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Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Novela Pantanal: um olhar, à luz da crítica sobre a Indústria Cultural

 



Novela Pantanal: um olhar, à luz da crítica sobre a Indústria Cultural

 

Juliano Barreto Rodrigues.

 

A novela Pantanal foi exibida, pela primeira vez, em 1990, pela TV Manchete (extinta em 1999). Foi escrita por Benedito Ruy Barbosa e teve a direção geral de Jayme Monjardim. Contava, no elenco, com grandes atores globais e superou a Rede Globo em audiência no horário. Foi reprisada em 1991-1992 e em 1998-1999. Antes disso, em 1984, a Central Globo de Produções havia iniciado sua pré-produção, com o nome de Amor Pantaneiro, como novela das seis, mas o projeto foi descontinuado. Em 2006 a Rede Globo adquiriu os direitos sobre a obra e pretendia fazer uma adaptação em 2008, ano em que o SBT reprisou aquela primeira versão, superando novamente os índices de audiência da Rede Globo.

Já em 2020, a Rede Globo anunciou uma adaptação, da autoria de Bruno Barbosa Luperi (neto de Benedito Ruy Barbosa) a ser exibida em 2021. A pandemia de COVID-19 atrasou o lançamento para o ano de 2022.

Uma novela que merece um remake, com adaptação original, após 32 anos da primeira exibição (e que já foi reprisada com grandes índices de audiência outras vezes) é um grande sucesso da Indústria Cultural brasileira.

Theodor Adorno e Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, cunharam a expressão “Indústria Cultural”, designativa da concepção de produção/reprodução em massa de bens culturais. A reprodutibilidade técnica[1] das obras artísticas, possível com a evolução tecnológica, fez com que saíssem da condição de obras únicas (de fruição limitada a poucos privilegiados que a elas tinham acesso) e alcançassem as massas. Indústria Cultural, na acepção da expressão dada por Adorno e Horkheimer, está baseada na reprodutibilidade dos bens culturais (agora produtos), voltados a um mercado consumidor (ao lucro). Esse mercado funciona como outro qualquer, onde atendem-se ou criam-se as demandas e os produtos para elas, a custo razoável para o público visado e garantindo altíssimos lucros para as corporações dessa indústria (sobre volume e segundo as leis capitalistas da oferta e da procura).

Entendendo a novela Pantanal como um produto cultural, muito lucrativo dentro da lógica da Indústria Cultural, produto que existe em função da possibilidade técnica de reprodução em massa pela televisão, que a atualiza agora em uma versão ambientada no pantanal contemporâneo, para alcançar também a identificação de um público que talvez ficasse excluído (acostumado às tecnologias, como internet, telefone celular, monitoramento virtual do agronegócio etc.), a nova versão da novela Pantanal figura como um objeto perfeito de estudo sobre algumas peculiaridades daquela indústria.

Primeiro, é preciso lembrar que, conforme Adorno e Horkheimer (1947, p. 64), “[...] a indústria cultural permanece a indústria da diversão”. E que nesse modelo de entretenimento, continua valendo aquela fórmula, de que falaram em 1947 – e que, talvez, tenha até se exacerbado e ficado mais explícita –, de que:

O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reacção: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, pp. 64-65).

 

Seguindo o paradigma de sucesso da primeira versão, que lançou a atriz Cristiane Oliveira ao estrelato na TV, através da personagem Juma, a nova Juma Marruá também é representada por uma atriz novata em televisão, jovem, branca, que atende aos padrões de beleza vigentes.

Visando o mesmo sucesso da primeira vez, é notório que se repetem, com exatidão, muitos pontos do que deu certo, o que revela também a atenção ao senso comum, tão caro à indústria cultural, que diz que “em time que está ganhando não se mexe”. É o caso, por exemplo, de colocar uma atriz estreante, com características bem próximas daquela que fez o papel anteriormente (inclusive o olhar felino), para representar a Juma; também o fato de utilizarem a mesma fazenda da primeira produção como locação; bem como trazer atores que atuaram na primeira versão para fazerem outros papéis etc. Não se pretende inovar no essencial, mas maquiar (lembre-se: é um remake) com novas cores a versão original, para tentar alcançar o mesmo sucesso de audiência que ela teve. Tudo é pensado a partir daquela “mentalidade-índice-de-audiência”, de que falava Bourdieu (1997, p. 37). Até as polêmicas e as tragédias da versão nova são, quase todas, revisitações modernizadas daquelas anteriores. Nesse ponto, sem inovar em nada em relação àquela educação censora implícita da indústria cultural (mecanismo de manipulação), “A simples existência de uma receita conhecida é suficiente para apaziguar o medo de que o trágico possa escapar ao controle” (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, p. 72).

Assim, as polêmicas – abandono de recém-nascido, homofobia, relações incestuosas entre irmãos, infidelidade conjugal, o pacto com o diabo, o fantástico manifestado nas pessoas encantadas em animais, a riqueza legendária etc., têm, mesmo aquelas mais graves, soluções rápidas, que evitam que o trágico passe do ponto: Maria Marruá abandona Juma, rescém-nascida, dentro do barco no rio, mas logo em seguida, diante da ameaça do Véio do Rio, transformado em sucuri perto da criança, Maria a resgata; os irmãos Guta e Marcelo se encontram e se envolvem, se beijam, mas não chegam a se relacionar sexualmente, descobrindo logo que são irmãos (mais para a frente ficam sabendo que, na verdade, não são irmãos e, então, ficam juntos); o mordomo Zaqueu sofre homofobia na fazenda de José Leôncio e vai embora, mas, depois de alguns capítulos, em que o tema do preconceito é tratado pedagogicamente, retorna e é bem recebido por todos; nesse sentido, até Juventino, filho do “Rei do Gado”, José Leôncio, é inicialmente recepcionado pelos peões da fazenda do pai como “frozô” (é o tema pejorativo que usam), mas depois de suas aventuras amorosas e uma luta exemplar com um contendor armado de faca, é orgulhosamente tido pelo pai e pelos irmãos como muito homem; a infidelidade de Maria Bruaca é perfeitamente justificada pelo tratamento injusto que seu marido lhe confere e pela ideia de “chifre trocado”; o cramunhão de Trindade prevê as tragédias mas, em seguida, ajuda a dar soluções para elas (é mais anjo do que diabo); a riqueza absurda de José Leôncio é honesta e respeitadora incondicional da natureza; assim por diante. Até as mortes dos vilões se dão, quase sempre, por uma variante do deus ex machina: perseguidos, são comidos, antes de alcançados, por piranhas, ou por uma onça, ou pela sucuri. Ou caem de avião. Não há um espetáculo sádico, mas “[...] apenas um espetáculo inteligível”, como diria Barthes (2001, p. 16). Maria Marruá, Juma Marruá, o Véio do Rio, se transformam em animais quando estão com raiva e precisam agir violentamente; assim, é como se não fossem exatamente eles, mas animais, tendo comportamentos normais para animais. Nesta novela, não se sujam as mãos. E não se atacam as suscetibilidades dos espectadores (ou só o fazem minimamente, e corrigindo logo a seguir).

Falando novamente daquela briga de Juventino e Alcides, que aconteceu no casamento de Juventino com Juma, a peripécia é muito inverossímil: um peão ciumento puxa uma faca contra o noivo, no ambiente deste (desarmado, franzino, citadino), que está cercado por seus familiares (que andam sempre com armas de fogo ou facas), mas ninguém intervém nem para evitar que o ataque comece, nem para encerrá-lo. Quando o azarão vence, tentam justificar sua vitória impossível, dizendo que ele é um Leôncio, que estudou artes marciais na cidade, que Alcides estava muito bêbado. Até o fato de Maria Marruá, Juma e o Véio do Rio se transformarem em animais é mais coerente do que isso, dentro da proposta fantástica de certo núcleo da novela.

O maniqueísmo das personagens é quase geral: quem é bom é flagrantemente bom (mesmo que mate é por justiça, como o Véio do Rio que, na forma da sucuri engole o homem que queria exterminar Gil e Maria Marruá, pais de Juma), quem é ruim chega a ser quase caricato. É um recurso que facilita imensamente a percepção do público, que não precisa raciocinar sobre possíveis intensões veladas, nem ler nas entrelinhas qualquer coisa. Tudo é dado, inequívoco, professoral (o Véio do Rio, o cramunhão, Eugênio chalaneiro, às vezes funcionam como se fossem narradores oniscientes, prevendo, sugerindo, explicando e justificando em palavras, os acontecimentos e os atos das personagens).

A música, a fartura da mesa, as paisagens paradisíacas do pantanal, a fala característica, são personagens inumanos constantes em todos os capítulos. São “respiros” de deslumbramento a encher os olhos e ouvidos de espectadores neste Brasil em crise e satisfazem as necessidades estéticas e de demarcação simbólica da obra. Esta imagem está sendo vendida (especialmente o apelo ecológico) para vários países, como o Uruguai, Colômbia, Chile, Argentina, Eslovênia, Venezuela, entre outros, que já adquiriram direitos de exibição da novela ou estão em processo de negociação.

Chamam a atenção as propagandas explícitas de produtos - estéticos, de limpeza etc., até aplicativo de meditação -, cujas aparições não se limitam a algum close em cena, mas têm comentários das próprias personagens, um recurso excessivo, grosseiro, quem nem disfarça a intenção de atingir “consumidores”. É de imaginar como os telespectadores de outros países receberão mal este artifício (caso não cortem as propagandas).

Uma análise mais detida apontaria muito mais coisas meio óbvias, como as comentadas, até aqui, em uma segunda camada de leitura. E, talvez, também sutilezas (se é que há) mais artísticas e filosóficas. A novela Pantanal é um retumbante exemplo de “produto” para uma cultura de massas, que atende perfeitamente aos padrões de escala industrial da indústria que a criou. Foi feita, nos mínimos detalhes, para ser campeã de audiência e para ser reproduzida em outros países. É uma bela peça de mercado.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. 1947. (Dialektik der Aufklärung – Philosophische Fragmente). Theodor W. Adorno. &. Max Horkheimer. 24 páginas. Disponível em: < https://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2014/04/Adorno-e-Horkheimer-A-ind%C3%BAstria-cultural.pdf>. Acessado em: 29 jun. 2022.

BARTHES, Roland. Mitologias; tradução de Rita Buongerminto e Pedro de Souza. – 11ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BENJAMIN, W.  A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: GRÜNEWALD, J. L. (trad. e org.). A Ideia do Cinema: Ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. pp. 165-196. Disponível em: <http://www.hrenatoh.net/curso/artetec/txt_benjamin.pdf>. Acessado em 29 jun. 2022.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão / Pierre Bourdieu; tradução, Maria Lúcia Machado. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



[1] Cf. A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamim (vide Bibliografia).