O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Crítica Literária (verbete criado para o curso de Letras da UnB)

©Disney Enterprises, Inc. and Pixar Animation Studios




CRÍTICA LITERÁRIA

Juliano Barreto Rodrigues

Crítica, do latim critĭcus, advém, originariamente, do grego antigo kritikḗ (κριτική), e significa ‘apreciação, julgamento’. Critica literária consiste, portanto, na apreciação (discussão, interpretação) e julgamento (avaliação) das obras literárias, baseando-se na teoria da literatura ou em outro parametrizador específico qualquer (científico, disciplinar, estético, moral, comparativo...). Tanto a crítica quanto a própria literatura objeto da crítica são historicamente situadas, ainda que a resenha se atenha, em alguns casos, exclusivamente ao texto e este não traga indicações claras de época. Todo texto analisado foi escrito em algum momento e a crítica sempre será feita por um sujeito também presente em tempo específico, o que determina muito da leitura que o crítico faz do texto. Nesse sentido, o método aplicado sempre será uma atualização histórica. A crítica literária, conforme Esterhammer (20??), tem funções de avaliação, de informação, de orientação, de didática e de entretenimento.

 Silva (2012), destaca três momentos históricos paradigmáticos do desenvolvimento da crítica literária: 1) a sua gênese na antiguidade clássica, a partir das reflexões dos filósofos (especialmente Platão e Aristóteles ); 2) o período em que esteve praticamente sob o domínio dos religiosos, na Idade Média e início da Modernidade, época em que a crítica se baseava na escolástica, método que visava conciliar os princípios da fé cristã com o pensamento racional. Os primeiros ensaios de crítica literária ocidentais são sobre a exegese bíblica e dos clássicos antigos (LA CRITIQUE LITTÉRAIRE, 20??); 3) a fase Moderna, que firma o conceito de crítica literária a partir da investigação científica (destacam-se, para essa evolução da crítica literária, as obras Crítica da Razão Pura e Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant). A partir daí  a crítica especializada, assumindo (alguns a contragosto) o caráter intrinsecamente subjetivo da atividade,  teria definido correntes, diferenciadas pelos estilos dos críticos.

Na modernidade, os franceses tinham a crítica como simples “jogo do espírito” (CARDOSO, 2017). No século XVIII, o poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão Gotthold Ephraim Lessing mudou isso, destacando que a arte se origina de um estado emocional real, é uma produção resultante das aptidões psicológicas e não mera intuição ou acaso. Assim aproximou não só arte e ciência, mas a própria Crítica dos métodos científicos.

Contemporaneamente (Cf. CRÍTICA LITERÁRIA, 2020), Northrop Frye influenciou a crítica literária com seu livro ensaístico Anatomia da Crítica. Destacou que os críticos julgam de acordo com a ideologia que adotam. Jürgen Habermas (em Erkenntnis und Interesse [Conhecimento e interesses humanos]) tratou a teoria crítica como forma de hermenêutica, abrangendo a interpretação dos textos literários e suas expressões simbólicas, incluindo na análise os textos que os interpretaram. Na década de 60 do século passado, desenvolveu-se a chamada Nova Crítica, que passou a considerar o próprio estudo teórico das formas literárias como literatura. René Girard, posteriormente, investigando o desejo humano (e seus conflitos) na literatura, apontou alguns critérios específicos para a pesquisa interpretativa (REYES, 2015). Mas há muitas teorias e classificações para além dessas. O importante é destacar que a crítica literária evolui no tempo, há muito se aproxima mais da ciência e é frequentemente informada pela teoria literária, mas não se restringe a conceitos ou métodos únicos.

O senso comum significa a crítica pejorativamente, como atividade de alguém especialista em falar mal de alguém ou de algo, bem como perito em encontrar defeitos nas obras alheias. Mas a crítica vai bem além disso e tem uma função importante na regulação, contextualização e perspectivação das realizações humanas. 

A atividade da crítica literária é vista com ressentimento por parte da maioria dos autores – especialmente daqueles que não caíram nas graças dos críticos – várias declarações suas provam isso. Ninguém se sente à vontade em ser julgado, especialmente quando um julgamento especializado influencia tantas pessoas e repercute de forma tão cabal na aceitação da sua obra, na sua imagem pessoal e nos seus rendimentos. 

A crítica é formadora de opinião (positiva ou negativa) e, como palavra de autoridade, é naturalmente temida por quem traz a público uma obra de arte (literária, musical, plástica etc.).   Ademais, questiona-se a legitimidade dos críticos, haja vista que seu julgamento será sempre subjetivo-opinativo, mesmo que lastreado em fundamentos, métodos e autores que justifiquem seu ponto de vista. 

Segundo Martins (2009), o crítico literário “[...] relaciona-se com a literatura, sobretudo com aquela que é sua contemporânea, [...] através de uma espécie de cegueira interessada que leva o crítico a unicamente ver aquilo que quer ou pode ver.” Acrescenta ainda que, “No domínio da crítica literária, faz plenamente sentido a afirmação de M. Merlau-Ponty de que "só encontramos nos textos aquilo que colocamos neles", ou seja, o crítico só elabora suas reflexões com base na fortuna cultural que tenha em si mesmo.

É fácil duvidar da isenção dos críticos, seja porque estão sujeitos (como todas as pessoas) à influência social, religiosa, moral, política, ou porque podem ter algum interesse pessoal inconfessado. Também é comum o argumento de que quem não ajudou na realização de um trabalho, nem apresentou coisa melhor, não deveria ser autorizado a arbitrar sobre o valor artístico de algo ou alguém. Mas tudo isso constitui uma visão simplista. 

É inegável que a crítica ocupa um espaço essencial no sistema literário. Faz parte, junto com os editores, os agentes literários, os leitores, a academia e os livreiros, daquele complexo de freios e contrapesos que, no jogo de tensão entre esses ‘sujeitos’, auto-organiza o próprio sistema. Seguindo a lógica da “mão invisível do mercado”, de Adam Smith (e literatura é também um grande mercado), chega-se, dentro da crise permanente dos antagonismos, a um meio-termo razoável e mutável o tempo todo. Isso também explica o sucesso, a heterogeneidade e a convivência entre best-sellers, livros eruditos, auto-ajuda, ficção e não-ficção, títulos estrangeiros e nacionais,  autores de literatura ‘popular’ vendendo tanto quando autores de literatura consagrada ,assim por diante, além do caso, comum em literatura e nas artes em geral, do reconhecimento de obras e autores em períodos históricos posteriores à morte desses autores, em épocas mais afins às suas ideias. Os críticos (especializados e não especializados) são peças poderosas na co-orientação do mercado do livro. 

O blog da Livraria Saraiva (SARAIVA CONTEÚDO, 2017) destacou 10 críticos literários que fizeram história. Como toda lista, deixa muitos nomes importantes de fora (neste caso, especialmente os mais atuais). Ainda assim, é uma boa referência. Segue um breve extrato:
 
1. SÍLVIO ROMERO (1851-1914)
Sergipano, fez crítica e história literária de forma sistemática e técnica. Defendia que a realidade deveria ser a base da literatura. Conforme Antônio Cândido, ele “firmou o cânon da história literária brasileira”. Silvio Romero foi professor e historiador de literatura brasileira, crítico literário, ensaísta e folclorista. Obra destacada: História da Literatura Brasileira – Tomos I e II (Imago).

2. JOSÉ VERÍSSIMO (1857-1916)
Paraense, influenciado pelo crítico francês Hippolyte Taine, foi um dos primeiros a destacar a importância de Machado de Assis. José Veríssimo pensava o homem histórico-socialmente situado, bem como sob o aspecto de raça.  Foi escritor, crítico e historiador literário, educador e jornalista. Obra destacada: História da Literatura Brasileira (Letras e Letras).

3. ARARIPE JUNIOR (1848-1911)
Cearense, nacionalista, criativo e sensível ao fato estético, integrou, junto com Sílvio Romero e José Veríssimo, a destacada intelectualidade da época chamada de “geração de 1870”. Foi advogado, político e crítico literário. Obra destacada: Cartas Sobre a Literatura Brasileira

4. AGRIPPINO GRIECO (1888-1973)
Fluminense, foi temido por suas colunas nos jornais, em tom satírico e polêmico (1920-1950). Sua crítica era impressionista e ele também tinha um interesse humanista. Foi crítico literário, jornalista, tradutor, contista e poeta. Obra destacada: Poetas e Prosadores do Brasil (Livros do Brasil).

5. ALCEU AMOROSO LIMA (1893-1983)
Fluminense, tido como crítico do modernismo, foi uma importante liderança da inteligência católica brasileira. Considerava a crítica uma atividade autônoma e fazia uma crítica expressionista e de cunho satírico. Também era conhecido por seu pseudônimo Tristão de Ataíde. Foi crítico, professor e ensaísta. Obra destacada: O Crítico Literário

6. AFRÂNIO COUTINHO (1911-2000)
Baiano, introduziu os conceitos do New Criticism na crítica brasileira. Foi professor, crítico literário e ensaísta. Obra destacada: Enciclopédia de Literatura Brasileira (Global).

7. ÁLVARO LINS (1912-1970)
Pernanbucano, rechaçava a ideia de que a crítica era apenas um julgamento subjetivo. Sua crítica era impressionista e de cunho humanista. Foi professor, redator-chefe do Correio da Manhã, e crítico literário. Obra destacada: Filosofia, História e Crítica na Literatura Brasileira.

8. ANTONIO CANDIDO (1918-2017)
Carioca, exercitou uma crítica de cunho social e histórico. Desenvolveu estudos sobre autor-obra-público, sobre literatura e também pedagogia. Foi escritor, sociólogo, professor e crítico literário. Obra destacada: Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (Ouro Sobre Azul).

9. ALFREDO BOSI (1936)
Paulistano, caracterizado em sua produção crítica pelo formalismo literário e suas implicações históricas. É professor emérito da Universidade de São Paulo, crítico e historiador da literatura brasileira, membro da Academia Brasileira de Letras. Obra destacada: História Concisa da Literatura Brasileira (Cultrix).

10. WILSON MARTINS (1921-2010)
Paulistano, se denominava “o último crítico literário em atividade”. Crítico impressionista que publicava em jornais, colecionou inimigos. Analisava obras contemporâneas, valendo-se da comparação histórica. Foi professor, escritor, magistrado, jornalista, historiador e crítico literário. Obra destacada: A Crítica Literária no Brasil – Vols. I e II (Francisco Alves).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADHIKARY, Ramesh. A History of Literaty Criticism – Harry Blamiers. In: History of Literary Criticism B.A. 1ST Year Major English – Eng-422. Blogspot. 2019. Disponível em: <http://rameshadhikary.blogspot.com/2019/12/history-of-literary-criticism-ba-1st.html>. Acesso em 15 out. 2020.

CARDOSO, Camila Chaves. Os condeitos de literatura e crítica literaria em dois textos de Silvio Romero. Unicamp, 2017. Disponível em: <https://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/c00017.htm> . Acesso em: 15 out. 2020.

CRÍTICA LITERÁRIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Cr%C3%ADtica_liter%C3%A1ria&oldid=58998864>. Acesso em: 9 ago. 2020.

ESTERHAMMER, Ruth. Das Buch und die Kritik: Theorie versus Praxis. Literaturkritik.at. Universidade de Innsbruck, Áustria. 20??. Disponível em: <https://www.uibk.ac.at/literaturkritik/zeitschrift/471992.html> . Acesso em 15 out. 2020.

LA CRITIQUE LITTÉRAIRE. Book Wiki – enciclopédie libre. Italy, 20??. Disponível em: <https://boowiki.info/art/la-critique-litteraire-3/la-critique-litteraire-2.html> . Acesso em: 15 out. 2020.

MARTINS, Manuel Frias. Crítica Literária [verbete]. E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. 2009. Disponível em: <https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/critica-literaria/> . Acesso em 15 out. 2020.

REYES, Júlia. Conhecimento: uma leitura de René Girard. Abralic. XIV Congresso Internacional Fluxos e Correntes:  trânsitos e traduções literárias. Universidade Federal do Pará. Belém – Pará. 2015. Disponível em: < https://abralic.org.br/anais/arquivos/2015_1464284337.pdf> . Acesso em: 15 out. 2020.

SARAIVA CONTEÚDO. Dez críticos literários brasileiros que fizeram história. SARAIVA [blog]. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:EW1wDWauK1IJ:https://blog.saraiva.com.br/dez-criticos-literarios-brasileiros-que-fizeram-historia/+&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br> . Acesso em 16 out. 2020.

SILVA, Daniele Cristina Afostinho. Crítica Literária. Info Escola. 2019. Disponível em: < https://www.infoescola.com/literatura/critica-literaria/> . Acesso em 15 out. 2020.





Literatura Oral

 

By Geledés

LITERATURA ORAL

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

Entendendo que, etimologicamente, literatura advém do radical latino littera, que significa letra do alfabeto, caractér da escrita, alguns podem ver contradição em tratar algo que circula, às vezes exclusivamente na forma oral, como sendo literatura. Por isso mesmo, achei interessante tratar da literatura oral como gênero.

Segundo o Glossário Ceale (SOUZA, 20??), a expressão Literatura Oral foi utilizada pela primeira vez em 1881, pelo pintor, folclorista e escritor francês Paul Sébillot, no livro Littérature Orale de la Haute-Bretagne. Literatura Oral designa os textos (em sentido amplo, significando um entrelaçamento de signos linguísticos que produzem sentido), em prosa e verso, transmitidos oralmente. É o caso das lendas, mitos, parlendas, adivinhas, provérbios etc.

Essa literatura existia antes mesmo da invenção da escrita. Mas, ainda hoje, há culturas que mantém a tradição de repassar manifestações literárias oralmente (poemas, contos, rezas...). Nas religiões de origem bantu e nagô, aqui mesmo no Brasil, os mitos e costumes são transmitidos através de versos (ingorossis, itans, orikis etc.); na África Ocidental há os Griots. Nas tribos indígenas também se mantém a literatura oral. Mesmo entre os habitantes urbanos, que aparentemente não têm uma cultura tradicional preservada tão oralmente, também há algumas manifestações do tipo, como as lendas urbanas, as cantigas de roda, as adivinhações. Ao conjunto das ocorrências orais de fundo literário alguns estudiosos têm chamado “oratura” (de orature, uma aglutinação entre os termos em inglês oral + literature).

Muito da literatura fundadora que conhecemos e estudamos hoje por escrito, nasceu oralmente (é o caso da Ilíada e da Odisseia, de Homero). Também nasceram oralmente Beowulf, e os contos de fadas antigos. Alguém contesta que se tratem de literatura?

A Wikipédia (2020) destaca o caráter de arte “improvisacional” da literatura oral. Diz que, normalmente [não exclusivamente] o narrador aprende um conjunto de sequências “roteirizáveis” ao invés de decorar, ao pé da letra, um conjunto de textos. A partir daí, cria uma trama com início, meio e fim. Visualiza os personagens, as cenas e cenários, e improvisa a forma de contar. Disso decorre que nunca a mesma história será contada exatamente do mesmo jeito. Isso pode valer para contos e outras formas em prosa, mas talvez não para cantigas e versos, que geralmente são aprendidos e repetidos palavra por palavra. Nesse sentido,


Zumthor (1997) esclarece que o texto oral é realizado sem rascunhos – ou melhor dizendo, “sem borracha” –, por mais que cantadores populares possam ensaiar e aprimorar seus versos antes das apresentações. O momento onde o texto toma forma é circunstancial. Por isso mesmo, é certo dizer que nenhuma performance é igual a outra. (LÚCIO; CUNHA, 2017, p. 4701).

 

A consignação por escrito da Literatura Oral é polêmica. Se, por um lado, evita que muitas de suas manifestações sumam, se extinguam, por outro, a transcrição representa uma apropriaçao por parte do transcritor, que passa a ser autor (lembra o caso dos Irmãos Grimm?); engessa ou deturpa uma versão de algo que, por ser oral e contado por diferentes pessoas, é naturalmente modificável no tempo e no espaço; além disso, altera as próprias características da fala popular.

No entanto, ainda que oralidade e escrita tenham diferenças muito evidentes, devem ser vistas em suas peculiaridades, mas não como coisas opostas, porque comumente se entrecruzam. SOUZA (20??) demonstra a defesa dessa ideia por nosso sistema escolar:


Na alfabetização, tais entrecruzamentos [entre oralidade e escrita] se revelam importantes. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) dos anos iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, aproximam o ensino da escrita da oralidade, ao sugerir a valorização da cultura oral como forma de iniciar o aluno no mundo da escrita, apresentando perspectivas teórico-metodológicas que envolvem a narração e a escuta de histórias, o levantamento de narrativas que circulam nas famílias e o trabalho com gêneros orais, tais como cordel, canções e parlendas.

 

Entendendo “literatura” e mesmo “texto” como algo mais amplo, neles podem se enquadrar os quadrinhos, o cinema, as novelas de TV, as canções populares, o repente, o improviso, o graffiti e o pixo nos muros (Cf. LÚCIO; CUNHA, 2017) e  - por que não? - os Storytellings do mundo institucional e corporativo. É preciso considerar, inclusive, o caso de algumas obras de arte não autônomas que dependem de significados externos, escritos, que completem ou traduzam significados (WILLIAMS, 2007, p. 259) - é o caso de algumas pinturas, filmes, músicas, por exemplo. Não sendo primariamente literárias, secundariamente podem ser lidas pelo viés literário.

Por tudo que foi dito, Literatura Oral é, sim, literatura. E a ela deve ser reconhecido o valor que se dá a algo escasso, em vias de desaparecimento caso não continue a ser repassado. Se pensarmos pos este viés, em muitos casos a maioria das narrativas orais tradicionais são muito mais preciosas do que as escritas. Aquelas foram construídas por gerações (nesse sentido são coletivas) e continuam vivas, se transformando um pouco a cada recontagem (por esta ótica, tem algo do gênero dramático, dependem de uma certa performance do contador). Já as escritas, viraram mercadoria corrente e perene, abundam. Têm mutio valor, mas é preciso que as pessoas, inclusive os literatos e as universidades, confiram à boa literatura oral o lugar que merece, junto à literatura com “L” maiúsculo, posto quase exclusivamente conferido aos cânones escritos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LITERATURA ORAL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Literatura_oral&oldid=59490160>. Acesso em: 9 out. 2020.

 LÚCIO, Ana Cristina Marinho; CUNHA, Thiago da Silveira Cunha. Literatura e outras linguagens: exemplo do testemunho de pichadores em João Pessoa. XV Congresso Internacional da Abralic. Universidade Federal da Paraíba. 2017. Disponível em: <https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522243505.pdf> . Acesso em 09 out. 2020.

SOUZA, Josiley Francisco de. Literatura Oral. In: Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita para educadores. Glossário Ceale. Faculdade de Educação da UFMG. 20??. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/literatura-oral#:~:text=Literatura%20oral%20%C3%A9%20uma%20express%C3%A3o,modo%20diferente%20do%20falar%20cotidiano> . Acesso em 09 out. 2020.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; traduçãode Sandra Guardini Vasconcelos, - São Paulo : Boitempo, 2007. 464 p.

 


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Falando um pouco sobre o gênero Romance

 

Falando um pouco sobre o gênero Romance


Juliano Barreto Rodrigues


“Há controvérsia!” - Surgimento do romance moderno

A origem do romance moderno não é consensual (FUKS, 2016). Se convencionou considerar Dom Quixote, surgido em 1605, como o primeiro romance moderno. Mas isso é problemático, já que a modernidade ainda não havia sido estabelecida, isso só acontecendo mais tarde. O foco no indivíduo e algumas outras peculiaridades, dentre outras características do romance propriamente dito, seriam somente intuitivas, ocupando Dom Quixote apenas o lugar de precursor do romance moderno, não sendo, ele próprio, o primeiro do gênero.

Levando em conta a modernidade historicamente situada, burguesa, capitalista, individualista, alguns dizem que o primeiro romance efetivamente moderno foi Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, escrito em 1719. Mas há quem também o considere um precursor do verdadeiro primeiro romance moderno. 

Auerbach, filólogo alemão, crítico literário e estudioso de literatura comparada, defendeu O Vermelho e o Negro, publicado por Sthendal em 1830, como o fundador do romance moderno e do próprio realismo moderno. O protagonista, situado em um momento histórico concreto, evolui em uma sociedade que considera hipócrita e vai questionando as bases em que está assentada.


Por que ler romances?

A revista Super Interessante (2013) disse, em primeiro lugar, que “Ler romances torna você uma pessoa melhor”. Em uma matéria publicada, em 2013, com esse título, afirma que os romances fazem isso porque permite que o leitor entre em outro mundo e confronte suas próprias incertezas, ambiguidades, situações críticas e ofensivas, sem sofrer riscos reais. Isso “abre a cabeça”, permitindo pensar situações sem ter que vivê-las efetivamente. Romances são representações da realidade sob um novo ponto de vista – do narrador e dos personagens. O leitor cria empatia ou antipatia por alguns, concorda ou discorda de situações e comportamentos, reflete sobre a história, pensa no que faria se estivesse no lugar de alguns, vive aquela ‘vida paralela’ contada no texto. Nesse sentido, Adolfo Bioy Casares disse que “ler é a outra aventura, e a primeira é, provavelmente, a vida mesma.”

Romances têm sua singularidade, enquanto gênero, mas são muito versáteis. A ensaísta e tradutora francesa Marthe Robert (2009), resumiu bem uma das características do romance, dizendo que nele cabem elementos do drama, da epopeia, da fábula, do ensaio, cabe o monólogo, a comédia etc. Ou seja, nos romances há inúmeras possibilidades para agradar diferentes gostos. Eles ensinam, divertem, nos permitem ver o mundo sob outras óticas, conhecer culturas e lugares em que nunca iremos, observar pessoas sem incomodá-las, testar nossas próprias convicções e conceitos, tudo sem sofrermos nenhum arranhão.

Sem contar, que o romance é o gênero literário mais prestigiado na atualidade. Há best sellers mundiais e, em muitos círculos sociais, confessar nunca ter sequer ouvido falar de certos livros e autores é ser classificado como alguém, no mínimo, muito ‘por fora’. Quem não conhece Harry Potter? E o Senhor dos Anéis? O Drácula, de Bram Stoker? Antes de serem filmes, são livros. 
 

O que são os clássicos?

Clássicos são, grosso modo, romances que sobreviveram ao tempo, ou seja, que mesmo refletindo, às vezes, épocas distantes e lugares desaparecidos, permanecem por terem sua qualidade reconhecida, mantendo o interesse dos leitores e dos outros atores do universo literário: críticos, editores, universidades, livreiros etc. Foram testados pelo tempo e não desapareceram, continuam agradando e sendo lidos.

Dentre as características dos clássicos, uma que muitos citam é a atemporalidade, ou seja, tratam de temas universais, que nunca saem de moda, como o amor, a morte, a vida. Outra característica importante dos romances é a originalidade, que consiste em um ponto de vista único (e, às vezes um tipo de linguagem também) para tratar de algo conhecido. Isso surpreende o leitor, que passa a ver as coisas por outro ângulo. 

Além disso, clássicos são desafiadores, sempre provocam nossa Inteligência, seja para decifrar o que realmente quer dizer ou para aprender novas palavras, ou então nos inquietam para solucionarmos mistérios ou tentarmos antecipar o que os personagens vão fazer.
 

Por que se escrevem romances hoje?

Resposta fácil: para contar histórias.

James Salter, romancista norte-americano, falou disso em três palestras que publicou em forma de livro pouco antes de morrer, em 2015. Disse que as histórias são a essência das coisas, o elemento fundamental. Sherazade, a filha do vizir em As mil e uma noites, só sobrevive, segundo outro romancista, o britânico Edward Morgan Forster, porque compôs histórias de um jeito que sempre houvesse um “gancho” deixando o rei sempre curioso sobre o que aconteceria em seguida. Isso, mais do que suas habilidades de criar personagens, narrar acontecimentos, fazer boas descrições, é que fez a diferença entre sua vida ou sua morte. “O que aconteceria depois? A vontade de saber é o motor da literatura: [então,] por favor, continue contando a história” (El País, 2018).

Ouvir, ou ler, e contar histórias são inerentes à nossa natureza e fez com que evoluíssemos como humanos. Contar histórias é, normalmente, um fenômeno narrativo, realizado utilizando primeira ou terceira pessoa pronominal, e que só dá certo se prender o interesse das pessoas. O romance é uma forma de contar grandes histórias, envolvendo muitos personagens e tramas complexas, com a possibilidade de idas e vindas no tempo, utilizando como suporte o livro, tecnologia que permite, conforme um texto incrível de Millor Fernandes (chamado L.I.V.R.O. ), “ser retomado a qualquer momento”, sem a obrigação da pessoa ter que ficar ouvindo a história até o fim, sem parar. 

Contos, crônicas, notícias, filmes, também contam histórias. O diferencial do romance é sua extensão, com a possibilidade de aprofundamento nas situações e na psique das personagens (coisa que uma notícia não consegue, por exemplo, porque só a ficção dá a possibilidade de um narrador estar na cabeça da personagem). Ficção não é incomum em outros gêneros, narrativa também não, e nem diálogos. Mas no romance há espaço para várias personagens, trama e subtramas, maior liberdade espaço-temporal para histórias de maior fôlego.


Por que falaríamos sobre romances com alunos da Educação Básica? 

Por vários motivos: 

Falar sobre romances é falar sobre o gênero literário mais em voga dos últimos três séculos, pelo menos. Só por isso já podemos considerar ser inevitável falar sobre romances com os alunos da Educação Básica (no mínimo nas aulas de literatura). É um gênero muito conhecido e a partir do qual é possível tratar da evolução dos gêneros literários, dos conceitos de arte, do que é mercado editorial, economia criativa, capital simbólico, mobilidade social a partir da educação e cultura etc.

Os livros escolares de história normalmente se atém a fatos e personalidades emblemáticos e que tiveram grande repercussão regional, nacional ou mundial. Pouco revelam da vida privada, dos costumes e reflexões individuais das pessoas de uma época, de como pensavam, o que amavam ou temiam, como se comportavam. A narrativa estritamente histórica costuma ser o mais objetiva possível, contando o que aconteceu e qual a participação das figuras centrais dos acontecimentos. Nos romances - que por serem romances não têm obrigação com a verdade histórica - o que mais chama a atenção nem são tanto os fatos em si, mas como as personagens participam deles, o que sentem, o que pensam. Apresentar essa subjetividade aproxima os leitores dos personagens, aumenta o interesse na trama, que parece ser algo muito mais ao nível da vida real (embora isso seja um paradoxo, já que provavelmente o contrário é que é correto). Nos empolgamos com a evolução dos personagens, com eles nos identificamos, sofremos ou sorrimos. O romance é o espelho social de uma época, permite imaginarmo-nos no seu cotidiano, entender como determinada sociedade era e o que a movia. As ficções de época, mesmo sendo ficções, procuram apresentar a melhor ambientação e caracterização possíveis dos personagens, para garantir a verossimilhança.

Romances são ótimas formas de entretenimento aliado a aprendizado – de vocabulário, de história (quase sempre), de comunicação (já que em bons romances nenhum diálogo é desproposital nem descuidado), de criatividade (imaginar a partir de descrições e narrações é trabalho do leitor), de como agir diante das situações (a gente aprende com os personagens, sem ter que passar pelo que passaram), de cultura, de senso estético, de vida (ler é como viver outras vidas em outras peles) etc.

Grande parte dos filmes de sucesso é baseada em romances, outra parte teve os roteiros escritos por autores de romances. E filmes concorrem com as redes sociais, os jogos e outros programas multimídia pela preferência de entretenimento dos indivíduos em idade escolar. São um excelente gancho para atraí-los para a leitura de romances. Quem lê o livro que inspirou um filme que adorou quase sempre acha o livro incrível, porque conta a história com mais detalhes, num tempo em que cabem mais subtramas, minuciosas construções das emoções e das ações, por exemplo. E mais, cabem interpretação e imaginação, meios de interação do leitor com a trama; dela participa imaginando as cenas (que por mais bem descritas que sejam, jamais serão imaginadas de forma idêntica por duas pessoas), coisa que os filmes já entregam prontas. 

Ler romances, sem exclusividade nem estar na defensiva ou ter pré-julgamentos, “abre a cabeça”, permite construir uma forma crítica de ver o mundo. O leitor contumaz vai aprendendo a perceber as várias camadas dos textos, assim identificando intenções inconfessadas, ideologias subjacentes, contradições, artifícios, marcos, abrandamentos (para fugir de censura do governo de uma época, por exemplo) etc.
 
A partir dos romances é possível fazer links com as disciplinas escolares. Por exemplo: é possível estudar matemática a partir de O homem que calculava, de Malba Tahan; física, a partir de E se…, de Giovanna Vaccaro;  Geografia em Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freire; e assim por diante. Matérias consideradas áridas por alguns alunos podem se tornar muito interessantes se contextualizadas a partir da leitura de um romance. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Carol. Ler romances torna você uma pessoa melhor. Super Interessante. Brasil,4 out. 2013. Disponível em: <https://super.abril.com.br/blog/cienciamaluca/ler-romances-torna-voce-uma-pessoa-melhor/> . Acesso em 30 set. 2020.

FUKS, Julián Miguel Barbero. História abstrata do romance. São Paulo: USP, 2016. Tese (Doutorado em Letras), Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-14032017-160249/publico/2016_JulianMiguelBarberoFuks_VOrig.pdf> . Acesso em 30 set. 2020.

ROBERT, Marthe. Roman des origines et origines du Roman. Paris: Gallimard, 2009, p. 14.

SALTER, James. Vou tentar falar sobre escrever romances. El País. Brasil. 22 abr.2018. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qdmA5IyzUuUJ:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/03/cultura/1522766904_519483.html+&cd=8&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br> . Acesso em 30 set. 2020.






domingo, 27 de setembro de 2020

O que é Literatura?


 

O QUE É LITERATURA?


Juliano Barreto Rodrigues


     Não há um conceito conclusivo do que seja literatura. Provavelmente nem vai haver. Trata-se de uma definição que, conforme a história revela, tem se modificado no tempo e nas diversas culturas (espaços diferentes). Mas, como disse Williams (2007, p. 256), “O que, então, deve ser rastreado é a tentativa amiúde bem-sucedida de especialização do termo literatura para designar certos tipos de escrita.”

     É relativamente fácil relacionar a música e as artes plásticas a arte, mas o texto escrito não se classifica tão facilmente como arte escrita, como Literatura. Isso, talvez porque a escrita sempre foi muito mais utilizada para fins utilitários do que artísticos e, mesmo nestes casos, é uma arte que nem sempre revela de forma tão evidente seu valor estético. 

     Literatura já foi definida como tudo que se registrava por escrito, também como aquilo que se escrevia por e para a “alta cultura”; já foi conceituada tanto se baseando no seu conteúdo quanto, depois, exclusivamente na forma de escrita; para uns, inclui a tradição que é repassada oralmente, ideia inadmissível para outros (apoiados na própria etimologia da palavra literatura, do latim littera, significando “letra”, portanto algo escrito). Ou seja, há ‘correntes’ de pensamento a respeito do que seja literatura, e todas têm argumentos defensáveis.

     Aristóteles, em seu tratado A Poética, indicava que o texto literário (denominado “poesia”, não distinguindo o verso da prosa) partia do mundo e a ele se referia por imitação. O problema é que, quando se trata o texto literário estritamente como imitação, o gesto poético fica adstrito à reprodução do mundo real. Assim, os teóricos ulteriores expandiram o termo referente a imitação, usado por Aristóteles – mímesis (do grego μίμησις) – utilizando este como conceito próprio e significando bem além daquilo que o uso comum da palavra imitação normalmente representa, porque a poesia (significando literatura de forma geral) ultrapassa a simples imitação das ações dos homens, ela constrói o que poderia ter acontecido ou que poderia vir a acontecer (às vezes de forma absurda, fantasiosa, onírica etc., no entanto, verossímil de alguma maneira). Aí entra a imaginação, que chamamos hoje de ficção. Isso repercute na criação, palavra-chave do fazer literário, mas também na forma de leitura, pois, como afirma em aula o professor de Teoria da Literatura, Dr. Anderson L. N. da Mata, da Universidade de Brasília (UnB), quando não se está lidando com o que aconteceu, tem-se um outro registro dos fatos e da linguagem. 

     O escritor colombiano Gabriel García Márquez, em entrevista a seu conterrâneo e também escritor Plinio Apuleyo Mendonza, traz, falando do Romance (talvez a forma mais generalizada de literatura atual), uma ideia de mimese – a que chama de “transposição poética da realidade” – muito interessante: “[...] é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se almeja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apoie nela. Como acontece com os sonhos.” (MÁRQUEZ, 2020, p. 51). 

     Deleuze vai além da ideia de mimese, ou talvez apenas amplie seu sentido e a perspectiva de interação do leitor, colocando em seu lugar o que chama de “devir”:

Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula. (DELEUZE, 1983, p. 12).

     Mimese, devir, representação – “[...] a arte seria representacional enquanto manifesta a ‘verdade’ ou a ‘essência’ da exterioridade eleita como núcleo do mundo” (COSTA LIMA, 1981, p. 216) –, são pertinentes ao conteúdo. Conteúdo e/ou forma peculiares, eis, ainda, os dois principais pontos de caracterização da literatura. O problema é que não são absolutos nem incontroversos. Veja o que diz Eagleton a respeito do primeiro ponto:

Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita "imaginativa'', no sentido de ficção - escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. A literatura inglesa do século XVII inclui Shakespeare, Webster, Marvell e Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os sermões de John Donne [...]. (EAGLETON, 2006, p. 1).

     Da mesma maneira que algumas não-ficções são consideradas literatura, uma certa forma distintiva, defendida ao extremo pelos formalistas russos, também nem sempre é, sozinha, determinante para caracterização do texto como literário, haja vista que, a forma de escrita prosaica de uma época passada ou de determinado local pode ser vista como poética em outro tempo ou lugar. Nesse sentido, “Quem acredita que a ‘literaturà' possa ser definida por esses usos especiais da linguagem tem de enfrentar o fato de que há mais metáforas na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na poesia de Marvell.” (EAGLETON, 2006, p. 8).

     Por outro lado, o sistema de circulação do texto literário, que abrange escritores, leitores, mediadores (professores, editores, críticos, livrarias, agências literárias e de marketing etc.) define e consolida – inclusive a despeito das teorias mais aceitas – o que é considerado literatura em determinado contexto histórico e espacial. Até porque, a literatura é arte e, como tal, traz em si a tendência histórica no sentido de romper com a tradição. Isso estimula a experimentação e a assunção de riscos estéticos pelo artista, coisa que os gêneros “não literários” praticamente proíbem. Quem, senão o próprio autor e alguns dos movimentadores desse sistema, classificaria como literatura, por exemplo, o livro Múltipla Escolha, do chileno Alejandro Zambra, todo escrito como questionário de prova de vestibular?

     Revendo minhas experiências pessoais de leitura, o conceito de literatura que mais me assenta é o que a define como ‘arte da palavra’, algo a que Willians (2007, p. 257) chama de “complexo moderno de literatura”, resultado do mix “arte, estético, criativo e imaginativo”. Entendo que uma preocupação essencial com a estética, bem como as escolhas deliberadas de palavras com o fim de causar determinado ‘efeito’ emocional nos leitores, caracterizam – como ocorre em outras formas de arte – a Literatura.

     Se, por um lado, não considero que qualquer coisa escrita seja literatura, por outro, acredito que algo não escrito – como as narrativas orais tribais africanas, ou indígenas brasileiras, que Ailton Krenak chama de “memória ancestral” (KRENAK, p. 9), por exemplo – o seja. 

     Forma e conteúdo. O que diferencia o texto literário de um texto formulaico, ou noticioso, ou de outro qualquer é seu conteúdo ou a forma em que é escrito (ou, frequentemente, as duas coisas). Não tendo função informativa nem instrucional, embora possam eventualmente informar e instruir (a exemplo das crônicas, das fábulas, dos romances de formação, dos textos religiosos, dentre outros), são atribuídas aos autores literários tanto grande liberdade ficcional quanto estilística (embora a fortuna do gênero imponha certos limites consensuais que são, mais ou menos, respeitados). Levando em conta a ideia que mais me apraz de literatura, entendo que esses dois componentes, ficção e forma (ou estilo artístico) é que conferem os elementos de fruição estética, característicos do enlevo causado pelas demais obras de arte, ao texto literário.

     Arte da palavra, em que prevalecem a criação ficcional e uma forma de escrita deliberadamente trabalhada esteticamente, marcada com o cunho autoral (subjetivo) e buscando causar um ‘efeito’ emocional no leitor – estas, para mim, as principais características definidoras de Literatura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

COSTA LIMA, Luiz. Representação social e mimesis. In Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981. p. 216-236

DELEUZE, Gilles, La Litérature et la Vie, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.

EAGLETON, Terry Teoria da literatura : uma introdução; tradução de Waltensir Outra ; [revisão da tradução João Azenha Jr_]_ - 6" ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2006. - (Biblioteca universal). 387 páginas.

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo, 2019.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cheiro de Goiaba : conversas com Plinio Apuleyo Mendonza; tradução de Eliane Zagury. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2020. 190 páginas.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. – São Paulo : Boitempo, 2007. 464 páginas.

ZAMBRA, Alejandro. Múltipla escolha; tradução de Miguel Del Castillo. - 1ª ed. - São Paulo: Planeta do Brasil, 2017. 112 páginas.



Romance - uma breve introdução

Impressões sobre o conto Animais, de Michel Laub

 


IMPRESSÕES SOBRE O CONTO ANIMAIS, DE MICHEL LAUB


Juliano Barreto Rodrigues


     Eu nunca tinha lido nada escrito por Michel Laub. O conto Animais é um daqueles textos que quem lê pode ter a impressão equivocada de que é algo que qualquer um escreve. Isso por relatar situações autobiográficas. Mas não se engane, o conto não é uma mera narrativa daquelas que se faz na escola para responder, por exemplo, “como foram suas férias?”: é um belo conto sobre a morte, sobre a saudade e, coisa que mais me tocou, sobre a importância que a presença de certos seres (especialmente o pai, no conto)  tem em nossas vidas. Aqui já usei a primeira pessoa do plural, confessando que o texto me tocou, me apropriei dele. E quem não se emocionou?

     Trata-se de um conto: é curto, em prosa, com parágrafos e, embora traga diversas personagens e narrativas dentro da narrativa principal (o que poderia ser confundido com episódios), elas não são subtramas, só corroboram a trama mesmo; traz apenas um eixo temático; é um texto com início, meio e fim.

     Embora comece o texto falando do cachorro e o título seja Animais, o narrador trata, principalmente, do pai, da relação com o pai e da falta que ele faz. Talvez a figura do cachorro Champion seja emblemática da relação do narrador personagem com a morte, porque, no último parágrafo, ele diz que nunca mais chorou, nem quando os amigos morreram, nem quando o pai morreu. 

     O título desloca nossa atenção para os animais, mas fala principalmente de pessoas. Parece uma estratégia para revelar uma certa forma de ver a morte, como se dissesse: somos todos animais e como animais morremos, não há sentido especial nisso. Mas há significado na falta, na lembrança. 

     O texto é quase uma lista de obituário, uma coleção de 9 mortos (entre animais e pessoas) em apenas 24 parágrafos. E ainda há a possibilidade, em aberto, do dobermann ter morrido ou não. No parágrafo 18 ainda há a referência às relações – de amizade, amorosas etc. – que não duraram, e que podem ser vistas como uma espécie de morte também. Assim, o conto foi feito para dar certo literariamente, para causar um efeito: a morte e tudo que a cerca, especialmente a de entes queridos, é um tema recorrente e que toca. Adriano Schwartz, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada, na USP, disse, comentando o conto Animais, após o lançamento da antologia Granta, que “[...] como acontece tantas vezes na obra dele [de Laub], é calculado demais, contido demais.” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012). Pode ser calculado e contido demais no seu estilo, na forma da escrita (e foi também a impressão que eu tive), mas com certeza não é contido no conteúdo: no conto há praticamente meio morto para cada parágrafo.

     Principalmente nos parágrafos 6, 13, 17 e 23 o tempo cronológico, que se atém ao passado ocorrido, se mescla com o tempo psicológico, presente, do narrador personagem que conta a história. Isto aproxima mais o  narrador do leitor, (que sente o narrador mais concretamente, como ser real e não como abstração de escritor), quando revela seu estado de espírito na rememoração daquilo que conta. É uma boa “isca” para aumentar a verossimilhança e fisgar ainda mais o leitor. 

     A estrutura, em parágrafos bem espaçados, sem recuo e numerados, ressalta o tempo na narrativa, com os espaços em branco funcionando como aquilo que o escritor Marcelino Freire chama de “respiros do texto”, pausas maiores que o normal para o leitor desacelerar e cotejar suas próprias lembranças e experiências.

     Em entrevista, Michel Laub disse que alguns teóricos diferenciam a autobiografia da autoficção por uma aspecto formal (LAUB, 2016) – na autobiografia o texto seria em primeira pessoa e na autoficção o autor, embora falando de si, utilizaria a 3ª pessoa – mas, ao que tudo indica, essa explicação não se sustenta,  a diferença real está no conteúdo, na presença deliberada do elemento ficcional. Até porque, rotulado como escritor de autoficção, seu texto Animais é escrito em 1ª pessoa.

     “Autoficção” está muito na moda, mas o termo foi usado originalmente em 1977, por Serge Doubrowsky, em seu romance Fils. Diz respeito a obras que apresentam situações autobiográficas, mas,  também, elementos claramente ficcionais.

     No parágrafo 19 o narrador dá dica, metaficcionalmente, de como acontece a autoficção: “[...] Nos romances que escrevi retratei meu pai de várias formas: como judeu marcado pela memória de guerra, como personagem secundário na história do acidente com a rede, como homem que dá a pior notícia da vida do filho antes de um jogo de futebol. Tudo verdade e tudo mentira, como sempre na ficção, e já pensei muito no porquê de ter sempre escrito sobre ele, e se quando ficar velho vou confundir a memória dele com a memória registrada nesses livros [...]. (sem negrito no original).

     Não foi fácil, para mim, decidir o que considero o clímax do conto, porque a trama é toda muito homogênea, há pouco sobe e desce, o efeito acontece por acumulação de ‘pequenas ondas’. Acabei por coincidir o clímax com o final do texto, o último parágrafo, que traz o elemento mais instigante, aquele desfecho aberto. Destaco o trecho-chave, o finalzinho, que traz a dúvida da decisão, bem como uma metáfora bem interessante sobre a situação que o pai do narrador personagem iria se deparar em seguida: “[...] a imagem mais nítida que guardo do meu pai, eu tão próximo de tomar uma decisão enquanto ele esperava pela resposta do lobo.”

     O desfecho fica em aberto como estratégia para engajar o leitor, que tem que imaginar se o narrador personagem envenenou o dobermann ou não. Isso obriga a participação do leitor, que tem que imaginar o desfecho que mais lhe agrada ou que considera mais lógico. É um artifício que faz com que o texto fique gravado na memória por muito mais tempo, já que há um problema sem solução e o leitor, por mais que queira, não consegue ter certeza se o final que acha melhor é aquele que o autor também acha. O cérebro tenta integrar lacunas, mas se depara com algo insuperável objetivamente: a solução não está nas mãos dele, leitor, mas nas do escritor. 

     Animais é um texto incrível, exemplo a ser trabalhado em oficinas de escrita criativa. O autor sabe muito bem o que fazer para o texto funcionar. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.

LAUB, Michel. Animais. IN: GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva (Alfaguara), 2012, p. 13-23.

____________. Michel Laub / Episódio completo: Minha vida dá um livro / Super Libris. Youtube. 12 abr. 2016. Disponível em: <https://youtu.be/wdCMrEz4EGI> . Acesso em 26 set. 2020.

SCHWARTZ, Adriano. Crítica: Linguagem contida da “Granta” distingue seleção acima da média. Folha de São Paulo, 16 jul. 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1120548-critica-linguagem-contida-da-granta-distingue-selecao-acima-da-media.shtml>. Acesso em: 25 de set. de 2020.


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez

 


Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez

(Por Juliano Barreto Rodrigues)


O "realismo mágico", movimento literário em que o escritor Gabriel García Márquez mais se destacou, joga com a disposição do leitor de se dar à fantasia. É como nas peças representadas no teatro: o espectador sabe que atores apenas representam, mas topa a ilusão, participa acreditando, para poder sentir aquilo que a peça traz. No caso do realismo mágico, em que o autor ‘viaja’, criando cenas, ou personagens, ou situações e diálogos, claramente impossíveis racionalmente, o leitor tem que estar suscetível e disposto a embarcar na ilusão. Nesse sentido, considero que seja uma literatura de extremo, de limite, que pode dar muito certo ou muito errado, porque as impossibilidades têm que ser, a despeito de impossíveis, muito verossímeis. No mínimo o leitor tem que estar tão enlevado pela escrita que suas sensações ultrapassem a necessidade de coerência racional absoluta. Isso não é comum em toda literatura? Sim, mas no caso do realismo mágico... é pressuposto.

Quem teve o privilégio de ler Cem Anos de Solidão sabe que Gabo (apelido do autor, que os leitores apaixonados por sua escrita, como eu, adoram usar para sentir uma ilusão de intimidade) domina essa forma de escrita totalmente. É um prestidigitador da palavra, um habilidoso enredador, que leva os leitores para onde quer. Esse é meu jeito de dizer que ele é um grandissíssimo escritor de ficção. 

O conto A luz é como água dá um gosto do que é a escrita de Gabo. Você escorrega da realidade para o onírico sem ver, como se estivesse sentado, dormisse sem sentir e, de repente, estivesse no meio de um sonho mágico, do qual você também acorda sem perceber, olha para os lados para ver se o que estava sonhando está mesmo acontecendo. Engraçado é que as coisas são pertinentes, tem algum rumo, levam a algum sentido (coisa que os sonhos malucos não costumam ter). 

Quem não vê aquela torrente dourada quando lê a parte da luz escorrendo do prédio? É falsa? Claro que não. É super verdadeira na nossa imaginação. É ou não é? É essa a mágica que Gabo faz com as palavras.

 

Partilha de Leitura - "Para além do sentido: posições e conceitos em movimento", capítulo do livro "Produção de Presença", de Hans Ulrich Gumbrecht



“Paraguaçuismo”[1] discursivo


 Juliano Barreto Rodrigues


 

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... (Lima Barreto in O Homem Que Sabia Javanês).

 

Faço aqui uma partilha de leitura que foi significativa para mim, mas de forma negativa. Eis uma ousadia crítica que não aconselho, já que feita em desfavor da escrita de um dos celebrados teóricos profissionais de hoje.

Fui instado a ler o capítulo Para além do sentido: posições e conceitos em movimento, do livro Produção de Presença (PUC Rio, 2012), escrito pelo teórico literário alemão Hans Ulrich Gumbrecht. Como disse, a leitura me impressionou, em mau sentido. Explico!

Primeiro Gumbrecht escreve meio capítulo, mais de vinte páginas, se escusando pela ousadia de defender uma posição minoritária, o que talvez se justifique pelo fato de ele, que não é filósofo de formação, lutar em campo alheio, tendo que pedir tanta licença e invocar máxima data vênia para ser ouvido pelo público que elegeu.

Quando parte efetivamente para o tratamento da tese que traz, o faz de forma quase barroca, enfeitando e complicando o que já é, por natureza, complicado. Problema de linguagem artificiosamente encriptada. Isso o que me indispôs com o texto e fez com que me sentisse um pouco manipulado pelo autor.

Gumbrecht considera a forma de conhecimento baseada tão somente nos sentidos, limitada, uma sucessão interminável de interpretações. Os objetos de estudo (inclusive a arte) são o que são (no tempo). O autor propõe uma outra forma de ver as coisas e seres, como presença (no espaço), numa relação de aproximação e afastamento em relação ao mundo. Aqui há que se diferenciar os conceitos de terra e mundo. O primeiro, vinculado ao universo dos sentidos, isola o objeto em sua existência temporal e o conhecimento que se tem dele depende de observação e interpretação. O segundo, defendido por Gumbrecht, é mais amplo, vê os objetos de conhecimento horizontalmente, em relação ao seu entorno e aos observadores. Na aproximação e no afastamento o objeto se mostra e se oculta, dando-se a conhecer nesta relação e de acordo com as modificações que cada tempo nele opera. Ele não é somente o que é, como quando surgiu; ele é como se apresenta no tempo da aproximação e em relação com o mundo. Assim, uma ruina de coluna jônica, vista hoje, será considerada uma ruina de coluna jônica, e não uma coluna jônica em si, como se estivesse intacta. Difícil de entender? Muito. E embora eu talvez não tenha entendido bem, nem explicado a contento, o texto de Gumbrecht não faz nada para tornar a ideia mais inteligível.

A experiência de leitura do texto me trouxe à memória dois outros pensadores: Michel Foucault e Gayatri Chakravorty Spivak (autora de Pode o Subalterno Falar?). Ambos escreveram da mesma forma hermética que Gumbrecht usou em seu texto. Podendo clarificar os conceitos e o entendimento, os emaranharam em uma linguagem rebuscada, redundante e “pavônica”, para dar ares de maior gravidade e erudição para suas teorias.

Foucault, na terceira entrevista que concedeu a Roger-Pol Droit, em 1975, se afirmou um “pirotécnico”. Ele se autodesignou assim para afirmar sua tendência a polemizar temas que o senso comum preferia deixar ‘por baixo dos panos’. Mas, para mim, pirotecnia também adjetiva a sua linguagem. Seus textos são de um exibicionismo intelectual e de uma autocondescendência enormes. Não é, no entanto, um autor condescendente com seus leitores. Em uma linguagem intrincada, que se afasta e se aproxima do objeto, o rodeia à exaustão, transforma cada leitor em tradutor de suas ideias, quando bastava que as colocasse de forma clara. A mesma coisa acontece na leitura de Spivak: complica o que era para ser simples. Um texto chamado Pode o Subalterno Falar? deveria ser vedado ao entendimento do subalterno? Mas Spivak ainda tem o mérito de esclarecer que, partindo da subalternidade, para ser ouvida teve que se adequar ao império da academia, à forma de linguagem, às regras, ao jeito de produzir e difundir conhecimento, que ela legitima. Ou seja, expôs a máscara que teve que vestir para ser aceita nos círculos restritos.

Não estou criticando os conceitos nem os conhecimentos dos citados autores (gosto muito das obras de Foucault), mas a linguagem utilizadas em seus textos. Quem ouve as entrevistas de Gumbrecht ou já leu As muitas camadas do mundo dos sonetos de Shakespeare, capítulo do livro Atmosfera, ambiência, Stimmung (GUMBRECHT, 2014, págs. 55-69), percebe a enorme diferença da linguagem do livro Produção de Presença. Gumbrecht é entendível quando quer ser. Nesta obra Gumbrecht chega ao ponto de, apresentando uma ideia, dizer que ela seria melhor definida por outra expressão. Daí ele apresenta a melhor expressão, mas volta ao uso daquela primeira, menos adequada. Como explicar? Sou obrigado a crer que há qualquer insegurança na defesa de sua teoria e que ele deliberadamente a complica para fazer passar despercebidas quaisquer fragilidades lógicas ou, ao menos, dificultar a vida dos outros teóricos que venham a tentar refutá-lo. Se não tivesse lido qualquer outra coisa de Gumbrecht iria acreditar, vendo como escreveu Produção de Presença, que, sendo crítico literário, não havia aprendido nada com seu objeto de crítica, ou seja, com a linguagem literária.

Minha primeira formação é em Direito, ciência social aplicada em que o conservadorismo e a tradição são claramente representados pelo jargão profissional que só se justifica, a despeito dos representados por advogados e dos que recorrem ao judiciário, pela reserva de mercado. Acuso os teóricos, de algumas outras áreas do saber, do mesmo problema ético-político: restringir, pelo artifício da complicação da linguagem, o acesso ao conhecimento. Sei que, obviamente, cada ciência e cada especialidade dentro dela, tem conceitos próprios, objetos próprios etc., que justificam significados próprios para determinados termos. O que critico é a deliberada tentativa de restringir mais ainda o entendimento através de construções que não esclarecem, antes confundem.

Uma autoridade que não sabe dizer claramente algo, mistifica, dá voltas e mais voltas, ilude, mas não perde a autoridade. A impressão que a leitura me deixou foi essa. Respeito as leituras alheias e ressalto que essa foi, apenas, a minha leitura.

 

REFERÊNCIAS

 

Foucault, M.  Eu sou um  pirotécnico. Em  R. Pol­Droit (Org.). Michel Foucault:  entrevistas (V.P. Carrero & G.G. Carneiro, Trad.) (pp. 67­100). São Paulo: Graal.  (Original publicado em 2004).

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura; tradução Ana Isabel Soares – 1. ed. – Rio de Janeiro : Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?; tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa – Belo Horizonte : Ediotora UFMG, 2010.

 



[1] Referência ao personagem ficcional Odorico Paraguaçu, um adorado político demagogo, com discursos incríveis e um dialeto próprio. Personagem criado pelo dramaturgo Dias Gomes, por volta de 1969.