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Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 4 de março de 2020

REFLEXÕES ACERCA DA AUTORIA LITERÁRIA

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REFLEXÕES ACERCA DA AUTORIA LITERÁRIA





Juliano Barreto Rodrigues


 

O texto que ora se apresenta tem tom ensaístico e é pretensioso, por objetivar, em uma extensão mínima, abranger reflexões e conceitos complexos sobre autoria e criação literária, apresentados pelo professor Jamesson nas aulas de Escrita Criativa na Educação Básica, disciplina da Especialização em Estudos Literários e Ensino de Literatura, da UFG. O desafio aqui é ser simples na abordagem sem, no entanto, perder a profundidade teórico-conceitual.


Suponha que um deus menor (ou seria melhor dizer o deus de um pequeno mundo?) surja nos dias de hoje (é o autor ou autora) e tenha poderes para criar seu herói (protagonista) e várias personagens orbitando ao redor, umas mais importantes do que outras para os eventos, mas todas absolutamente essenciais para a completude (acabamento1) da trama e do arco da personagem principal. Essa analogia nos permitirá entender mais facilmente alguns conceitos bakhtinianos, bem como outros pertinentes à questão da autoria literária. 
 

O autor, aquele deus menor de que falamos, é onipotente e onisciente em relação à sua criação idealizada (não confundir com a figura do narrador), mas está inserido em um mundo já criado e em funcionamento, com regras definidas, portanto, para que sua criação seja recebida e aceita, ele tem que transitar dentro dos limites histórico-culturais e ideológicos preexistentes. Em primeiro lugar, definido o gênero literário do texto em criação, o autor estará vinculado a uma memória linguística compartilhada por uma comunidade em que se insere e ao “tesouro técnico” do gênero, ou seja, àquilo que o caracteriza, o conjunto do que já foi escrito naquele gênero (que também não é rígido, já que muitas transgressões também vão sendo mais ou menos aceitas e o gênero vai se moldando historicamente, sempre). Isso harmoniza perfeitamente com a concepção bakhtiniana do estético, como resultado "de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica2 do autor, que está fundada no social e no histórico, nas relações sociais de que participa o autor" (BRAITH, 2005, pág. 108).


Um nadador pode fazer o que quiser dentro dos limites do meio aquático que escolher nadar. Se estiver boiando, não estará nadando. Para nadar precisa mover-se e se deslocar em alguma direção. Fazendo um paralelo, alguém alfabetizado também pode fazer o que quiser com as letras e palavras que conheça (primeiro limite). Se juntar letras a esmo não estará escrevendo. Para escrever, tem que redigir palavras que façam sentido e que, juntas, indiquem alguma informação. Se convencionou chamar “nadador profissional” a quem conheça e tenha proficiência em pelo menos um estilo de nado, respeite suas regras históricas internas (tesouro técnico) e, ao mesmo tempo, que tente transgredir seus limites para, nos detalhes, alcançar um diferencial que o ponha à frente do ponto que seus pares já alcançaram. Um recorde é um original notável, algo que define um novo paradigma. Sua peculiaridade, os passos para o avanço, a irrupção da novidade dentro das regras, passam a ser incorporados ao tesouro técnico de um gênero de nado.


Tudo o que foi dito no parágrafo anterior é cabível ao autor literário. Sua liberdade criativa está adstrita às bordas do gênero escolhido, ao tesouro técnico desse gênero, que representa valores literários vigentes, os quais, por sua vez, são respostas ao contexto dos valores de mundo. Mas, aqui também, através da concreção (em palavras escritas) do seu excedente de visão (Cf. segundo parêntesis da nota nº 2 e, também, a nota nº 5), há a tendência, mais ou menos natural, de transgredir os limites do gênero, ampliando-o, fazendo-o evoluir.


Um exemplo mais extremo são as obras experimentais, que, de modo semelhante ao que ocorre nos desfiles de alta-costura, inovam superlativamente para ultrapassar um statu quo ante e estabelecer uma nova tendência a ser seguida. São obras de ruptura, ou antes de distensão dos limites, feitas como referência para outros autores, não para o consumidor médio, e podem dar muito certo ou muito errado. Mas, de toda forma, normalmente não agradam o público mais amplo. As obras que decorrem delas, ou são por elas influenciadas, são aceitas após passarem por um certo filtro cultural moderador, suavizador dos excessos de “arte conceitual”, para atender aos critérios de uso3
 

Um dos maiores exemplos literários do que estamos falando é o livro Ulisses, de James Joyce. Livro escrito para escritores, experimental, foi um divisor de águas para o gênero romance. Estabeleceu um marco indicativo do que era o romance antes e do que seria depois de sua publicação, tanto que muitos contemporâneos à publicação chegaram a anunciar, à época, “o fim do romance”. E, pode-se dizer, é um livro que quase não conta com qualquer empatia da parte dos leitores não-escritores, leitores de fruição de efeito, nem de quem não trabalhe com literatura ou, ao menos, a pesquise (críticos literários, teóricos, acadêmicos etc.). Ulisses transgrediu o gênero mas não o destruiu nem fugiu dele, deu-lhe novos rumos.


Voltemos a falar do autor. Ele é, não apenas um elemento constituinte/criador mas, talvez mais ainda, um organizador, ou reorganizador, da memória de passado (histórica, portanto) e de futuro (projeção), que são complementares mas não completas, porque toda vez que se enuncia, “resgatam-se os valores já estabelecidos, mas ao invocar os valores ou significações, concomitantemente, reinventa-se o sentido, pois o indivíduo contribui com o tom, a expressão e o desejo do seu projeto discursivo” (GEGe/UFSCar, 2019, pág. ?).


A partir do momento que considera a obra acabada e a entrega ao leitor, o autor sai de cena4 ou, pelo menos, deveria. “Rei morto, rei posto”, o universo imaginário da obra agora pertence a novos deuses, os leitores, que extrapolam as intenções do autor e ressignificam tudo com suas próprias capacidades e visões de mundo. Nesse sentido é que dissemos que a obra só está acabada para o autor.


A liberdade criativa do autor, sua inspiração (que nasce da influência externa no seu interior psíquico), são limitadas, em certa medida, pelas convenções do tesouro técnico do gênero escolhido, da forma, do momento histórico em que está inserido etc. A memória de gênero advém dos recursos historicamente utilizados para a sua escrita. Essa memória do gênero transige para a autoria (a alimenta).


O posicionamento axiológico do autor não o impede de extrapolar de si5 para, por meio da capacidade de representação da arte, viver um excedente axiológico através da personagem criada. É possível ser muitos, sentir como muitos, pensar como tantos, dentro da representação artística, ainda que, para alcançar a verossimilhança, o autor tenha que ter bebido da anima mundi, através de muita vivência, ou observação, ou reflexão, ou, mais frequentemente, de tudo isso junto.


Partindo para uma outra reflexão, qual o papel da crítica literária no processo de evolução dos gêneros? Responder a isso ajudará a entender mais facilmente algumas forças a que a autoria também está exposta.


A crítica segue paralelamente à produção literária, da qual depende, e funciona como um sistema de freios e contrapesos (mais explícito do que se pode ver no processo criativo de um autor literário durante sua criação), puxando para a adequação aos limites convencionais do gênero ou, então, por outro lado, em tendo ciência de que algo legitimamente dá um passo além no estado da arte, convalidando-o, criando e emprestando bases teóricas a fundamentar e fortalecer o novo, por assim dizer, movimento. 
 

A fortuna crítica de um autor paradigmático lança luzes sobre o que fez de diferente, como alcançou determinados efeitos e resultados, como estendeu os limites do gênero. Esclarece a quem vem em seguida.


A crítica bem-feita é um “olhar de lupa” sobre aquilo que os artistas fazem, muitas vezes, por intuição6. É a racionalização do impulso, a explicação do porquê de algo ter dado certo ou errado.


Fica claro, a partir do dito sobre a crítica, que há, tanto para os críticos quanto para os autores, forças centrípetas (puxando para a unificação e centralização das ideologias verbais) e centrífugas (que tendem para a transformações causadas pela dinâmica da vida real) em tensão, e que a estilística, a linguística, a teoria literária, a filosofia da linguagem, a própria crítica, cedem mais para um ou outro lado, sempre dentro do contexto dos valores de determinado tempo e lugar. O autor também vive isso de forma evidente, mas o crítico literário é, de certa forma, o guardião da moderação ou o legitimador da mudança. O autor literário, como artista, muitas vezes está tão envolvido com seu existir intelectivo-sensível e com a própria obra, tão implicado com sua volição emotiva (escolha afetiva) que, às vezes, cria coisas que só dariam certo em outro contexto, em outro ambiente, em outra época (exemplos: os livros que um dia foram proibidos ou desprezados e que hoje fazem muito sucesso de público e/ou de crítica).



NOTAS

1 Artisticamente, um autor reorganiza e reconstitui os elementos sensíveis e os abstratos para compor uma unidade supostamente original. Ele se apropria de uma voz social que determina, axiologicamente, o todo estético, e procura, situando-se do lado de fora da criação (Cf. “excedente de visão”, no corpo da nota de rodapé nº 3), completar o herói, as personagens – naqueles elementos em que eles não podem se completar por si só, por não terem consciência de como os outros os veem. A possibilidade desse acabamento tem a ver com a pretensa onipotência do deus menor de que falamos, o autor (embora nenhuma personagem ou obra seja totalmente acabada, já que sempre dependem de outros “deuses menores” com importância equivalente à do autor: os leitores)

2 Exotopia é a extra-localização do autor em relação ao outro, o que justifica expressar, para esse outro, o olhar único do autor sobre a vida (responder), seu ponto de vista diferente, seu “excedente de visão” (que é a possibilidade de um sujeito ver mais de outro sujeito do que este próprio pode ver, justamente por ser externo a ele, estar numa posição exotópica). Também pressupõe assumir uma responsabilidade sobre o que inova e transforma, ou tenta transformar, na visão do outro. Ao mesmo tempo que o autor é responsável pelo que faz e diz, o que faz e diz é, de certa forma, resposta aos elementos presentes em sua vida.

3 “Uso” é uma palavra que tem que ser utilizada aqui com comedimento, já que há controvérsia teórica acerca da utilidade da arte. Não se pretende adentrar nessa seara aqui. Entenda “uso”, como acesso para fruição.

4 A “morte do autor”, outra ideia polêmica. Quando falamos em sair de cena, não estamos falando que o autor não deve, por exemplo, dar entrevistas após a publicação para promover um livro, mas sim que ele deve se eximir de, posteriormente à entrega da obra, tentar controlar a interpretação dos leitores. O livro é um “filho criado para o mundo”, tem vida própria, o autor precisa desapegar, deixar que os leitores completem o livro.

5 Atividade estética como excedente de visão. O autor é capaz, por exemplo, de escrever um poema de desilusão sem estar desiludido. É um Eu sendo Outro, uma experiência vicária. Abdica-se do próprio ponto de vista. O nó autoral consiste na possibilidade de lidar com a diversidade de pontos de vista de diferentes personagens.

6 Ato realizado sem reflexão sobre o próprio ato. É impulsiva.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS



BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, 264p.

GEGe/UFSCar – Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso.

Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. 112p. Excerto disponível em: <https://linguagenseminteracao.blogspot.com/2012/11/glossario-bakhtin.html>. Acessado em 10 set. 2019.