O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quinta-feira, 13 de junho de 2019


PALAVRA-CHAVE

Juliano Barreto Rodrigues

E o verbo se fez substantivo e habitou entre nós.

Elogiando a própria criação, Deus a adjetivou.

No esforço de unir todas as coisas, fez conjunções, preposições e conectivos de forma geral.

O Diabo criou os advérbios, os sobrenomes e palavras novas, tipo “cerca”, “dinheiro”, “meu”, “sou”, “tenho” etc., investiu nos duplos sentidos, estigmatizou a maçã e, principalmente, estimulou a fragmentação, facilitando o surgimento de uma Babel de línguas diferentes.

De modo que a palavra, antes sagrada, dessacralizou-se, profanou-se. A partir dela – que passou a servir, na mesma medida, a Deus e ao Diabo – tornou-se fácil, aos homens, ir ao céu e ao inferno. Assim, de todas, só uma palavra restou definitiva:

ESCOLHA!


Dicas para resenhistas literários (booktubers, blogueiros etc.)

ESCREVENDO RESENHA LITERÁRIA I
Ponderações para booktubers e blogueiros


Juliano Barreto Rodrigues


1. Diferença entre resumo, resenha e crítica especializada

Resumo é uma síntese de texto, seguindo fielmente as ideias do autor. No resumo (que pode ser parágrafo por parágrafo ou mais global) o redator faz a seleção do que considera mais importante e, com suas próprias palavras, escreve um texto que não foge daquele que se está resumindo e nem acrescenta opiniões e anotações pessoais. É objetivo.

A resenha trata do texto (ou vídeo, ou música, etc.) mas é subjetiva, no sentido de que é um comentário crítico acerca daquilo que é resenhado. Pode conter ou não um resumo e, muitas vezes, vai além do seu objeto, dialogando com outros textos, ou com a história, ou com outros campos do saber, etc.

Bater uma resenha” significa, coloquialmente, “bater um papo”. Isso mesmo, conversar com tempo, trocar uma ideia mais a fundo sobre qualquer tema de interesse. É uma definição que me agrada mais do que qualquer outro conceito metodológico científico para definir resenhas literárias. O “papo” pressupõe um assunto pelo qual os resenhistas têm afinidade (e aqui é importante destacar que a resenha – ou sua leitura – é um diálogo1).

Os principais instrumentos de apresentação de argumentos da crítica especializada são a resenha crítica e o ensaio. Esta resenha se diferencia em quê daquela falada no parágrafo anterior? Basicamente, é escrita por especialistas (legitimados de alguma forma, seja pela formação universitária específica ou pela atuação profissional, ou por qualquer outro meio que lhes confira autoridade no assunto). Normalmente tem um viés mais técnico, utilizando uma terminologia comum à Teoria Literária e uma metodologia científica. Mas, na prática, não há regras nesse sentido. Há críticos – principalmente jornalistas e escritores – que escrevem mais “coloquialmente” ou até de forma parecida com a escrita de literatura mesmo.

2. Quem faz a resenha?

- Os que têm obrigação: estudantes; críticos literários; profissionais de cadernos e revistas literários; o pessoal das editoras, para promover suas publicações; leitores beta2; enfim, qualquer um que tenha obrigação funcional de opinar sobre um texto ou livro.

- Os blogueiros e vlogueiros literários3 – boa parte escritores (mas nem todos), querendo criar um público e chamar a atenção do mercado editorial para si e para sua forma de escrita, o que facilita em muito com que sejam aceitos e publicados por alguma editora.

- Qualquer um que queira dar sua opinião e apresentar seus argumentos sobre alguma leitura que o interessou.

3. Para que resenhar?

Primeiramente: para dar opinião (digna de ser ouvida – ou lida) sobre uma obra.

Vários são os motivos que levam alguém a resenhar um livro. Seja como exercício para memorizar melhor seu conteúdo ou para mergulhar mais profundamente no texto (procurando as tais mensagens ocultas nas entrelinhas ou a questão central da obra), seja para atender a uma demanda profissional (caso dos críticos contratados ou de alguém responsável pelo marketing e venda da obra), a resenha é uma forma de dar a conhecer a obra sem, no entanto, detalhar conteúdos que exauram a vontade de ler do leitor nem antecipem as surpresas da trama (ou seja, sem “dar spoiler”).

Pelo viés do leitor editorial, João Varella, editor da Lote 42, ensina, no curso Pulse – Publique Livros, Crie Editoras, que “se você quiser aprender a dar dicas macro4 para escritores, o melhor caminho é treinar fazendo resenhas de livros, dizendo o porquê de ter gostado ou não ter gostado”. Isso serve também para apurar as habilidades do leitor beta, ou do leitor crítico5, de repente até de alguns preparadores de texto (revisores) – sei lá, tudo agrega.

Agora, para quem pretende ser escritor, ter um canal (blog, site, vlog, etc.) em que publique resenhas bem-feitas é um ótimo meio de atrair a atenção das editoras para si e, mais que isso, de formar um público próprio antes até de escrever o primeiro livro – o que conta imensamente quando ele estiver pronto e a editora for analisar se é publicável e promissor, como produto vendável, para eles.

4. Resenhistas em jornais e revistas, blogueiros e booktubers.

Jornais e revistas têm linha editorial e um controle profissional de escolha, qualidade e adequação de conteúdos. Por serem negócios – dependentes de lucro e com concorrência – não podem se dar ao luxo de permitir que um resenhista diga o que bem entender, sob pena de criar uma crise que pode prejudicar o nome da empresa. A própria escolha das obras a serem resenhadas não é aleatória nem obedece, necessariamente, ao gosto pessoal do resenhista (é comum que um editor defina as obras). Assim, sua responsabilidade é grande, já que é um porta-voz da revista ou jornal que representa. Sua credibilidade está associada ao grau de liberdade que consegue apresentar e à força dos seus argumentos na resenha, o que faz com que os textos profissionais quase sempre sejam mais técnicos e abalizados do que os dos blogs e vlogs pessoais. Textos mais “leves”, nas revistas especializadas principalmente, quase sempre vem de escritores consagrados, celebridades literárias ou jornalísticas, que são convidadas para falar dos textos alheios.

A grande revolução trazida pela internet no âmbito da comunicação está no fato de que o controle saiu das mãos dos meios profissionais de comunicação e foi para as dos próprios usuários. Hoje, qualquer pessoa produz e publica o que quer na rede, podendo ser visualizado mundialmente. Isso vale também para livros e autores, produtos antes publicados só por editoras e que hoje são autopublicados em blogs, ou no Wattpad, na Amazon, na Saraiva e em vários outros sites. As pessoas têm voz, um canal livre para se divulgar e àquilo que fazem.

Nesse contexto de total independência é que surgiram as resenhas dos blogs e vlogs. Não há regras fixas, cada um diz o que quer. Há até quem faça, por incrível que pareça, “resenha” de livro que nem leu ainda. Os blogs, e principalmente os vlogs (porque seus conteúdos são em vídeo) têm um alcance de público muito maior do que os jornais e revistas (e quase sempre diferente, dependendo do formato da publicação).

A maioria das resenhas dos booktubers têm um tom muito coloquial e individual, já que o vlogueiro quer chamar a atenção, antes de tudo (do livro inclusive), para si e seu canal, alcançando seguidores e números expressivos de visualização. Para fidelizar seu público, a frequência de postagens de novos vídeos tem que ser relativamente grande, o que pode comprometer negativamente a capacidade de leitura profunda e de resenha das obras.

5. Uma crítica impressionista.

Pessoas que não conhecem Teoria Literária podem falar de literatura? Ou isso é exclusivo a “iniciados”? É claro que podem. Afinal, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, a teoria literária ou a literatura e o leitor? Como disse Verônica Valadares, do canal Vevsvaladares, criticada por falar de Dostoiévski, “O único pré-requisito para você poder falar sobre literatura é ler o livro. Isso vai te fazer ter cacife para falar de literatura”. 
 
Nas palavras de Cory Doctorow (apud SHIRKY, 2012, p. 86)6: “O fundamental é a conversa. O conteúdo é só uma coisa sobre a qual conversar”. As resenhas literárias, profissionais ou amadoras, sempre tiveram, historicamente, essa função de lançar à discussão a literatura em si, através das obras literárias, para que todo o cenário evolua. O preconceito existe apenas dentro da Academia (Universidade e Associações Literárias), mas aparentemente não atinge o deus da relação com o livro: o leitor (que é quem, afinal, interessa).

6. Existe crítica isenta?

Não. Toda crítica pressupõe um julgamento, e todo juízo de valor é subjetivo (ainda que se tente dar ares de objetividade na forma de analisar, argumentar, redigir e apresentar conclusões). Todo o embasamento que é feito – trazendo citações, referenciando estudos e pesquisas importantes, apresentando comparações, estatísticas... – não passa de justificativa para os próprios argumentos. 
 
Tentar parecer o mais isento possível tem a ver com o público a que a resenha se dirige. Por exemplo: ao que parece, o público dos booktubers mais conhecidos se interessa mais na opinião pessoal de seu vlogueiro preferido (alçado ao status de celebridade) do que nos argumentos objetivos da resenha. Para esse público, notas de sinceridade e referências ao impacto pessoal da leitura são muito mais interessantes (isenção zero, e sem disfarces).

Se não existe isenção há, no entanto, modos e modos de dizer: a crítica pode ser moderada (diplomática), pode ser direta e franca (supersincera), positiva (de incentivo, destacando as partes positivas) ou negativa (maldosa, leviana, vingativa), abalizada ou de mera opinião, rasa ou profunda, e por aí vai. O papel é um burro de carga, carrega o que se colocar nele, mas é bom lembrar que quase toda crítica gera respostas e é preciso estar preparado para as consequências.

7. Olhar 180º, 360º ou muito além (olhar de RX e visão além do alcance - “Olho de Thundera”). Segredos dos bons críticos para os resenhistas.

Quando se abre um livro completamente, isso é feito em 180º. Nesta posição, o que se vê é o texto das páginas, só isso. Olhar em 180º é uma maneira de dizer que o resenhista se aterá somente ao texto em si, fazendo um close reading, não estendendo sua análise a elementos extra, como design do livro, capa, tipo de papel, contextualização com outras obras do autor, etc.

O olhar em 360º ilustra o movimento de virar o livro em todos os ângulos e discutir sobre a capa, a composição gráfica, a quarta capa, tipo de papel, fonte utilizada, design, ou seja, coisas que vão além do texto, mais ligadas ao objeto livro.

Um olhar de RX consiste, em ver além do texto, procurando ver mensagens de fundo, intenções do autor, contextualizando-o historicamente e em relação às outras obras do escritor e à sua fortuna crítica. 
 
E o que seria a brincadeira do Olho de Thundera, da “visão além do alcance”? Consiste na feitura de paralelos com outras áreas do saber, na inter-relação com outros autores e escolas literárias, com outras formas de arte, com a política, a religião, etc. Também na cogitação da influência que a obra analisada tem na obra global do autor, na evolução literatura em geral, no desenvolvimento do leitor, e assim por diante, levando a discussões que podem seguir para qualquer rumo, e que têm como limite apenas o arsenal cultural do resenhista.

8. Crítica e autoestima dos autores.

Quem ler Um Editor de Gênios, de A. Scott Berg (Intrínseca), biografia de Maxwell Perkins, um dos maiores editores de todos os tempos, verá o quanto a crítica, principalmente a ruim, afeta a autoestima, a produtividade e a escrita dos autores. Ele editou F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Thomas Wolfe e muitos outros. Alguns chegaram a pensar em deixar de escrever por serem criticados.

Levando em conta que a crítica ruim afeta o autor, é preciso considerar: 1) um escritor não nasce pronto, evolui à medida que escreve; 2) criticar é muuuito mais fácil do que escrever. Se é gasta uma semana para escrever uma resenha, são gastos meses – até anos – para escrever um livro. 
 
Portanto, respeite a carga7, o trabalho do autor, do editor, etc. Não digo para só falar bem de tudo, mas vá com cuidado, positivamente, com jeito. Como eu já disse antes, há formas e formas de dizer verdades, procure a menos dolorosa e que traga um incentivo para a melhora, não para a desistência.


    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAYARD, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? ; tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

CANDIDO, Antonio. Crítica impressionista. Remate de Males, Campinas, SP, dez. 2012. ISSN 2316-5758. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635988>. Acesso em: 05 abr. 2018. doi:https://doi.org/10.20396/remate.v0i0.8635988.

JEFFMAN, T. M. W. . Literatura compartilhada: uma análise da cultura participativa, consumo e conexões nos booktubers. Revista Brasileira de História da Mídia , v. 4, p. 99, 2015.

NINA, Cláudia. Literatura nos jornais : A critica literária dos rodapés às resenhas. - São Paulo : Summus, 2007.

PROSE, Francine. Para ler como um escritor: um guia para quem gosta de livros e para quem gosta de escrevê-los; tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. - Rio de Janeiro : Zahar, 2008.

SALVADOR, Vitor Celso. . O impressionismo crítico de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) no estudo de romances brasileiros (1897-1908). In: II Colóquio da pós-graduação em Letras, 2010, Assis. Anais CPGL: II Colóquio da pós-graduação em Letras -"Literatura e vida social", 2010.

VASCONCELLOS, Karine Menezes. Narrativas Migrantes: o papel dos youtubers na construção de um novo discurso midiático; Início: 2016; Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Federal de Juiz de Fora; (Orientador);



Notas
1 Ou, no mínimo, um monólogo. Ainda que o leitor não responda ao autor do que está lendo, o diálogo existe na medida em que: 1) o texto só toma existência (parafraseando Ricardo Piglia em entrevista sobre seu livro O ùltimo Leitor), só tem vida, quando é lido, o que pressupõe a existência de uma segunda pessoa além do autor: o leitor; 2) Um texto, como um rio, nunca é o mesmo quando visto uma segunda vez pela mesma pessoa, quem dirá por outra. Cada um interpreta o que lê de acordo com suas próprias experiências prévias (psicológicas, de vida, de formação, de classe social, etc.). Assim, o texto reverbera filtrado pela mente do leitor, que o recebe, o questiona (está questionando o autor), convalida ou não suas partes, de acordo com seu próprio gosto e vivência.

2 Leitor beta, ou beta reader, é uma pessoa que lê criticamente um original assim que o autor acredita ter uma versão publicável. Ou seja, em tese é o segundo a ter contato com o texto. A finalidade é apontar falhas e sugerir opiniões sinceras para melhorá-lo, antes de ser apresentado a uma editora (onde passará por leitura crítica e revisões antes de ir para o prelo e ser, finalmente, impresso). Há gente prestando esse serviço profissionalmente, já que pressupõe certos conhecimentos que vão além do “leitor ingênuo”. 
 
3 Os vlogueiros literários são chamados booktubers.

4 Sobre estrutura da narrativa, problemas nos diálogos, questões relativas à concisão, clareza, precisão, ou incoerências, excessos desnecessários, enfim, o que funciona e o que não funciona num texto.

5 Referindo-se ao leitor crítico estamos falando de quem faz uma análise específica com viés editorial (para diferenciar do leitor beta, embora este também possa ter qualificações nesse sentido). Pode ser contratado mas, muitas vezes, o próprio editor faz tal leitura, ou alguém responsável pela análise de originais da editora.

6 SHIRKY, Clay. A cultura da participação: criatividade e ge­nerosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 
 
7 Há uma historinha dizendo que Napoleão andava na companhia de uma princesa por uma passarela quando apareceu um serviçal, empurrando um carrinho com uma carga pesada, para cruzar-lhes o caminho. Embora fossem personalidades muito importantes, o que faria com que o serviçal esperasse, Napoleão parou e fez com que a princesa passasse dizendo: “respeite a carga”.




Balatrácio Egopoético