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domingo, 27 de setembro de 2020

Impressões sobre o conto Animais, de Michel Laub

 


IMPRESSÕES SOBRE O CONTO ANIMAIS, DE MICHEL LAUB


Juliano Barreto Rodrigues


     Eu nunca tinha lido nada escrito por Michel Laub. O conto Animais é um daqueles textos que quem lê pode ter a impressão equivocada de que é algo que qualquer um escreve. Isso por relatar situações autobiográficas. Mas não se engane, o conto não é uma mera narrativa daquelas que se faz na escola para responder, por exemplo, “como foram suas férias?”: é um belo conto sobre a morte, sobre a saudade e, coisa que mais me tocou, sobre a importância que a presença de certos seres (especialmente o pai, no conto)  tem em nossas vidas. Aqui já usei a primeira pessoa do plural, confessando que o texto me tocou, me apropriei dele. E quem não se emocionou?

     Trata-se de um conto: é curto, em prosa, com parágrafos e, embora traga diversas personagens e narrativas dentro da narrativa principal (o que poderia ser confundido com episódios), elas não são subtramas, só corroboram a trama mesmo; traz apenas um eixo temático; é um texto com início, meio e fim.

     Embora comece o texto falando do cachorro e o título seja Animais, o narrador trata, principalmente, do pai, da relação com o pai e da falta que ele faz. Talvez a figura do cachorro Champion seja emblemática da relação do narrador personagem com a morte, porque, no último parágrafo, ele diz que nunca mais chorou, nem quando os amigos morreram, nem quando o pai morreu. 

     O título desloca nossa atenção para os animais, mas fala principalmente de pessoas. Parece uma estratégia para revelar uma certa forma de ver a morte, como se dissesse: somos todos animais e como animais morremos, não há sentido especial nisso. Mas há significado na falta, na lembrança. 

     O texto é quase uma lista de obituário, uma coleção de 9 mortos (entre animais e pessoas) em apenas 24 parágrafos. E ainda há a possibilidade, em aberto, do dobermann ter morrido ou não. No parágrafo 18 ainda há a referência às relações – de amizade, amorosas etc. – que não duraram, e que podem ser vistas como uma espécie de morte também. Assim, o conto foi feito para dar certo literariamente, para causar um efeito: a morte e tudo que a cerca, especialmente a de entes queridos, é um tema recorrente e que toca. Adriano Schwartz, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada, na USP, disse, comentando o conto Animais, após o lançamento da antologia Granta, que “[...] como acontece tantas vezes na obra dele [de Laub], é calculado demais, contido demais.” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012). Pode ser calculado e contido demais no seu estilo, na forma da escrita (e foi também a impressão que eu tive), mas com certeza não é contido no conteúdo: no conto há praticamente meio morto para cada parágrafo.

     Principalmente nos parágrafos 6, 13, 17 e 23 o tempo cronológico, que se atém ao passado ocorrido, se mescla com o tempo psicológico, presente, do narrador personagem que conta a história. Isto aproxima mais o  narrador do leitor, (que sente o narrador mais concretamente, como ser real e não como abstração de escritor), quando revela seu estado de espírito na rememoração daquilo que conta. É uma boa “isca” para aumentar a verossimilhança e fisgar ainda mais o leitor. 

     A estrutura, em parágrafos bem espaçados, sem recuo e numerados, ressalta o tempo na narrativa, com os espaços em branco funcionando como aquilo que o escritor Marcelino Freire chama de “respiros do texto”, pausas maiores que o normal para o leitor desacelerar e cotejar suas próprias lembranças e experiências.

     Em entrevista, Michel Laub disse que alguns teóricos diferenciam a autobiografia da autoficção por uma aspecto formal (LAUB, 2016) – na autobiografia o texto seria em primeira pessoa e na autoficção o autor, embora falando de si, utilizaria a 3ª pessoa – mas, ao que tudo indica, essa explicação não se sustenta,  a diferença real está no conteúdo, na presença deliberada do elemento ficcional. Até porque, rotulado como escritor de autoficção, seu texto Animais é escrito em 1ª pessoa.

     “Autoficção” está muito na moda, mas o termo foi usado originalmente em 1977, por Serge Doubrowsky, em seu romance Fils. Diz respeito a obras que apresentam situações autobiográficas, mas,  também, elementos claramente ficcionais.

     No parágrafo 19 o narrador dá dica, metaficcionalmente, de como acontece a autoficção: “[...] Nos romances que escrevi retratei meu pai de várias formas: como judeu marcado pela memória de guerra, como personagem secundário na história do acidente com a rede, como homem que dá a pior notícia da vida do filho antes de um jogo de futebol. Tudo verdade e tudo mentira, como sempre na ficção, e já pensei muito no porquê de ter sempre escrito sobre ele, e se quando ficar velho vou confundir a memória dele com a memória registrada nesses livros [...]. (sem negrito no original).

     Não foi fácil, para mim, decidir o que considero o clímax do conto, porque a trama é toda muito homogênea, há pouco sobe e desce, o efeito acontece por acumulação de ‘pequenas ondas’. Acabei por coincidir o clímax com o final do texto, o último parágrafo, que traz o elemento mais instigante, aquele desfecho aberto. Destaco o trecho-chave, o finalzinho, que traz a dúvida da decisão, bem como uma metáfora bem interessante sobre a situação que o pai do narrador personagem iria se deparar em seguida: “[...] a imagem mais nítida que guardo do meu pai, eu tão próximo de tomar uma decisão enquanto ele esperava pela resposta do lobo.”

     O desfecho fica em aberto como estratégia para engajar o leitor, que tem que imaginar se o narrador personagem envenenou o dobermann ou não. Isso obriga a participação do leitor, que tem que imaginar o desfecho que mais lhe agrada ou que considera mais lógico. É um artifício que faz com que o texto fique gravado na memória por muito mais tempo, já que há um problema sem solução e o leitor, por mais que queira, não consegue ter certeza se o final que acha melhor é aquele que o autor também acha. O cérebro tenta integrar lacunas, mas se depara com algo insuperável objetivamente: a solução não está nas mãos dele, leitor, mas nas do escritor. 

     Animais é um texto incrível, exemplo a ser trabalhado em oficinas de escrita criativa. O autor sabe muito bem o que fazer para o texto funcionar. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.

LAUB, Michel. Animais. IN: GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva (Alfaguara), 2012, p. 13-23.

____________. Michel Laub / Episódio completo: Minha vida dá um livro / Super Libris. Youtube. 12 abr. 2016. Disponível em: <https://youtu.be/wdCMrEz4EGI> . Acesso em 26 set. 2020.

SCHWARTZ, Adriano. Crítica: Linguagem contida da “Granta” distingue seleção acima da média. Folha de São Paulo, 16 jul. 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1120548-critica-linguagem-contida-da-granta-distingue-selecao-acima-da-media.shtml>. Acesso em: 25 de set. de 2020.


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