“Paraguaçuismo”[1]
discursivo
Juliano Barreto Rodrigues
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Sabes bem que até hoje nada sei de javanês,
mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do
crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... (Lima Barreto in O Homem Que Sabia Javanês). |
Faço aqui uma partilha de leitura que foi
significativa para mim, mas de forma negativa. Eis uma ousadia crítica que não
aconselho, já que feita em desfavor da escrita de um dos celebrados teóricos
profissionais de hoje.
Fui instado a ler o capítulo Para além do sentido: posições e conceitos
em movimento, do livro Produção de
Presença (PUC Rio, 2012), escrito pelo teórico literário alemão Hans Ulrich
Gumbrecht. Como disse, a leitura me impressionou, em mau sentido. Explico!
Primeiro Gumbrecht escreve meio capítulo, mais
de vinte páginas, se escusando pela ousadia de defender uma posição minoritária, o que talvez se justifique pelo fato de ele, que não é filósofo de formação,
lutar em campo alheio, tendo que pedir tanta licença e invocar máxima data
vênia para ser ouvido pelo público que elegeu.
Quando parte efetivamente para o tratamento da
tese que traz, o faz de forma quase barroca, enfeitando e complicando o que já
é, por natureza, complicado. Problema de linguagem artificiosamente encriptada.
Isso o que me indispôs com o texto e fez com que me sentisse um pouco manipulado
pelo autor.
Gumbrecht considera a forma de conhecimento
baseada tão somente nos sentidos, limitada, uma sucessão interminável de
interpretações. Os objetos de estudo (inclusive a arte) são o que são (no tempo).
O autor propõe uma outra forma de ver as coisas e seres, como presença (no
espaço), numa relação de aproximação e afastamento em relação ao mundo. Aqui há
que se diferenciar os conceitos de terra e mundo. O primeiro, vinculado ao
universo dos sentidos, isola o objeto em sua existência temporal e o
conhecimento que se tem dele depende de observação e interpretação. O segundo,
defendido por Gumbrecht, é mais amplo, vê os objetos de conhecimento
horizontalmente, em relação ao seu entorno e aos observadores. Na aproximação e
no afastamento o objeto se mostra e se oculta, dando-se a conhecer nesta
relação e de acordo com as modificações que cada tempo nele opera. Ele não é
somente o que é, como quando surgiu; ele é como se apresenta no tempo da
aproximação e em relação com o mundo. Assim, uma ruina de coluna jônica, vista
hoje, será considerada uma ruina de coluna jônica, e não uma coluna jônica em
si, como se estivesse intacta. Difícil de entender? Muito. E embora eu talvez
não tenha entendido bem, nem explicado a contento, o texto de Gumbrecht não faz
nada para tornar a ideia mais inteligível.
A experiência de leitura do texto me trouxe à
memória dois outros pensadores: Michel Foucault e Gayatri Chakravorty Spivak
(autora de Pode o Subalterno Falar?).
Ambos escreveram da mesma forma hermética que Gumbrecht usou em seu texto.
Podendo clarificar os conceitos e o entendimento, os emaranharam em uma linguagem
rebuscada, redundante e “pavônica”, para dar ares de maior gravidade e erudição
para suas teorias.
Foucault, na terceira entrevista que concedeu a
Roger-Pol Droit, em 1975, se afirmou um “pirotécnico”. Ele se autodesignou assim
para afirmar sua tendência a polemizar temas que o senso comum preferia deixar
‘por baixo dos panos’. Mas, para mim, pirotecnia também adjetiva a sua
linguagem. Seus textos são de um exibicionismo intelectual e de uma
autocondescendência enormes. Não é, no entanto, um autor condescendente com
seus leitores. Em uma linguagem intrincada, que se afasta e se aproxima do
objeto, o rodeia à exaustão, transforma cada leitor em tradutor de suas ideias,
quando bastava que as colocasse de forma clara. A mesma coisa acontece na
leitura de Spivak: complica o que era para ser simples. Um texto chamado Pode o Subalterno Falar? deveria ser
vedado ao entendimento do subalterno? Mas Spivak ainda tem o mérito de
esclarecer que, partindo da subalternidade, para ser ouvida teve que se adequar
ao império da academia, à forma de linguagem, às regras, ao jeito de produzir e
difundir conhecimento, que ela legitima. Ou seja, expôs a máscara que teve que
vestir para ser aceita nos círculos restritos.
Não estou criticando os conceitos nem os
conhecimentos dos citados autores (gosto muito das obras de Foucault), mas a
linguagem utilizadas em seus textos. Quem ouve as entrevistas de Gumbrecht ou
já leu As muitas camadas do mundo dos
sonetos de Shakespeare, capítulo do livro Atmosfera, ambiência, Stimmung (GUMBRECHT, 2014, págs. 55-69), percebe
a enorme diferença da linguagem do livro Produção
de Presença. Gumbrecht é entendível quando quer ser. Nesta obra Gumbrecht
chega ao ponto de, apresentando uma ideia, dizer que ela seria melhor definida
por outra expressão. Daí ele apresenta a melhor expressão, mas volta ao uso daquela
primeira, menos adequada. Como explicar? Sou obrigado a crer que há
qualquer insegurança na defesa de sua teoria e que ele deliberadamente a
complica para fazer passar despercebidas quaisquer fragilidades lógicas ou, ao
menos, dificultar a vida dos outros teóricos que venham a tentar refutá-lo. Se
não tivesse lido qualquer outra coisa de Gumbrecht iria acreditar, vendo como
escreveu Produção de Presença, que,
sendo crítico literário, não havia aprendido nada com seu objeto de crítica, ou
seja, com a linguagem literária.
Minha primeira formação é em Direito, ciência
social aplicada em que o conservadorismo e a tradição são claramente
representados pelo jargão profissional que só se justifica, a despeito dos representados
por advogados e dos que recorrem ao judiciário, pela reserva de mercado. Acuso
os teóricos, de algumas outras áreas do saber, do mesmo problema ético-político:
restringir, pelo artifício da complicação da linguagem, o acesso ao
conhecimento. Sei que, obviamente, cada ciência e cada especialidade dentro
dela, tem conceitos próprios, objetos próprios etc., que justificam significados
próprios para determinados termos. O que critico é a deliberada tentativa de
restringir mais ainda o entendimento através de construções que não esclarecem,
antes confundem.
Uma autoridade que não sabe dizer claramente
algo, mistifica, dá voltas e mais voltas, ilude, mas não perde a autoridade. A
impressão que a leitura me deixou foi essa. Respeito as leituras alheias e
ressalto que essa foi, apenas, a minha leitura.
REFERÊNCIAS
Foucault, M. Eu sou um pirotécnico. Em
R. PolDroit (Org.). Michel Foucault: entrevistas (V.P. Carrero
& G.G. Carneiro, Trad.) (pp. 67100). São Paulo: Graal.
(Original publicado em 2004).
GUMBRECHT,
Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência,
Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura; tradução Ana Isabel
Soares – 1. ed. – Rio de Janeiro : Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.
SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. Pode o subalterno falar?;
tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André
Pereira Feitosa – Belo Horizonte : Ediotora UFMG, 2010.
[1]
Referência ao personagem ficcional Odorico Paraguaçu, um adorado político demagogo,
com discursos incríveis e um dialeto próprio. Personagem criado pelo dramaturgo
Dias Gomes, por volta de 1969.
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