AI,
PALAVRAS
Juliano
Barreto Rodrigues
Enquanto
dirigia para casa ontem, estive pensando no meu hábito e gosto pela
escrita, bem como no poder que as palavras têm, ainda que em um país
de pouca leitura. Para pesar sua força boa ou má, lembrei-me de
algumas situações ruins em que me colocaram (o que acontece de mau
geralmente é exemplo mais veemente, seja porque dói, ou porque
esquecemos com mais dificuldade). Duas foram colocações
profissionais: um relatório e uma negativa de cumprimento de ordem.
No
primeiro caso relatei minuciosamente um fato ocorrido, citando nomes
e condutas, diretrizes para a investigação do acontecido, etc.
Ocorreu que eu e o outro subscritor fomos chamados pelo chefe do
órgão em que o principal envolvido trabalhava, para explicar porque
seu nome – dele, o chefe – havia sido referido.
O
problema é que sua assessora direta era quem o havia citado, e o que
consignamos no relatório o impedia de atuar no caso a partir dali,
por ser considerado suspeito. Antes de tirar satisfações conosco
foi falar com nosso superior, que nos apoiou totalmente. No final das
contas, sobrou para sua funcionária, mas poderia ter sobrado para
nós. Ele quis “carteirar”, mas passou vergonha.
Da
outra vez, recebi uma ordem e, por considerá-la ilegal, recorri para
duas instâncias, que não acataram meu pedido de não cumprimento.
Para me obrigar, o chefe imediato emitiu ordem escrita. Respondi, na
via de recibo, que não iria cumpri-la. Resultado: me mandaram para
outro setor, deram fama de questionador e encrenqueiro, respondo
processo administrativo disciplinar por insubordinação, e ainda
perdi oportunidade de receber uma promoção.
Estando
certo ou errado, os dois casos representam situações nas quais
aquilo que pus no papel se voltou contra mim. A história é repleta
de coisas assim. O escrito é perene, permanece supostamente
inalterado como prova – a favor ou contra – seu autor. Por isso
tantos manifestos, críticas, notas de repúdio, são anônimos.
Dizer que não disse o que se falou é fácil, mas alegar que o que
está escrito não foi dito, já é bem mais difícil (O “ver para
crer”, de São Tomé, ilustra que, em matéria probatória, se dá
muito mais importância ao visto do que ao ouvido).
É
preciso considerar, ainda, que a maneira de escrever pode deixar
margem para interpretações diversas, que podem ser utilizadas para
acusar ou defender o autor. Utilizando outro exemplo pessoal, uma vez
redigii o seguinte miniconto: “Advogado
encasquetou Tarso, por apenas 20% e custas, ir à forra contra sua
ex. Perdeu. Condenado aos custos da rival, incutiu: de engodo em
engodo, doutores vão enchendo os bolsos - à custa dos bobos”. A
escritora Ana Mello, analisando o texto, me deu um feedback
que me deixou preocupado. Associou o personagem “Tarso” ao então
governador (e advogado) Tarso Genro, e disse que o final parecia uma
piada política, em que se poderia interpretar que ele enche os
bolsos à custa dos eleitores (a quem eu, supostamente, teria chamado
de bobos). Assustado, respondi: “Nossa, nem pensei que poderia
haver alguma conotação política. Interessante como, quem lê, às
vezes tem uma conclusão que vai bem além do que foi a intenção do
escritor. O nome Tarso foi aleatório”. Imagine no que isso daria
se eu fosse um funcionário do governo riograndense à época?
Minha
formação é em Direito, coisa que meus textos denunciam, já que
não consigo me livrar do hábito de citar referências para
fortalecer meus argumentos. Sei o valor das palavras e de quem as
disse. Um advogado acostumado a redigir contratos, por exemplo, sabe
o trabalho que a simples inserção da expressão “irrevogável e
irretratável” pode dar para uma das partes no caso de
arrependimento do negócio. O outro interessado pode, simplesmente,
obrigar o cumprimento, sem possibilidade de desistência. E são
apenas duas palavrinhas.
“Ai
palavras, ai palavras, que estranha potência, a vossa! […] Reis,
impérios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam…”. Cecília
Meireles antes de mim, assim como tantos outros antes de nós, já
questionaram tal poder. O fazer humano, individual ou coletivo, está
totalmente vinculado ao dizer, seja na forma escrita ou falada (ou
pensada,
já que comumente pensamos como se conversássemos conosco mesmos,
utilizando palavras). Dessa conclusão depreende-se que quase tudo,
se não tudo, que a humanidade já realizou, primeiro foi palavra.
“No princípio era o verbo [...]” (João 1:1). Eis o primeiro dos
poderes.
Em
uma pizzaria conversávamos sobre arte quando, citando o estilo de um
pintor que admiro mas do qual não lembrava o nome, fui perguntado
acerca de quem se tratava. Arrisquei: “Acho que se chama Romero
Jucá!”. Meu concunhado disse na hora: “Romero Jucá é
político”. Pior é que eu não me lembrei do sobrenome “Brito”
quando precisei. Fiquei de bobo e falastrão, mas a gafe não estava
eternizada... até agora.
Escrevendo,
há mais tempo para pensar e para checar as fontes, cuidar do texto –
e olha que ainda se erra muito. É preciso pensar mais no leitor,
destinatário da mensagem, e moderar a criação para adequá-la ao
seu contexto. Para quem gosta de escrever, e principalmente a quem o
faz profissionalmente, não faz mal relembrar: veja bem o que vai
fazer, suas palavras podem se voltar contra você.
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