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quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Falando um pouco sobre o gênero Romance

 

Falando um pouco sobre o gênero Romance


Juliano Barreto Rodrigues


“Há controvérsia!” - Surgimento do romance moderno

A origem do romance moderno não é consensual (FUKS, 2016). Se convencionou considerar Dom Quixote, surgido em 1605, como o primeiro romance moderno. Mas isso é problemático, já que a modernidade ainda não havia sido estabelecida, isso só acontecendo mais tarde. O foco no indivíduo e algumas outras peculiaridades, dentre outras características do romance propriamente dito, seriam somente intuitivas, ocupando Dom Quixote apenas o lugar de precursor do romance moderno, não sendo, ele próprio, o primeiro do gênero.

Levando em conta a modernidade historicamente situada, burguesa, capitalista, individualista, alguns dizem que o primeiro romance efetivamente moderno foi Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, escrito em 1719. Mas há quem também o considere um precursor do verdadeiro primeiro romance moderno. 

Auerbach, filólogo alemão, crítico literário e estudioso de literatura comparada, defendeu O Vermelho e o Negro, publicado por Sthendal em 1830, como o fundador do romance moderno e do próprio realismo moderno. O protagonista, situado em um momento histórico concreto, evolui em uma sociedade que considera hipócrita e vai questionando as bases em que está assentada.


Por que ler romances?

A revista Super Interessante (2013) disse, em primeiro lugar, que “Ler romances torna você uma pessoa melhor”. Em uma matéria publicada, em 2013, com esse título, afirma que os romances fazem isso porque permite que o leitor entre em outro mundo e confronte suas próprias incertezas, ambiguidades, situações críticas e ofensivas, sem sofrer riscos reais. Isso “abre a cabeça”, permitindo pensar situações sem ter que vivê-las efetivamente. Romances são representações da realidade sob um novo ponto de vista – do narrador e dos personagens. O leitor cria empatia ou antipatia por alguns, concorda ou discorda de situações e comportamentos, reflete sobre a história, pensa no que faria se estivesse no lugar de alguns, vive aquela ‘vida paralela’ contada no texto. Nesse sentido, Adolfo Bioy Casares disse que “ler é a outra aventura, e a primeira é, provavelmente, a vida mesma.”

Romances têm sua singularidade, enquanto gênero, mas são muito versáteis. A ensaísta e tradutora francesa Marthe Robert (2009), resumiu bem uma das características do romance, dizendo que nele cabem elementos do drama, da epopeia, da fábula, do ensaio, cabe o monólogo, a comédia etc. Ou seja, nos romances há inúmeras possibilidades para agradar diferentes gostos. Eles ensinam, divertem, nos permitem ver o mundo sob outras óticas, conhecer culturas e lugares em que nunca iremos, observar pessoas sem incomodá-las, testar nossas próprias convicções e conceitos, tudo sem sofrermos nenhum arranhão.

Sem contar, que o romance é o gênero literário mais prestigiado na atualidade. Há best sellers mundiais e, em muitos círculos sociais, confessar nunca ter sequer ouvido falar de certos livros e autores é ser classificado como alguém, no mínimo, muito ‘por fora’. Quem não conhece Harry Potter? E o Senhor dos Anéis? O Drácula, de Bram Stoker? Antes de serem filmes, são livros. 
 

O que são os clássicos?

Clássicos são, grosso modo, romances que sobreviveram ao tempo, ou seja, que mesmo refletindo, às vezes, épocas distantes e lugares desaparecidos, permanecem por terem sua qualidade reconhecida, mantendo o interesse dos leitores e dos outros atores do universo literário: críticos, editores, universidades, livreiros etc. Foram testados pelo tempo e não desapareceram, continuam agradando e sendo lidos.

Dentre as características dos clássicos, uma que muitos citam é a atemporalidade, ou seja, tratam de temas universais, que nunca saem de moda, como o amor, a morte, a vida. Outra característica importante dos romances é a originalidade, que consiste em um ponto de vista único (e, às vezes um tipo de linguagem também) para tratar de algo conhecido. Isso surpreende o leitor, que passa a ver as coisas por outro ângulo. 

Além disso, clássicos são desafiadores, sempre provocam nossa Inteligência, seja para decifrar o que realmente quer dizer ou para aprender novas palavras, ou então nos inquietam para solucionarmos mistérios ou tentarmos antecipar o que os personagens vão fazer.
 

Por que se escrevem romances hoje?

Resposta fácil: para contar histórias.

James Salter, romancista norte-americano, falou disso em três palestras que publicou em forma de livro pouco antes de morrer, em 2015. Disse que as histórias são a essência das coisas, o elemento fundamental. Sherazade, a filha do vizir em As mil e uma noites, só sobrevive, segundo outro romancista, o britânico Edward Morgan Forster, porque compôs histórias de um jeito que sempre houvesse um “gancho” deixando o rei sempre curioso sobre o que aconteceria em seguida. Isso, mais do que suas habilidades de criar personagens, narrar acontecimentos, fazer boas descrições, é que fez a diferença entre sua vida ou sua morte. “O que aconteceria depois? A vontade de saber é o motor da literatura: [então,] por favor, continue contando a história” (El País, 2018).

Ouvir, ou ler, e contar histórias são inerentes à nossa natureza e fez com que evoluíssemos como humanos. Contar histórias é, normalmente, um fenômeno narrativo, realizado utilizando primeira ou terceira pessoa pronominal, e que só dá certo se prender o interesse das pessoas. O romance é uma forma de contar grandes histórias, envolvendo muitos personagens e tramas complexas, com a possibilidade de idas e vindas no tempo, utilizando como suporte o livro, tecnologia que permite, conforme um texto incrível de Millor Fernandes (chamado L.I.V.R.O. ), “ser retomado a qualquer momento”, sem a obrigação da pessoa ter que ficar ouvindo a história até o fim, sem parar. 

Contos, crônicas, notícias, filmes, também contam histórias. O diferencial do romance é sua extensão, com a possibilidade de aprofundamento nas situações e na psique das personagens (coisa que uma notícia não consegue, por exemplo, porque só a ficção dá a possibilidade de um narrador estar na cabeça da personagem). Ficção não é incomum em outros gêneros, narrativa também não, e nem diálogos. Mas no romance há espaço para várias personagens, trama e subtramas, maior liberdade espaço-temporal para histórias de maior fôlego.


Por que falaríamos sobre romances com alunos da Educação Básica? 

Por vários motivos: 

Falar sobre romances é falar sobre o gênero literário mais em voga dos últimos três séculos, pelo menos. Só por isso já podemos considerar ser inevitável falar sobre romances com os alunos da Educação Básica (no mínimo nas aulas de literatura). É um gênero muito conhecido e a partir do qual é possível tratar da evolução dos gêneros literários, dos conceitos de arte, do que é mercado editorial, economia criativa, capital simbólico, mobilidade social a partir da educação e cultura etc.

Os livros escolares de história normalmente se atém a fatos e personalidades emblemáticos e que tiveram grande repercussão regional, nacional ou mundial. Pouco revelam da vida privada, dos costumes e reflexões individuais das pessoas de uma época, de como pensavam, o que amavam ou temiam, como se comportavam. A narrativa estritamente histórica costuma ser o mais objetiva possível, contando o que aconteceu e qual a participação das figuras centrais dos acontecimentos. Nos romances - que por serem romances não têm obrigação com a verdade histórica - o que mais chama a atenção nem são tanto os fatos em si, mas como as personagens participam deles, o que sentem, o que pensam. Apresentar essa subjetividade aproxima os leitores dos personagens, aumenta o interesse na trama, que parece ser algo muito mais ao nível da vida real (embora isso seja um paradoxo, já que provavelmente o contrário é que é correto). Nos empolgamos com a evolução dos personagens, com eles nos identificamos, sofremos ou sorrimos. O romance é o espelho social de uma época, permite imaginarmo-nos no seu cotidiano, entender como determinada sociedade era e o que a movia. As ficções de época, mesmo sendo ficções, procuram apresentar a melhor ambientação e caracterização possíveis dos personagens, para garantir a verossimilhança.

Romances são ótimas formas de entretenimento aliado a aprendizado – de vocabulário, de história (quase sempre), de comunicação (já que em bons romances nenhum diálogo é desproposital nem descuidado), de criatividade (imaginar a partir de descrições e narrações é trabalho do leitor), de como agir diante das situações (a gente aprende com os personagens, sem ter que passar pelo que passaram), de cultura, de senso estético, de vida (ler é como viver outras vidas em outras peles) etc.

Grande parte dos filmes de sucesso é baseada em romances, outra parte teve os roteiros escritos por autores de romances. E filmes concorrem com as redes sociais, os jogos e outros programas multimídia pela preferência de entretenimento dos indivíduos em idade escolar. São um excelente gancho para atraí-los para a leitura de romances. Quem lê o livro que inspirou um filme que adorou quase sempre acha o livro incrível, porque conta a história com mais detalhes, num tempo em que cabem mais subtramas, minuciosas construções das emoções e das ações, por exemplo. E mais, cabem interpretação e imaginação, meios de interação do leitor com a trama; dela participa imaginando as cenas (que por mais bem descritas que sejam, jamais serão imaginadas de forma idêntica por duas pessoas), coisa que os filmes já entregam prontas. 

Ler romances, sem exclusividade nem estar na defensiva ou ter pré-julgamentos, “abre a cabeça”, permite construir uma forma crítica de ver o mundo. O leitor contumaz vai aprendendo a perceber as várias camadas dos textos, assim identificando intenções inconfessadas, ideologias subjacentes, contradições, artifícios, marcos, abrandamentos (para fugir de censura do governo de uma época, por exemplo) etc.
 
A partir dos romances é possível fazer links com as disciplinas escolares. Por exemplo: é possível estudar matemática a partir de O homem que calculava, de Malba Tahan; física, a partir de E se…, de Giovanna Vaccaro;  Geografia em Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freire; e assim por diante. Matérias consideradas áridas por alguns alunos podem se tornar muito interessantes se contextualizadas a partir da leitura de um romance. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Carol. Ler romances torna você uma pessoa melhor. Super Interessante. Brasil,4 out. 2013. Disponível em: <https://super.abril.com.br/blog/cienciamaluca/ler-romances-torna-voce-uma-pessoa-melhor/> . Acesso em 30 set. 2020.

FUKS, Julián Miguel Barbero. História abstrata do romance. São Paulo: USP, 2016. Tese (Doutorado em Letras), Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-14032017-160249/publico/2016_JulianMiguelBarberoFuks_VOrig.pdf> . Acesso em 30 set. 2020.

ROBERT, Marthe. Roman des origines et origines du Roman. Paris: Gallimard, 2009, p. 14.

SALTER, James. Vou tentar falar sobre escrever romances. El País. Brasil. 22 abr.2018. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qdmA5IyzUuUJ:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/03/cultura/1522766904_519483.html+&cd=8&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br> . Acesso em 30 set. 2020.






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