de uma palavra. Aquilo repercutiu, dali para frente, em minha vida.

Nasceu uma dupla curiosidade, em relação ao que se pode ver e ao que se pode imaginar. O caminho da satisfação de ambas parecia ter as palavras como chave: Tudo que via e sentia eu perguntava aos meus pais o que era; tudo que eu não via, mas imaginava, eu tinha a impressão que um objeto mágico, o livro, escondia.

Na minha casa de infância havia um cesto, tipo Moisés, no meio do chão da sala. Em vez de carregar um menino, era cheio de livrinhos Sabrina, alguns thrillers policiais e suspenses de Alfred Hitchcock (estes, com suas caveiras, impressionavam mais). De forma que, eu pequenino, tomava os livros por brinquedos, tanto como o pé de amora do quintal ou as outras coisas do meu mundo familiar.

Ir para a escola me aproximava da chave do objeto mágico. Lembro bem de me debruçar na janela do carro de meu pai e, enquanto ele dirigia, eu conseguir ler as primeiras placas e letreiros da minha vida. Me senti crescido, dono do mundo. Eu já podia participar do segredo, aprender sobre tudo o que eu quisesse.

O primeiro livrinho que me lembro de ter lido foi Os três irmãos, de Vicente Guimarães. Nele, os irmãos puderam fazer pedidos, a serem realizados magicamente, e um pediu força, outro riqueza, outro sabedoria. Este, com o qual me identifiquei, recebeu um livro em que podia ler sobre qualquer coisa que quisesse aprender. Passei a procurar por um livro assim.

Era uma criança de conjunto habitacional, atenta a tudo, pés quase sempre descalços, estava sempre agarrado aos cachorros, gatos, patos, papagaios e outros bichos. Falava muito – as palavras sempre foram diversão – e, quando não estava falando, estava assoviando. Perguntava muito, mas como sempre acreditei em mistérios, buscava informações que as pessoas perto de mim não podiam dar.

Pré-adolescente, descobri os livros de parapsicologia. Meus pais tiveram a sensibilidade de não podarem aquela preferência peculiar, que me aproximou tanto da leitura (não deste mundo, mas de um tal “além”). Mais colecionava do que lia efetivamente, mas a relação com os livros se firmou ali. Trocava livros nos sebos e implorava à minha mãe o dinheiro para outros. Aprendiz de violão, uma vez encasquetei com um livro chamado, salvo engano, Da vida, apenas um violão. Insisti tanto que minha mãe se dispôs a ver o livro e, talvez, comprar para mim. Quando ela pegou o livro e leu a sinopse viu que o violão a que o título se referia era uma mulher lasciva. Era literatura adulta. Ela ficou brava comigo e, até hoje, rio daquela minha ingenuidade.

A escola teve pouca influência na leitura de ficção. Isso veio de casa, vendo minha mãe sempre sentada a devorar livros e livros, enquanto fumava. Às vezes nem nos ouvia quando a chamávamos. Com meu pai, eu e meu irmão tínhamos as ajudas com as tarefas escolares. De forma que, tanto para as leituras de fruição quanto as utilitárias, as maiores influências estavam em nosso círculo afetivo. Vô Antônio tinha um armário de livros e discos clássicos que era um parque dos sonhos para mim. Vó Ana lia jornais e era atualizadíssima.

Aos onze, bem por acaso, minha relação com a palavra ganhou um salto radical. Descobri inúmeros poemas de minha mãe e um novo universo se abriu para mim. Ela havia escrito aquilo! Então, ela escrevia e eu nem sabia. Menos ainda sabia que era possível falar do que estava dentro, de sentimentos. Se ela pôde, eu também poderia. Escrevi meu primeiro poema. Foi demais, incrível: eu punha para fora e, quando lia, revia o que sentia e processava melhor. Era como se conversasse comigo mesmo. Daí surgiu a experiência da escrita, não daquela escrita protocolar e obrigatória da escola, mas a escrita por prazer. Apreendi a palavramundo que me representava e passei a querer ampliá-la, para ampliar minhas possibilidades e experiências.

Como lia e escrevia bem, meus pais queriam que fizesse faculdade de Jornalismo. Tomei outro rumo, acabei me formando em Direito. Tal formação me deu contato com algo que eu chamo de “a palavra concreta”, ou “a concreção da palavra”: nos textos jurídicos uma vírgula errada, uma palavrinha mal-empregada podem significar a perda da liberdade de um cliente, um prejuízo financeiro etc.; um “cumpra-se” de um juiz tem o poder de movimentar instituições inteiras e mudar definitivamente a vida das pessoas. Aprendi a ter um cuidado imenso com a exatidão da palavra dita, mais ainda com a escrita (que permanece), e com suas consequências. A faculdade de Direito foi, dentre outras coisas, uma formação em escrita, teve (e tem) um valor inestimável para mim.

Toda a minha história de vida e a minha leitura de mundo estão vinculadas às palavras, seja representando, participando ou transformando cada coisa e cada vivência. Lembro-me de dois episódios em que as palavras, os livros, facilitaram muito a passagem de momentos difíceis: após um acidente, que me deixou sem andar por meses e com dores intensas, a leitura de livros sobre julgamentos famosos me fez passar por tudo de maneira muito mais leve; me lembro também, com prazer mesmo, do período em que eu levava todos os dias minha esposa para fazer fisioterapia para a recuperação de uma cirurgia de joelho e eu ficava na sala de espera lendo A Sombra do Vento, de Carlos Ruíz Zafón e, depois, Max Perkins, um editor de gênios, de A. Scott Berg. O que era para ser sacrificante foi uma oportunidade deliciosa de leitura, da qual tenho boas recordações até hoje.

Sou daqueles que se expressa muito melhor por escrito do que falando. E sempre achei que o que se imagina, no caso de interferir de alguma forma na realidade, passa a ser também, um tanto, realidade. Assim, já meio cansado da escrita concreta do Direito e do estilo seco da academia, pendi para a ficção. Gosto de ler e de escrever ficção porque acredito que aquilo que alguém imagina e escreve, mesmo quando invenção pura, transforma a realidade de quem lê, transforma sua forma de pensar, de agir e de reagir no mundo. Sendo assim, se as pessoas passam a agir, produzir ou destruir, influenciadas pelo que leram, então a ficção participa no mundo dito real, tendo, como eu já disse, sua parcela de realidade.

Meu tio disse um dia, comentando comigo alguma coisa que tinha lido em meu blog: “quem dera eu conseguisse expressar assim, por escrito, o que eu penso e sinto”. Isso teria mudado a realidade interna dele. Percebi que, o que eu faço naturalmente, tem um valor enorme, do qual eu não me dava conta. Interessante que isso nasceu lá atrás, do exemplo obtido nos poemas da minha mãe. Se meu tio houvesse tido o mesmo tipo de acesso e de exemplo, mediado pela ligação afetiva, talvez a relação que tem com sua palavramundo pudesse ser hoje diferente, maior e mais proveitosa para ele e para quem pudesse ler o que ele deixasse por escrito.

Reverencio o mundo, que deu-se a mim pelos sentidos e pela palavra. Reverencio a palavra, que me foi dada pelo mundo e que o transforma.