O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

domingo, 27 de setembro de 2020

O que é Literatura?


 

O QUE É LITERATURA?


Juliano Barreto Rodrigues


     Não há um conceito conclusivo do que seja literatura. Provavelmente nem vai haver. Trata-se de uma definição que, conforme a história revela, tem se modificado no tempo e nas diversas culturas (espaços diferentes). Mas, como disse Williams (2007, p. 256), “O que, então, deve ser rastreado é a tentativa amiúde bem-sucedida de especialização do termo literatura para designar certos tipos de escrita.”

     É relativamente fácil relacionar a música e as artes plásticas a arte, mas o texto escrito não se classifica tão facilmente como arte escrita, como Literatura. Isso, talvez porque a escrita sempre foi muito mais utilizada para fins utilitários do que artísticos e, mesmo nestes casos, é uma arte que nem sempre revela de forma tão evidente seu valor estético. 

     Literatura já foi definida como tudo que se registrava por escrito, também como aquilo que se escrevia por e para a “alta cultura”; já foi conceituada tanto se baseando no seu conteúdo quanto, depois, exclusivamente na forma de escrita; para uns, inclui a tradição que é repassada oralmente, ideia inadmissível para outros (apoiados na própria etimologia da palavra literatura, do latim littera, significando “letra”, portanto algo escrito). Ou seja, há ‘correntes’ de pensamento a respeito do que seja literatura, e todas têm argumentos defensáveis.

     Aristóteles, em seu tratado A Poética, indicava que o texto literário (denominado “poesia”, não distinguindo o verso da prosa) partia do mundo e a ele se referia por imitação. O problema é que, quando se trata o texto literário estritamente como imitação, o gesto poético fica adstrito à reprodução do mundo real. Assim, os teóricos ulteriores expandiram o termo referente a imitação, usado por Aristóteles – mímesis (do grego μίμησις) – utilizando este como conceito próprio e significando bem além daquilo que o uso comum da palavra imitação normalmente representa, porque a poesia (significando literatura de forma geral) ultrapassa a simples imitação das ações dos homens, ela constrói o que poderia ter acontecido ou que poderia vir a acontecer (às vezes de forma absurda, fantasiosa, onírica etc., no entanto, verossímil de alguma maneira). Aí entra a imaginação, que chamamos hoje de ficção. Isso repercute na criação, palavra-chave do fazer literário, mas também na forma de leitura, pois, como afirma em aula o professor de Teoria da Literatura, Dr. Anderson L. N. da Mata, da Universidade de Brasília (UnB), quando não se está lidando com o que aconteceu, tem-se um outro registro dos fatos e da linguagem. 

     O escritor colombiano Gabriel García Márquez, em entrevista a seu conterrâneo e também escritor Plinio Apuleyo Mendonza, traz, falando do Romance (talvez a forma mais generalizada de literatura atual), uma ideia de mimese – a que chama de “transposição poética da realidade” – muito interessante: “[...] é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se almeja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apoie nela. Como acontece com os sonhos.” (MÁRQUEZ, 2020, p. 51). 

     Deleuze vai além da ideia de mimese, ou talvez apenas amplie seu sentido e a perspectiva de interação do leitor, colocando em seu lugar o que chama de “devir”:

Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula. (DELEUZE, 1983, p. 12).

     Mimese, devir, representação – “[...] a arte seria representacional enquanto manifesta a ‘verdade’ ou a ‘essência’ da exterioridade eleita como núcleo do mundo” (COSTA LIMA, 1981, p. 216) –, são pertinentes ao conteúdo. Conteúdo e/ou forma peculiares, eis, ainda, os dois principais pontos de caracterização da literatura. O problema é que não são absolutos nem incontroversos. Veja o que diz Eagleton a respeito do primeiro ponto:

Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita "imaginativa'', no sentido de ficção - escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. A literatura inglesa do século XVII inclui Shakespeare, Webster, Marvell e Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os sermões de John Donne [...]. (EAGLETON, 2006, p. 1).

     Da mesma maneira que algumas não-ficções são consideradas literatura, uma certa forma distintiva, defendida ao extremo pelos formalistas russos, também nem sempre é, sozinha, determinante para caracterização do texto como literário, haja vista que, a forma de escrita prosaica de uma época passada ou de determinado local pode ser vista como poética em outro tempo ou lugar. Nesse sentido, “Quem acredita que a ‘literaturà' possa ser definida por esses usos especiais da linguagem tem de enfrentar o fato de que há mais metáforas na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na poesia de Marvell.” (EAGLETON, 2006, p. 8).

     Por outro lado, o sistema de circulação do texto literário, que abrange escritores, leitores, mediadores (professores, editores, críticos, livrarias, agências literárias e de marketing etc.) define e consolida – inclusive a despeito das teorias mais aceitas – o que é considerado literatura em determinado contexto histórico e espacial. Até porque, a literatura é arte e, como tal, traz em si a tendência histórica no sentido de romper com a tradição. Isso estimula a experimentação e a assunção de riscos estéticos pelo artista, coisa que os gêneros “não literários” praticamente proíbem. Quem, senão o próprio autor e alguns dos movimentadores desse sistema, classificaria como literatura, por exemplo, o livro Múltipla Escolha, do chileno Alejandro Zambra, todo escrito como questionário de prova de vestibular?

     Revendo minhas experiências pessoais de leitura, o conceito de literatura que mais me assenta é o que a define como ‘arte da palavra’, algo a que Willians (2007, p. 257) chama de “complexo moderno de literatura”, resultado do mix “arte, estético, criativo e imaginativo”. Entendo que uma preocupação essencial com a estética, bem como as escolhas deliberadas de palavras com o fim de causar determinado ‘efeito’ emocional nos leitores, caracterizam – como ocorre em outras formas de arte – a Literatura.

     Se, por um lado, não considero que qualquer coisa escrita seja literatura, por outro, acredito que algo não escrito – como as narrativas orais tribais africanas, ou indígenas brasileiras, que Ailton Krenak chama de “memória ancestral” (KRENAK, p. 9), por exemplo – o seja. 

     Forma e conteúdo. O que diferencia o texto literário de um texto formulaico, ou noticioso, ou de outro qualquer é seu conteúdo ou a forma em que é escrito (ou, frequentemente, as duas coisas). Não tendo função informativa nem instrucional, embora possam eventualmente informar e instruir (a exemplo das crônicas, das fábulas, dos romances de formação, dos textos religiosos, dentre outros), são atribuídas aos autores literários tanto grande liberdade ficcional quanto estilística (embora a fortuna do gênero imponha certos limites consensuais que são, mais ou menos, respeitados). Levando em conta a ideia que mais me apraz de literatura, entendo que esses dois componentes, ficção e forma (ou estilo artístico) é que conferem os elementos de fruição estética, característicos do enlevo causado pelas demais obras de arte, ao texto literário.

     Arte da palavra, em que prevalecem a criação ficcional e uma forma de escrita deliberadamente trabalhada esteticamente, marcada com o cunho autoral (subjetivo) e buscando causar um ‘efeito’ emocional no leitor – estas, para mim, as principais características definidoras de Literatura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

COSTA LIMA, Luiz. Representação social e mimesis. In Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981. p. 216-236

DELEUZE, Gilles, La Litérature et la Vie, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.

EAGLETON, Terry Teoria da literatura : uma introdução; tradução de Waltensir Outra ; [revisão da tradução João Azenha Jr_]_ - 6" ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2006. - (Biblioteca universal). 387 páginas.

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo, 2019.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cheiro de Goiaba : conversas com Plinio Apuleyo Mendonza; tradução de Eliane Zagury. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2020. 190 páginas.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. – São Paulo : Boitempo, 2007. 464 páginas.

ZAMBRA, Alejandro. Múltipla escolha; tradução de Miguel Del Castillo. - 1ª ed. - São Paulo: Planeta do Brasil, 2017. 112 páginas.



Romance - uma breve introdução

Impressões sobre o conto Animais, de Michel Laub

 


IMPRESSÕES SOBRE O CONTO ANIMAIS, DE MICHEL LAUB


Juliano Barreto Rodrigues


     Eu nunca tinha lido nada escrito por Michel Laub. O conto Animais é um daqueles textos que quem lê pode ter a impressão equivocada de que é algo que qualquer um escreve. Isso por relatar situações autobiográficas. Mas não se engane, o conto não é uma mera narrativa daquelas que se faz na escola para responder, por exemplo, “como foram suas férias?”: é um belo conto sobre a morte, sobre a saudade e, coisa que mais me tocou, sobre a importância que a presença de certos seres (especialmente o pai, no conto)  tem em nossas vidas. Aqui já usei a primeira pessoa do plural, confessando que o texto me tocou, me apropriei dele. E quem não se emocionou?

     Trata-se de um conto: é curto, em prosa, com parágrafos e, embora traga diversas personagens e narrativas dentro da narrativa principal (o que poderia ser confundido com episódios), elas não são subtramas, só corroboram a trama mesmo; traz apenas um eixo temático; é um texto com início, meio e fim.

     Embora comece o texto falando do cachorro e o título seja Animais, o narrador trata, principalmente, do pai, da relação com o pai e da falta que ele faz. Talvez a figura do cachorro Champion seja emblemática da relação do narrador personagem com a morte, porque, no último parágrafo, ele diz que nunca mais chorou, nem quando os amigos morreram, nem quando o pai morreu. 

     O título desloca nossa atenção para os animais, mas fala principalmente de pessoas. Parece uma estratégia para revelar uma certa forma de ver a morte, como se dissesse: somos todos animais e como animais morremos, não há sentido especial nisso. Mas há significado na falta, na lembrança. 

     O texto é quase uma lista de obituário, uma coleção de 9 mortos (entre animais e pessoas) em apenas 24 parágrafos. E ainda há a possibilidade, em aberto, do dobermann ter morrido ou não. No parágrafo 18 ainda há a referência às relações – de amizade, amorosas etc. – que não duraram, e que podem ser vistas como uma espécie de morte também. Assim, o conto foi feito para dar certo literariamente, para causar um efeito: a morte e tudo que a cerca, especialmente a de entes queridos, é um tema recorrente e que toca. Adriano Schwartz, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada, na USP, disse, comentando o conto Animais, após o lançamento da antologia Granta, que “[...] como acontece tantas vezes na obra dele [de Laub], é calculado demais, contido demais.” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012). Pode ser calculado e contido demais no seu estilo, na forma da escrita (e foi também a impressão que eu tive), mas com certeza não é contido no conteúdo: no conto há praticamente meio morto para cada parágrafo.

     Principalmente nos parágrafos 6, 13, 17 e 23 o tempo cronológico, que se atém ao passado ocorrido, se mescla com o tempo psicológico, presente, do narrador personagem que conta a história. Isto aproxima mais o  narrador do leitor, (que sente o narrador mais concretamente, como ser real e não como abstração de escritor), quando revela seu estado de espírito na rememoração daquilo que conta. É uma boa “isca” para aumentar a verossimilhança e fisgar ainda mais o leitor. 

     A estrutura, em parágrafos bem espaçados, sem recuo e numerados, ressalta o tempo na narrativa, com os espaços em branco funcionando como aquilo que o escritor Marcelino Freire chama de “respiros do texto”, pausas maiores que o normal para o leitor desacelerar e cotejar suas próprias lembranças e experiências.

     Em entrevista, Michel Laub disse que alguns teóricos diferenciam a autobiografia da autoficção por uma aspecto formal (LAUB, 2016) – na autobiografia o texto seria em primeira pessoa e na autoficção o autor, embora falando de si, utilizaria a 3ª pessoa – mas, ao que tudo indica, essa explicação não se sustenta,  a diferença real está no conteúdo, na presença deliberada do elemento ficcional. Até porque, rotulado como escritor de autoficção, seu texto Animais é escrito em 1ª pessoa.

     “Autoficção” está muito na moda, mas o termo foi usado originalmente em 1977, por Serge Doubrowsky, em seu romance Fils. Diz respeito a obras que apresentam situações autobiográficas, mas,  também, elementos claramente ficcionais.

     No parágrafo 19 o narrador dá dica, metaficcionalmente, de como acontece a autoficção: “[...] Nos romances que escrevi retratei meu pai de várias formas: como judeu marcado pela memória de guerra, como personagem secundário na história do acidente com a rede, como homem que dá a pior notícia da vida do filho antes de um jogo de futebol. Tudo verdade e tudo mentira, como sempre na ficção, e já pensei muito no porquê de ter sempre escrito sobre ele, e se quando ficar velho vou confundir a memória dele com a memória registrada nesses livros [...]. (sem negrito no original).

     Não foi fácil, para mim, decidir o que considero o clímax do conto, porque a trama é toda muito homogênea, há pouco sobe e desce, o efeito acontece por acumulação de ‘pequenas ondas’. Acabei por coincidir o clímax com o final do texto, o último parágrafo, que traz o elemento mais instigante, aquele desfecho aberto. Destaco o trecho-chave, o finalzinho, que traz a dúvida da decisão, bem como uma metáfora bem interessante sobre a situação que o pai do narrador personagem iria se deparar em seguida: “[...] a imagem mais nítida que guardo do meu pai, eu tão próximo de tomar uma decisão enquanto ele esperava pela resposta do lobo.”

     O desfecho fica em aberto como estratégia para engajar o leitor, que tem que imaginar se o narrador personagem envenenou o dobermann ou não. Isso obriga a participação do leitor, que tem que imaginar o desfecho que mais lhe agrada ou que considera mais lógico. É um artifício que faz com que o texto fique gravado na memória por muito mais tempo, já que há um problema sem solução e o leitor, por mais que queira, não consegue ter certeza se o final que acha melhor é aquele que o autor também acha. O cérebro tenta integrar lacunas, mas se depara com algo insuperável objetivamente: a solução não está nas mãos dele, leitor, mas nas do escritor. 

     Animais é um texto incrível, exemplo a ser trabalhado em oficinas de escrita criativa. O autor sabe muito bem o que fazer para o texto funcionar. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.

LAUB, Michel. Animais. IN: GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva (Alfaguara), 2012, p. 13-23.

____________. Michel Laub / Episódio completo: Minha vida dá um livro / Super Libris. Youtube. 12 abr. 2016. Disponível em: <https://youtu.be/wdCMrEz4EGI> . Acesso em 26 set. 2020.

SCHWARTZ, Adriano. Crítica: Linguagem contida da “Granta” distingue seleção acima da média. Folha de São Paulo, 16 jul. 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1120548-critica-linguagem-contida-da-granta-distingue-selecao-acima-da-media.shtml>. Acesso em: 25 de set. de 2020.