O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Samba-lamento de vagalhão

"Mar Revolto" (Héctor Molina, 2007), óleo sobre tela



 

SAMBA-LAMENTO DE VAGALHÃO


Juliano Barreto Rodrigues


O veleiro de vela acesa no mar

Faz, marujo, um par de vela a velar

Pescador que saiu pr’oceano a lançar

E que nun..., nunca mais vai voltar

 

A sereia fisgou, cantando ao luar

Navegante que fez do mar o seu lar

Que na vaga largou do timão

E encantado perdeu pra onda a razão

 

Enterrado na água turva um irmão

Pescantins choram seus próprios destinos

Lembram que com o mar não se brinca

Qu’ele é bicho de mil desatinos

 

Vira-mundo, que faz o vento virar

Gira a roda, toca o barc’a balançar

Pescador encontrou seu destino

Lá no fundo, lá no fundo, do mar

 

“Ciranda, cirandinha,

Vamos todos cirandar

Vamos dar a meia volta

Volta e meia vamos dar”

 

Mund’a giraaar...!




domingo, 21 de novembro de 2021

ELEMENTOS SURREALISTAS EM “MACUNAÍMA”, DE MÁRIO DE ANDRADE




 

ELEMENTOS SURREALISTAS EM "MACUNAÍMA", DE MÁRIO DE ANDRADE


Juliano Barreto Rodrigues


Macunaíma é um Trickster, uma figura mitológica que prega peças ou, fora isso, desobedece regras e normas de comportamento. É o embusteiro, trapaceiro, pregador de peças; É o Iktomi, dos Lacota; ou o Dokkaebi, da Coréia do Sul; o ah-zuh-bahn da Nova Inglaterra; algumas representações do Exú africano; ou seja, um ser arquetípico, o “malandro” em várias tradições culturais.

É o anti-herói, que, como diz o antropólogo Renato da Silva Queiroz, na página 94 do seu artigo O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster, é um ser cuja trajetória “é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Como ser que quebra as regras dos deuses ou da natureza, normalmente com um “truque” (daí o termo “trikster”), é um personagem que se presta perfeitamente aos aspectos oníricos e de livre imaginação do surrealismo. É um ser que pode se transformar em outro ou em qualquer coisa, transgredir regras de tempo, espaço, moralidade, pode ser experto e tolo, e quase sempre está ligado às artimanhas da linguagem. É o próprio poder da imaginação personificada.

Em Macunaíma, de Mário de Andrade, há aquela aparente valorização do improviso e da espontaneidade no manejo da linguagem, que caracterizou o dadaísmo. E, no caso específico, percebe-se mais do que traços daquilo que Santos e Souza dizem, no artigo As vanguardas européias e o modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que:

Os surrealistas exploraram as relações da linguagem e da arte com o inconsciente, os sonhos e a técnica da escritura automática, que consiste em escrever sem pensar, sob o fluxo de um impulso de extrema espontaneidade e entrega interior ao processo da ligação entre linguagem e forças inconscientes. (SANTOS; SOUZA, 2009, p. 793).

Não acho que Macunaíma chegue ao ponto de ter sido escrito utilizando uma escrita automática, porque tem estrutura, um enredo claro, que limita um pouco a liberdade total, ou quase total, surrealista. Mas o personagem Macunaíma se transforma, cresce, decresce, vira planta, passeia, num átimo, de um ponto a outro do Brasil, faz coisas que se enquadram no “maravilhoso”, que André Breton tanto exaltou no Manifesto Surrealista de 1924.

Nos curtas Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Destino, de Salvador Dali e Walt Disney,  a impressão de falta de controle lógico, de plasticidade dos sonhos, fica bem evidente. Embora exista uma sucessão de acontecimentos, a surpresas das mudanças inesperadas fazem reconhecer que o universo de que se trata ali está longe da realidade, só toca nela. E é muito interessante que a arte possa representar isso.

Macunaíma vai na mesma esteira, embora aparentemente seja um pouco mais estruturado. Mas, como nos vídeos citados, ele se transforma, uma hora está em um lugar, daí a pouco está em outro, assumindo outra forma, encontra seres mitológicos etc.  A vantagem literária, em relação aos vídeos, é que as intenções do personagem principal são mais claras, a narrativa nos aproxima mais dele, não ficamos tão ligados somente a “cenas” fluidas e mutantes, como no caso do curta “Destino”, nem somente ao absurdo sensível, no caso de “Um cão andaluz”.

 

REFERÊNCIAS

QUEIROZ, Renato da Silva (1991). O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP. 3 (1-2). p. 93-107.

SANTOS, Paula Cristina Guidelli do; SOUZA, Adalberto de Oliveira. As vanguardas européias e o modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 789-798. 


Um perro andaluz Luis Buñuel 1929

https://youtu.be/vNJwPrAxkB4

 

Salvador Dali y Walt Disney – Destino

https://youtu.be/w38cerphic4

 


 

Análise do poema "Poética", de Manuel Bandeira

 


Clique no link de podcast abaixo;


Análise do poema "Poética", de Manuel Bandeira




Um exercício de escrita

 O exercício consistia em, a partir do início da segunda frase ("Mais perto, Mariana"...) do texto abaixo, construir um parágrafo inteiro. O texto de base era o seguinte:


O parágrafo que criei, tomando as orientações por base, foi este (que me parece um miniconto):


DESMEDIDA


Juliano Barreto Rodrigues


A casa da estância, vista da porteira, parece menor do que é. Mais de perto, Mariana se  intimida com sua imponência úmida. Sobe, devagarinho, as escadas de pedras gastas do alpendre, pega na maçaneta azinhavrada do pórtico enorme, gira e põe só um olho para dentro. Lagartixa-se para o interior, achatada, gélida de medo. O cheiro de mofo, o pretume subindo as paredes, a luzinha lúgubre escorrendo das três telhas quebradas. É uma casa morta, apodrecendo sozinha. Nem ratos; nem fantasmas sequer. Dois gobelinos manchados despencam das paredes daquele salão de estar. Ali havia um piano, se lembra. Um candelabro luminoso dourava todo o espaço. O solar era o orgulho do casal Andrada. Pena Mariana ter ido embora fugida: o pai morreu de saudade, a mãe de desgosto. A estância? De ausência! Por que Mariana voltou agora? Para constatar que sua alma virou espelho da casa? 



Chapéu-tento


 

CHAPÉU-TENTO


Juliano Barreto Rodrigues


Sonhei com um tento de jogo, nas mãos de um moleque faceiro. Mãe preta ralhava com ele, mas ele fazia um piseiro. Explicava, disfarçando uma risota, que da arte não tinha culpa. 

-- Quem mandou, a cada gente, ter dois olhos nuã só cuca? O que um olho vê, às vezes outro não vê; e o olho que engana, com o outro não se desculpa.

Disse que ia por um caminho... e na encruzilhada parou. Brincava seu cachimbinho, quando a parelha de burros passou: 

-- Eram dois amigos: um passou de lá outro de cá. Que tenho eu, senhora, da amizade disandá?

-- Te conheço arrelia, alguma você aprontou. Tá aí fazendo figa, galhofando da sua amiga.

-- Ouvi eles brigarem, foi por causa do meu chapéu, que só por ter duas cores, provocou todo escarcéu. Tenho culpa não, nhá-nhá. Que quando um passou à direita, o outro passou do lado de lá. Cada um viu uma cor, e deram de se estranhar. Segui os dois bocós e vi o que assucedeu: Um falou do meu chapéu preto, o outro disse que era vermelho. Este acusou aquele de bêbado, virou o valha-me Deus.

-- E você não socorreu?

-- Mas se os dois tavam mentindo? Meu chapéu nem era preto, nem vermelho era o chapéu meu. Era feito este tentinho aqui: Cada lado de uma cor. Lindo, bicudo e bicolor.

-- Tu é um azougue menino, vive de molecagem. Passe pra dentro agora, e deixe de vadiagem. E dê-me aqui o meu tento, que inspirou sua cabeça de vento.



Lição de tento


 

LIÇÃO DE TENTO


Juliano Barreto Rodrigues


A tia velha, benzedeira de descendência nagô, sentada naquela cadeirona de pau, ia apontando as coisas penduradas na parede, calada de azul clarinho. Tamborilava o chão com os chinelinhos e cruzava as mãos de unhas grandes, esmaltadas de lilás. Casa de feiticeira tem perfume de defumador misturado com cheiro de mato e vinho. Perguntei, curioso que só, o que era aquele colar de ‘tento’ perto da porta. Ela riu, maliciosa, acho que alegre com minha esperteza, e disse: “‘Tento’ é coisa de jogador, de blefeiro, de gente alegre que gosta de brincar, mas com quem é bom ter cuidado, pra não ser passado pra trás”. Eu então indaguei como ela iria jogar com os ‘tentos’ se eles estavam amarrados. Aí ela deu uma gargalhada, daquelas dos olhos ficarem apertadinhos por trás dos óculos enormes, e me deu uma lição da ciência ancestral africana: “Aquilo é um colar de Exú, menino. Sabe por que é preto e vermelho? Pois vou lhe contar. Exú gostava de aprontar das suas, então botou um gorro que era uma metade preta e a outra vermelha e saiu para a estrada. Passou à direita de um homem e o cumprimentou. Passou à esquerda de outro, que vinha um pouco atrás, e cumprimentou também. Daí, seguiu os dois, escondido. Viu eles se desentenderem, um dizendo que o menino que tinham visto usava um gorro preto, o outro jurando que era vermelho. A briga que tiveram divertiu Exú. Pois é: o ‘tento’, bem divididinho em preto e vermelho, representa essa história antiga e o próprio Exú; ensina que a gente não sabe tudo das coisas, que é preciso respeitar a certeza dos outros e que, para arrumar uma confusão, basta ser turrão e de um caprichozinho da sorte”. 

Fiquei de olhos arregalados, encabulado sobre como, de uma sementinha, Tia Luzia conseguia tirar uma lição daquelas.



Meus olhos da minha mãe


 

MEUS OLHOS DA MINHA MÃE


Juliano Barreto Rodrigues


A memória da gente é interessante: Há, na minha lembrança, uma foto de minha mãe sorrindo, sentada na mureta de uma cozinha de fazenda, com as pernas cruzadas, uma gamela de madeira sobre os joelhos. O curioso é que, quando procurei tal fotografia, descobri que não se tratava de uma, mas de duas fotos, que meu cérebro amalgamou, criando uma imagem só. Os únicos pontos comuns, entre ambas, é que a modelo retratada foi minha mãe e que ela estava rindo, lindamente. Em uma cena, ela estava sentada em uma mureta, pernas cruzadas à frente, uma floresta e um céu de fundo. Tinha uma bolsa azul no colo. No outro registro, acredito que feito posteriormente, vê-se minha mãe de pé em uma cozinha que parece de fazenda, com uma gamela (que existe até hoje) sobre um tanque. Um barrigão de grávida insinuando minha vinda ao mundo. Por que se misturaram as representações na minha cabeça? Que exercício de síntese foi esse, que criou, para mim, uma imagem totalmente nova, a partir de duas? Não sei. Mas acredito que deva isso aos genes herdados da minha madre.


Dona de uma imaginação prodigiosa, minha mãe sempre foi capaz de integrar as lacunas de qualquer história, de forma incrível. O que ela imagina, vira certeza, que ela conta para a gente com uma riqueza de detalhes que faz com que o dito seja exatamente como aconteceu (mesmo que não tenha sido, tim-tim por tim-tim, daquele jeito). Tem uma cabeça de artista... E acho que criou, também a minha, para ser assim, para ir além do real, ficcionalizar, baseado nas melhores emoções. De modo que, neste caso específico, se juntei, mesmo involuntariamente, as duas imagens, é porque aquele sorriso me causou o mesmo efeito, impressionante, em ambas. Daí te pergunto: o que fazer melhor, do que, amplificar a sensação que senti, unificando as duas fotos em uma? 


47 anos depois daquelas fotografias, eu já com ‘ruas’ nos cantos dos olhos, começando a parecer com as da minha mãe de agora, percebo um milagre que ela me legou: Ela tem o poder de  recriar o mundo com sua imaginação e, pelo jeito, me fez assim também. Sou todo gratidão. 



Protocolos de leitura de dois capítulos de livros


 

ESCREVENDO COM ALMA : papel, caneta e a mente do iniciante

(Protocolo de leitura)

 

“Escrever significa lidar com toda a sua vida”

(GOLDBERG, p. 13).

 

Da leitura de “Escrevendo com Alma”, de Natalie Goldberg, que trata do desenvolvimento da escrita autoral, se depreende que a escrita criativa é um processo individual. A própria autora disse que não aprendeu a escrever “com alma” na escola pública. Lembrou que escrevia claramente, pontuava direito, mas produzia textos insossos. Depois da faculdade, fazendo receitas para um restaurante criado com amigos, foi que passou a confiar na própria cabeça. É muitíssimo interessante o lampejo que ela teve quando leu um poema sobre como cozinhar berinjelas, “Então quer dizer que é possível escrever sobre um assunto desses?” Essa experiência dialoga diretamente com minha própria vivência com a escrita. Já, inclusive, falei várias vezes sobre isso: com onze anos achei uma caixa com poemas feitos por minha mãe e, estupefato, pensei “Ué, quer dizer que dá para escrever desse jeito, sobre o que a gente sente por dentro? Se minha mãe pôde, também posso!”. Lendo e redigindo, também descobri que é possível escrever sobre toda e qualquer coisa, tudo depende do “como”. As boas crônicas são um ótimo exemplo de que o trivial pode ser contado com alma e repercutir por muito tempo na impressão do leitor.

É mais fácil, e há mais chance do resultado ser verossímil, quando se escreve sobre o que se conhece. Natalie fala de amor, de fazer o que se gosta, porque isso dá segurança no que se faz. Na página 12 ela resume o cerne do seu método de ensino nas oficinas de escrita, dizendo que passa informações essenciais para que os alunos acreditem no seu próprio intelecto e ganhem confiança. Concordo plenamente que isso é o mais importante. Na pré-adolescência tive aulas de desenho e pintura com um professor que orientava cada um da turma, depois ia passando de mesa em mesa fazendo correções mínimas (mas essenciais) em cada etapa. De forma que, no final, depois dele ter passado umas tantas vezes e “dado um talento” discreto em cada fase, o resultado sempre era incrível, a gente saia achando que tinha mesmo feito tudo aquilo. Mostrar nossas artes para a família e os amigos nos estimulava ainda mais. Então, mais do que ensinar a desenhar e pintar, ele nos fazia acreditar que podíamos, não deixava que achássemos que era difícil. Não conheço ninguém que, com ele, não tenha aprendido a desenhar. Tudo uma questão de autoestima e confiança em si (isso sim, o que ele mais ensinou). Com a escrita funciona do mesmo jeito.

Em certa ocasião, fiz um curso de escrita criativa com um sujeito que a grande maioria da turma, depois de umas duas aulas, considerava um charlatão. Pois, para mim, foi ótimo: eu nunca tinha escrito um conto na vida. Mas ele disse que podia, encomendou a tarefa, e pronto, daí para a frente passei a escrever contos. Só bastou alguém lançar o desafio e estimular, acreditando que daria certo.

Natalie apresenta o livro como estimulador da escrita para a pessoa compreender a si mesma e se tornar mais equilibrada. É engraçado que, da mesma forma que ela diz que vários métodos – alguns até aparentemente contraditórios – podem funcionar, ela também começa a desmistificar a escrita mistificando: falando da importância da caneta certa, do caderno adequado, da bolsa com o tamanho certo para levar o caderno etc. Mas esse é só um jeito dela dizer que tudo importa e influencia (detalhes), embora quase nada realmente importe, além de ferramenta que escreva e de suporte para o escrito. O essencial mesmo é o envolvimento da pessoa com sua criação.

Outra delícia, nesse primeiro capítulo, é que a autora nos lembra da máquina de datilografia, coisa que a geração pós anos 80 nem sabe como funciona. Comentando assim, em passant, é preciso destacar que esse início do livro “Escrevendo com Alma” é cativante, gera empatia, porque a autora coteja suas experiências pessoais; é fluido, com uma linguagem exata (clara e direta), que não apresenta nenhuma dificuldade para o entendimento. Até aqui, adorei o texto e a abordagem - não mudaria nenhuma vírgula. A introdução e o primeiro capítulo cumprem bem sua função de nos engajar, fazer com que queiramos ler o livro todo.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

GOLDBERG, Natalie. Escrevendo com a alma : liberte o escritor que há em você / Natalie Goldberg ; tradução Camila Lopes Campolino; revisão da tradução Silvana Vieira. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008. pp. 11 - 16.

 

***

 

 

É possível ensinar a produzir textos! Os objetivos didáticos e a questão da progressão escolar no ensino da escrita. Capítulo 3 do livro Produção de Textos na Escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental.

(Protocolo de Leitura)

 

“[...] escrever um texto envolve uma ação verbal, capaz de provocar efeitos em situações, eventos e pessoas no mundo. (BRANDÃO; LEAL. 2007, pp. 49, 50).

 

O título, “É possível ensinar a produzir textos!” é enfático, uma garantia. Trata-se de um capítulo escrito por e para professores, tendo, portanto, uma linguagem condizente: acadêmica mas, neste caso específico, nem tão formal.

Na página 46 é defendido o argumento, já sedimentado, de que leitura e produção de textos são eixos indissociáveis. Diz ainda que os eixos de análise linguística, oralidade e produção de textos também o são. Fiquei meio cético sobre como a análise linguística pode ser considerada assim, mas a explicação para isso está, conforme as autoras, lá no capítulo 8. Na verdade, chama mais a atenção a afirmativa seguinte, com a qual concordo, de que os textos orais e os escritos, embora requeiram habilidades distintas, podem, muitas vezes, ter essas habilidades transferidas entre si.

Não sei se parto dessa ideia por uma esperança pessoal, já que escrevo com muito maior desenvoltura do que falo. É que gostaria de compartilhar, um tanto da minha fluência escrita, para a fluência verbal. Embora tenha dito acreditar ser isso possível, não considero que se dê de forma automática nem, muito menos, de forma pareada: a gente tem mais habilidades para umas coisas do que para outras e, mesmo trabalhando estas (que se quer melhorar), ainda assim aquelas primeiras parecem se desenvolver de forma natural, sem esforço. No capítulo 3, as autoras defendem principalmente a influência da modalidade oral para o desenvolvimento da escrita.

 

O principal problema do iniciante é, conforme indica o capítulo, o medo de errar. Isso porque quem escreve cria representações sobre as expectativas do que seus leitores irão achar dos seus textos, e isso pode ser muito limitante. Então, é preciso aprender a lidar com essas representações, para perder o medo e alcançar os efeitos pretendidos.

Um dos pontos importantes, citado no capítulo, é que os alunos acham muito distantes os textos escritos, daquilo que produzem oralmente. Se ocorre a desvalorização do modo de falar, ocorre uma desconfiança com a própria capacidade de comunicação (Cf. página 48), seja escrita ou falada. Para que não se exacerbe essa sensação de distanciamento, é preciso que os professores tratem frontalmente a questão das variedades linguísticas, do que são formas de prestígio, do que se adequa para umas e outras situações, ensinando que, embora não comprometam (stricto sensu) a comunicação, têm diferentes efeitos nas diferentes ocasiões, e que os alunos podem dominar isso. É o que as autoras ressaltam como “[...] atitudes diante da linguagem e a valorização dos diferentes espaços sociais de interlocução” (BRANDÃO; LEAL. 2007, p. 49), para os alunos terem proficiência textual.

Uma questão fundamental é o desenvolvimento da autoconfiança e da ousadia para criar textos (Cf. BRANDÃO; LEAL. 2007, p. 55). Como limitador mínimo ou, antes, como direcionador, as autoras alertam que quem vai escrever deve pensar na finalidade daquilo que está produzindo e no (a) destinatário (a). Daí, deve planejar estratégias discursivas para envolver seu leitor (a) e alcançar os efeitos pretendidos. Destaco, também, o que disseram acerca da revisão em processo (revisão que se faz o tempo todo, enquanto se escreve mesmo) e da necessidade de ir replanejando enquanto se produz (fugindo daquela ideia de planejamento único, antes de começar a escrever). Isso me fez ver que são coisas que faço intuitivamente, porque a prática contínua mostra que é assim que o texto se constrói.

Considerar os conhecimentos prévios dos alunos e suas variedades de fala eleva sua autoestima e a consciência de que a escrita é mais uma maneira de participarem socialmente. Na prática, escrever se aprende escrevendo muito e refletindo sobre o que se redige, bem como sobre outros textos escritos (Cf. BRANDÃO; LEAL. 2007, pp. 49, 50).

Achei interessantes os blocos de gêneros textuais, de Dolz e Scheneuwly (1996), sugeridos como meio de aprendizagem em espiral. Cada gênero, de um grupo afim, é trabalhado em diferentes momentos e ajuda a desenvolver a escrita de outra modalidade do mesmo grupo; no outro ano, outro bloco é trabalhado, o que não quer dizer que aquele visto no ano anterior terá sido definitivamente deixado para trás - pelo contrário, a ideia é que de tempos em tempos seja revisitado e desenvolvido em novos pontos. Além da familiaridade com as peculiaridades da escrita em cada gênero, também há a oportunidade de aprofundar conhecimentos de gramática, tão importantes para a evolução da escrita pessoal.

 

Gostei do capítulo, é muito relevante, faz pensar e acrescenta o conhecimento. Redunda um pouco, teoriza rapidamente, é de fácil leitura, mas poderia ser mais ilustrado com casos concretos, como os das páginas 60 e 61. Isso tornaria a leitura mais agradável e até mais eficiente.

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

 

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; LEAL, Telma Ferraz (Orgs.) Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Também os mortos sonham

 


Também os mortos sonham

Juliano Barreto Rodrigues

Também sonham, os mortos.
Naqueles raros momentos fátuos
De lampejos fantasmáticos
Em que deliram existência.
Mas são triscos de memória,
Raspos milagrários,
Algo perdido-achado no tempo.
Um mínimo portal entre o tic e o tac.
Uma fagulha do estou
Para, daqui a pouco, não estou mais.
Um raiozinho de consciência,
Milésimo de reexistência,
Arrepio!
[os vivos sentem].




Poética prole independente

 



Poética prole independente


Juliano Barreto Rodrigues


Me[a]us poemas não dormem.

Ficam com as marcas de nascença,

As cicatrizes da pouca revisão.


São de carne e osso.


Em meio à prole infinda,

Uns aspiram grandeza;

Outros, olhar de gentileza;

Os mais tímidos ou realistas,

O escuro da gaveta.

Mas são todos reais:

Vão à luz sem maquiagem,

Sem enfeite e roupa cara,

Sem plástica, nem bengala.

São poemas vivos,

Daqueles com altos e baixos,

Vírgulas trocadas,

Humor variante

E conta rala.

Há estrelas?

Há!

Mas são exceções,

Na multidão rasteira.





quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Tindolaido


É disso que estou falando, quando me refiro à liberdade para escrever poesia. Este é um poema meu, que adoro:






FABULANTE CONTO-CANTANTE

 


FABULANTE CONTO-CANTANTE

Juliano Barreto Rodrigues

Conto casos de amor,

Conto réis,

Conto favor.

E mais casos de amor.

E de desamor.

Conto sustos, desvarios, perdões.

Mil-réis e tostões.

Coisas de fadas, de Macondo e de anões.

E contos quebrados, sem eira nem beira,

Todos com começo, mas muitos sem fim.

Sou “boca de chaleira”:

Os contos, simplesmente, nascem de mim.

 

Dê-me um ponto, que eu te dou um conto.

Dou, sim.




FORTUNA
                                                                                               
Juliano Barreto Rodrigues
Minha sorte,
Perspicaz curiosidade.
Que tantos querem ter,
Mas há tão poucos que a achem.
De onde vem?
Sei lá.
Só sei que,
Ainda que nunca a tenha procurado,
Ela sempre esteve cá.
Sou forte por ela.
Que, como já dizia Nelson Rodrigues,
Com sorte se vai a qualquer lugar,
Mas sem, 
Nem a rua se alcança atravessar.


 

VIDA VALE - poema de Juliano Barreto Rodrigues


 VIDA VALE

                                                                                                          Juliano Barreto Rodrigues


Tédio cai do céu em chuva.
Tenho pouco mais de duas décadas,
Mas a apatia me cai como uma luva.
Ai de ti, tempo perdido.
Ai de mim que nem o vivo.
A 200 Km daqui,
Um vovô beirando os cem,
Sofre o que tenho de sobra: 
O tempo que já não tem.



Entregue


A professora Juliana Dias, do grupo GECRIA (UnB) pediu que criássemos dois binômios fantásticos a partir de dois substantivos e dois adjetivos colhidos, aleatoriamente, das páginas de algum livro. Os que encontrei foram: 

Riso marginal;
Copo aventureiro;

Utilizando-os, a proposta de escrita consistiu em escrever 20 linhas sobre o tema “amor”, mas sem usar qualquer palavra do campo lexical “amor”. Deu nisto:


ENTREGUE

Juliano Barreto Rodrigues

Vi-te, tonto pelo bumbo do meu coração surpreso, sentada a uns dez metros, estibordo da mesa de boteco que eu navegava. O happy hour já estava virando night-alta-hour e, eu, já me afogando em álcool. Mas, no meio das vozes gritantes, que competiam com a música de empolgar relutantes à bebida, topei com seu riso marginal, que apagou todo o resto, por um átimo. Só vi você, e nitidamente. Quase ouvi o som do seu suspiro, quase escutei seu pensamento.

Miração, alumbramento, a taquicardia adrenalínica que me deu escureceu a vista e trouxe um enjôo. Eu havia sido atravessado por seu anzol gigante. De capitão de barco pesqueiro (que a embriaguez me fez achar que era, confiante ali naquele bar), me fiz peixe pescado, miúdo. Ouvi a voz dos que dividiam mesa e excessos comigo, mas não entendi uma palavra. Eu era seu, e você nem sabia.

Aprontei coragem, mirei rumo e calculei passos. Saí flutuando no seu rastro, com meu copo aventureiro numa mão e um cigarro troncho, pendurado à meia boca. Perdoei-me pelos esbarrões do meu percurso e parei na sua frente. Eu disse algo, você disse “oi?”. Puxei cadeira e sentei, abanando um cumprimento para sua amiga. Nos meus olhos você leu o meu “sou seu” e, rindo esnobe, deu linha para brincar com seu peixinho agonizante. Meu coração ali na mesa, servido com chopp gelado e sei-que-lá de alho-poró. 

Hoje faz três anos e uns tantos meses que estamos juntos. E você com meu coração, que nunca devolveu. Ainda navega altaneira em azul-mar, enrolando linha e dando linha. E eu, ali, penduricalho do seu barco, pra sempre preso por vontade. Afinal, meu peito não precisa do que bata, basta a estaca daquele anzol que me fisgou.




 

Queda de Júpiter (poema a partir de um exercício de escrita)

 



Em uma situação recente, participando de uma aula de Laboratório de Leitura e Criação Literária para o Ensino Médio e Fundamental, ministrada pela professora Aya, no curso de Letras (UAB/UnB), a professora pediu que fizéssemos anagramas usando apenas nosso primeiro nome e, com as palavras surgidas, criássemos algum texto. 

A partir de “Juliano”, consegui as seguintes palavras:


Juliano

Lua

Juno

Ano

Uno

No

Li e lia (do verbo ler)

Anuí (do verbo anuir)

Ulna (osso do antebraço)

Não

Nua

Lona

Nula (o)


Daí, pensando em como iria criar alguma coisa utilizando todas essas palavras, considerei a palavra Juno (nome de uma deusa romana) a mais difícil de encaixar em algum texto feito ali, de improviso. Então, me veio a ideia de um poema (porque eu teria mais liberdade para encontrar um jeito de usar também a palavra “Ulna”, por exemplo, etc.). Assim, como palavra atrai palavra, surgiu o seguinte poema-ficção em versos livres (ainda não burilado):


QUEDA DE JÚPITER


Era o primado dos deuses romanos...

Juno, esposa de Júpiter e rainha dos deuses, 

Que por ciúmes da bela Calisto, 

Lua nua

Transmutou-a em ursa.

Li, na ulna do deus caído por amor,

Não numa costela, 

(Que a história é de deuses do auge romano, 

Bem maiores que um Adão).

A Júpiter, lhe doeu mais perder uma mulher

De carne e osso,

Do que uma deusa, 

Que o deixou na lona:

Nulo de desejo

Nulo de amor

Nulo...

Uno

Sozinho,

No limbo entre seu reino 

E a própria criação.

Enfim, 

Num ano do calendário Juliano,

Ele anui tornar-se carne.

Aí, decaiu o deus à Terra,

Mas,

Nem tampouco,

Encontrou sua Calisto.

Vive, desde então, 

Imortal, mas semideus,

Perdido de amor...

A namorar as constelações 

Ursa Maior e Ursa Menor 

A circularem nos céus, 

E sonha a sua amada, 

Que levou seu coração.





Tempo

 



TEMPO


Juliano Barreto Rodrigues


Existência bem temperada faz parecer tão curto o tempo...

Que é tempo tão longo quando a gente não faz nada...

Então, para todo tempo da vida, o segredo é o tempero.

Que, muito gostoso, faz parecer que o tempo voa.

Se insosso, torna em horas os minutos.

Mas todo o tempo é sensação.

Mil vezes achar que tempo bom passa rápido

Do que amargar tempo chato que rasteja.

Antes, viver o bom feito a explosão de uma pólvora,

Do que derreter, em banho-maria, uma rala vida.

Tempo é riqueza.

Mas só para quem sabe o que fazer.

Pode ser grande pobreza,

Para quem não sabe bem viver.

Tempo:

Quero dissecá-lo em anagramas, 

Para torná-lo menos fluido, mais durável,

Talvez concreto:

Pote, pome, tome, optem, topem, põem, meto, temo, tem...

Mas escorres...

E, ainda assim, 

És infinito feito as páginas d’O Livro de Areia borgeano.

A tragédia é que tudo é finito dentro de ti.

Senteviu aquela âncora  hoje?

“Olhe-a, nunca mais a verá”

És um rei implacável, que nunca torna.

Grandeza que nunca acaba em si,

Mas termina, uma hora, para cada um.

Te peço:

Seja bom para mim.

Faz passar bem rápido o ruim

E, pelo contrário,

O bom andar beeem “devagarim”.




 


DESMEDIDA INERME


Juliano Barreto Rodrigues


Aquele a quem consideravam boçal estudava. Boçal, ignorante e ignoto, continuava estudando. E lia e refletia e curiava. Pouco falava, tímido, mas muito observava. Os espertos estacionaram, ele continuou. Lebres desaceleraram e a tartaruga alcançou. Inteligência franzina foi se hipertrofiando. Danúbio (quem se chama Danúbio?) avançava. Seu dinheiro era só para livros. E também cinema, teatro, arte, aulas. Quem era cauda foi virando cabeça. Vitória da labuta silenciosa. Nem a inveja alheia para atrapalhar. Não naquele processo, antes invisível. Ninguém adivinhava Danúbio. Não deu salto, desabrochou naturalmente. Surpreendeu sem estardalhaço, sem vaidade. De tudo quem sabia? Danúbio! Foi tornando-se necessário, consultado. Pediam-lhe favores, soluções. Danúbio, que achavam boçal, as tinha. Começaram a se envergonhar dos modos. As palavras dele... tão certeiras, bonitas. “Faz o discurso pro prefeito, Danúbio?”. “Pode falar no enterro do juiz?”. “Me dá uma dica num contrato?”. Danúbio testemunha, padrinho, convidado de honra. Publicou poemas, o jornal o contratou. Daí foi um pulo: virou acadêmico. Feio, mas brilhante, casou muito bem. Construiu casa, tijolo por tijolo. Formou uma linda família. Agora o invejavam. Diziam que era demagogo, uma farsa. Mas que fazer ante brilho óbvio? Criticar tornou-se assunção de despeito. Então, pararam de falar. Mais digno assumir a derrota. Chegou um ex-morador da cidade. Perguntou do boçal. “Dobre a língua, é Dr. Danúbio”. “Mas então não era um boçal?”. “Se era, já era”. “Hã, qual o milagre?”. “Estudo, persistência, cultivo, profundidade, e só”. “Bem feito pra esse povo. Quem mandou se vangloriar cedo? Quem humilha, dá motivo ao humilhado. Segredo do sucesso: constância no propósito. Vida longa ao Dr. Danúbio! Um belo exemplo.”



As vírgulas e Virgulino, apelido Lampião


 

Trata-se de um texto resultado de um exercício de estilo. A proposta foi escrever sem empregar nenhum ponto final.


As vírgulas e Virgulino, apelido Lampião


Juliano Barreto Rodrigues


Era desvirgulado o Virgulino, um sujeito para quem não existiam vírgula, nem ponto-e-vírgula, nem aspas, parêntesis, quase nenhum travessão, porque só sua voz impunha; um daqueles tipos que não estendem uma frase de jeito nenhum, com quem a palavra é reta, sem espaço de argumento ou ponderação, um alguém que gostava principalmente de pontos finais, FINAIS, redondinhos feito a bala do “Colt Cavalinho” (e peremptórios, sem discussão ou lenga-lenga) e, de vez em quando, um sinal de exclamação ou interrogação – mais os primeiros do que os segundos – comuns a quem dá ordens e está acostumado a ser informado das coisas sem demora, costume de gente ocupada com os destinos alheios e causas maiores, ofício que o desvirgulado Virgulino, apelidado Lampião, levava a sério feito profissão de fé, pouco importando os meios para alcançar os fins, nem aceitando ingerência de Sêo Ninguém, era obstinado feito uma mula e despachava um quem-quer-que-fosse com nenhum abalo, como quem mata um porco, à faca, nada se interessando com seus guinchos, mas só com fazer rápido, aguilhoando o coração de forma exata e certeira, sem sujar as roupas, as botas, as mãos, e depois queimando-o em brasa para acabar com os pelos e fazê-lo em pedaços em seguida, sem culpa, só para satisfação de uma necessidade básica; se você pergunta se era sempre assim indiferente, digo que não, que tratando de pessoas a matar, muitas vezes surgiam dois tipos de paixões: a raiva (e gente que inspirava isso Lampião encomendava direto ao diabo, pedindo que a esfolasse muito mais) e um arremedo ligeiro de piedade (no caso daqueles que tinha que matar só por regra de comportamento, para não deixar ninguém para trás, tipo esposas dos seus “encomendados”, crianças, criados das fazendas, funcionários e quem mais não fosse alvo direto), caso em que fazia um sinal da cruz e pronto, se sentia de mãos lavadas e peito livre para novas façanhas, que foram muitas, incontáveis, com cheiro de sangue e pólvora e fezes de amedrontados; aquele Lampião muito mais tirava a luz dos outros do que iluminava o que quer que fosse, até chegar ao ponto em que não houve mais volta, em que sua fama ultrapassou a dos criminosos comuns, foi declarado inimigo público e desafiador das próprias instituições nacionais, marcado para morrer de morte exemplar, encarniçada e divulgada, para deixar bem claro que quem se insurge contra o poder é só um incômodo, pois um rato até assusta um elefante, mas não pode com ele; e assim foi, espetáculo horroroso, de caçada humana no sertão, em que o herói de muitos virou vilão marcado, porque o Estado não aceita concorrentes, prefere, antes, tantos milhões de indigentes, e bem tentou tornar o desvirgulado Virgulino um número esquecido mas, enfim, esquecidos foram os algozes de Lampião, porque ele mesmo entrou para a história, ficando morto, decapitado, romantizado, tornado rei do cangaço, estudado em todos os seus passos e, no final das contas, não fim de tudo, acabado sem ponto final - ele Virgulino, agora  muiltivirgulado, Lampião ,,,,,,,




quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Liberdade da escrita



LIBERDADE DA ESCRITA

Juliano Barreto Rodrigues

Não trago as tais palavras limitadoras da criatividade, ou, se existem, mandei para o fundo do inconsciente. Tenho trabalhado há um tempo minha autocrítica e favorecido minha expressão. Não cerceio minha criatividade: o que é para sair, sai. Sem medo. Tendo feito o exercício de me expor, de escrever e mostrar, deixei a vergonha e boa parte do orgulho para lá. “Perfeito”, nenhum texto nunca é, mas é o melhor que alguém conseguiu fazer. Quando releio, sempre penso que faltou uma vírgula, ou poderia ter mudado uma palavra ou frase. Quem não?

Alguém sempre vai gostar de um texto que outro não gostou e vice-versa. E quem gostou de um, não necessariamente gostará dos seguintes. Por isso, não dá para escrever para os outros, só para si. Se tiver verdade, se sair com gosto, merece o mundo.

Em criatividade não há (ou não deveria haver) regras. As que existem devem ser quebradas. Se penso literatura como arte, estou nesse campo do tudo pode. Sei que existem gêneros, fortuna crítica dos gêneros, preceitos linguísticos e gramaticais, teorias e correntes etc., mas se arte é expressão livre, tudo isso é pouco importante.

Claro que escritas encomendadas (inclusive aquelas redações de concursos, por exemplo) têm que atender algumas exigências, mas nem assim internalizo estas. Faço o necessário, me contenho, mas, dentro da minha cabeça, explodem imagens e ideias que, quem sabe em outro momento, posso pôr no papel superlativas.

Desenho desde criança. Embora reproduza bem imagens e até crie boas composições, são um exercício limitado. Escrever, por sua vez, é alma fluindo: consigo criar, aparentemente, do nada. Eis a mágica, meu veio de expressão, lugar em que sou dono (inteiramente) do que surge.

Limites à minha criatividade? Talvez algum tema, do tipo violência infantil, injustiças grandes, sei lá, algo que me doa tanto que eu não queira visitar com minha escrita. São coisas sobre as quais eu só escreveria se fosse obrigado. Mas posso fazer, só não quero. Esse é mais um âmbito de liberdade de escolha do que uma limitação.

Venho da poesia, da escrita livre. Pouco, ou quase nada disso, aprendi na escola. Vendo os poemas de peito rebentado da minha mãe é que aprendi que o papel aceita qualquer coisa, que tudo pode nascer ali. “Ah”, dirão alguns, “nem tudo pode ser escrito e aceito por uma sociedade”. Aí é outro assunto. Escrever para si mesmo é soltar qualquer bicho. Escrever para os outros é, antes de tudo, cortar, moderar. Por isso, nem tudo o que a gente escreve sai da gaveta, embora muitas vezes o melhor de nós é o que está nela.


 


Um turbante alvo-escarlate


 

Um turbante alvo-escarlate

 

Juliano Barreto Rodrigues


Salto imortal. Nem bem salto, sim queda. O cão tarótico do Louco, íntimo, de casa, amigo de brincar, surtou e enlouqueceu, ele! Num lapso, sem lembrar de como e quê, estava eu deitado na relvinha peniquenta, querendo respirar mas o cachorro em cima. Eu, quatro anos; ele, bicho feito. Sou forte: parecendo muito mais do que criança, meu pontapé fincou o peito do au-au com tanta força que ele voou para o alto, ganiu. Voltou para minha cabeça. De repente, eu em pé, subindo degraus e vendo, surpreso, gotas grandes de sangue no chão. De onde vinham? De quem? Mamãe aparece na porta, apressada. Branca de susto, com um pano de prato na mão, corre para mim. Eu, colo, mãe correndo comigo nos braços, pano de prato na minha cabeça (agora turbante branco-rubro). Avenida. Sozinha, mãe grita para alguém parar um carro. No hospital, me põem para soprar um balão. Acordo, nem sei quando, em uma caixa acrílica. Eu choro, não consigo ver: tudo embaçado e vermelho. Só sangue que escorreu nos olhos. Passo os dedos na cabeça, sinto crateras, texturas monstruosas. Espelho: Tinham raspado só metade da minha cabeça, na outra metade muita costura com linha preta (susto para uma criança). Meus primeiros muitos pontos. Internação não desejo a ninguém, quero casa. Liberado, hepatite, dias sem brincar, sem escola, sem tia Belinha. Matar o cachorro? O meu Duque? De jeito nenhum. Mais um milímetro da mordida na têmpora, eu tinha ido. Não fui. Ele também não iria. Vida normal... Daí uns dias, Duque, pastor alemão, acostumado ao gosto de cabeça infantil, pega meu irmão mais novo. Mais pontos na cabeça, dias de hospital, hepatite na saída. Antes de nós, quase tinha arrancado a bochecha de uma vizinha, também criança. Dessa vez, Duque morto. Daí em diante, todo cachorro que vejo na rua eu adulo, inclusive os grandes. Medo? Os dentes de um já entraram na minha cabeça, entendo um pouco como pensam. Natureza, só isso.