Imagem de Henrique Resende. Disponível em: <http://focusfoto.com.br/o-amadorismo-e-uma-dadiva/> .
MANIFESTO EM DEFESA DO
AMADORISMO ARTÍSTICO
Juliano Barreto Rodrigues.
A natureza da gente é uma coisa estranha. Apesar de uma certa
individualidade, tendemos a ser iguais aos outros na maior parte do
tempo. Aliás, é para isso que somos educados, em linha de produção,
desde crianças. Somos feitos para seguir padrões, para sermos
convenientes, para não causar problemas. Tudo bem, entendo que isso
seja necessário para o convívio e a paz social, mas é inegável
que tolhe absurdo a criatividade, a autoconfiança e a ousadia.
Se essas três qualidades são desejáveis para a maioria das
atividades humanas (do sexo às profissões), são essenciais no
artista. Romper com os moldes, ir além dos materiais, suportes e
limites, parindo algo novo são, nesse métier, o feijão com
arroz. Na minha opinião, não há arte sem transgressão, seja da
forma, do espaço, do autor, ou do que for. Até por isso, não
entendo bem a arte encomendada ou como profissão.
Lendo um texto intitulado “Se Você é Autor”, de Paulo Tedesco1,
fiquei sabendo que Dante Alighieri foi
quem instituiu o conceito de autor na literatura ocidental, a quem
Eduardo Sterzi considera como aquele literato senhor da própria
“vontade de dizer”, contrariamente ao escritor, que produz
“submisso a vontades alheiras, a expectativas
e encomendas senhoriais”.
Trazendo a discussão para minha experiência pessoal, o que tenho
pregado, nas coisas que escrevo e faço, é justamente essa
preservação da voz própria, da manutenção da autonomia absoluta
da vontade, bem como o cultivo e fruição da arte pela arte. Até
por isso, o blog em que escrevo não tem meios de gerar qualquer tipo
de renda. Vou além: tenho dúvidas se deveria ou não publicar (ou
até querer publicar) livros com meus rabiscos. É que tenho medo de
ser dirigido, revisto, ou ficar egocentricamente dependente da
necessidade da autoafirmação de ter meu nome em livros.
O simples fato de escrever para alguém ler já é um limitador. O
controle do que se vai dizer é inevitável, afinal, há um diálogo,
com todas as suas regras e moderadores. Nesse sentido, os diários,
poemas escondidos, coisas escritas só para si mesmo, para mim têm
um valor artístico delicioso. São confidências íntimas,
desbordamentos puros da alma. Revelam, sem lapidação, o estilo e o
sentimento de quem escreve. Pena, para nós, que esses escritores de
alcova raramente se revelem. Imagine quantas maravilhas assim já
foram escritas e se dissolveram, com o tempo, no fundo de gavetas.
Esse negócio de “voz própria” tento preservar a todo o custo,
especialmente nos poemas. Desde que escrevi o primeiro, aos onze
anos, sempre cuidei de praticamente não ler poemas alheios para não
contaminar meu estilo com o dos outros. Alguns vão dizer que isso é
um absurdo, mas não importa. Sinto liberdade total na poesia. Dou-me
o direito de levar a lume só o que quero que os outros leiam, e
tenho desapego suficiente para aceitar que alguns vão gostar, outros
não – prazer e reflexão são meus únicos objetivos (e acredito
que de toda obra artística).
Tenho escrito coisas boas, outras nem tão boas assim e algumas
ruins. Há destas publicadas no blog. 'Por que não publica só o que
tem de melhor?' - você pode me indagar. Melhor para quem? Gosto é
subjetivo e, além disso, a ditadura da beleza convencional é um
saco. Publico o que sou: uma hora estou no ápice, noutra para baixo,
de repente superficial, daqui a pouco profundo, é basicamente isso.
Não é que não tenha respeito pelo leitor. Muito pelo contrário.
Quando publico estou escrevendo para ele, sem máscaras nem medo de
me expor. Além disso, tenho muita consideração comigo mesmo e com
a arte que professo. Se posto algo é porque acredito no seu valor
estético, ou intelectual, ou na sua capacidade de deleitar de alguma
forma (ou tudo isso junto).
Fico pasmo quando um artista me diz que
descobriu seu estilo e que tem que ser fiel a ele, não podendo mudar
aquele feitio, que faz com que sua obra seja reconhecida de pronto,
ainda que seu nome não esteja escrito nela. Aí, o criador vem antes
da criatura, esta que, no caso da arte, deveria ser a coisa mais
importante. Esse
artista relega para segundo plano todas as incontáveis
possibilidades criativas que teria, só porque quer ser conhecido. Na
minha forma de ver, corrompeu-se. Como disse o ator Marco Nanini, o
artista que se acha acabado [pronto, completo], realmente está
acabado.
Entendo que há fases, como do
pintor que passa um período obcecado pelos tons pastéis ou por
pintar naturezas mortas. Mas isso não o prende. Porém, quando se
bitola, fazendo só uma coisa porque teve sucesso com ela, se torna
comercial. Ouso dizer que deveria ser desclassificado como artista.
Vira artesão, repetidor do modelo que criou. Em sua defesa, pode
dizer que está explorando todas as possibilidades do veio que
descobriu, mas acredito mais na vaidade. Já ouvi dizer: 'para que
mexer no que está dando certo?'. Certo em que sentido? Em arte não
existe certo ou errado, há o que toca e o que não. Ainda assim, o
que toca Mariana não toca Jasmim. Aliás, até a obediência da arte
ao mainstream deve
ser rechaçada em favor da plena liberdade imaginativa.
O rótulo é o problema. Por isso não escrevo
só poemas,
ou contos, ou crônicas, escrevo o que dá na cabeça, pinto quadros,
ouço e toco músicas, me envolvo com qualquer coisa criativa que me
interesse (grande pecado em tempos de endeusamento da
especialização). Também por isso, tenho restrições à ideia de
viver de arte. Quero lançar livros somente se eu sentir que é o
meio para dizer o que desejo, e não por dinheiro ou pelo status
de ter meu nome numa capa. Gasto
tempo, muitas vezes dinheiro, para produzir minha arte. 'Qual o
retorno?' - podem perguntar. Não há um retorno capitalista,
socialista, ou qualquer outro “ista”. É pressuposto da arte sua
inutilidade prática. O que se espera dela é sensível e espiritual,
num sentido intelectual. Não me dá dinheiro, mas satisfações
outras, que fazem com que sempre compense.
Em tese, basta um diletantismo ativo, ou seja, que o artista se
dedique e produza por amor ao que faz. Defendo esse amadorismo (no
sentido que o senso comum empresta, equivocadamente, à palavra,
considerando-a antônimo de atividade profissional). Para mim, todo
aquele que pode ser denominado “artista” é um amador, não um
trabalhador ou empresário da arte.
Mas minha opinião seria muito excludente – e não me deixaria
contra-argumento no caso de algum dia a arte me enriquecer – se não
considerasse que há artistas de verdade que ganham muito dinheiro
com suas obras sem, no entanto, caírem no defeito da produção por
encomenda ou da produção de quase-cópias dos feitos que os
distinguiram. A questão está na liberdade e no sentido do que
geram. Se simplesmente o fazem porque amam e não conseguem deixar de
fazer, e o fariam mesmo que tivessem que dividir o tempo com uma
profissão propriamente dita; se criam o que querem, quando e como
querem, sem olhos para o mercado – mesmo que fiquem ricos com arte,
não a viverão como profissionais, no sentido comum da palavra.
Considerar a arte uma profissão é destituí-la de sua aura mágica,
acabando com o romantismo. Acho esquisito ouvir cantores dando
entrevista e dizendo “essa á minha música de trabalho...”.
Pergunto: “trabalho?”. É uma visão completamente voltada ao
mercado de consumo. O que se pretende é ganhar dinheiro. Tanto assim
que, várias bandas que começam tocando e compondo Rock and Roll por
afinidade e paixão, de repente passam a tocar pagode e, daí a
pouco, música sertaneja, seguindo qualquer rumo lucrativo. E a arte?
Morreu lá atrás, quando se vendeu a alma. Entendo que,
profissionalmente, se faz o necessário, às vezes o que se detesta
fazer, porque o contexto exige. Mas isso não combina com arte.
Então, defendo o amadorismo e afirmo: Arte é Arte, não profissão.
Palavra de artista!
1
disponível em
<http://www.oficinaliterariaonline.com.br/?cid=5246&wd=Reflex%F5es>
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