O Coletivo

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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Literatura Oral

 

By Geledés

LITERATURA ORAL

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

Entendendo que, etimologicamente, literatura advém do radical latino littera, que significa letra do alfabeto, caractér da escrita, alguns podem ver contradição em tratar algo que circula, às vezes exclusivamente na forma oral, como sendo literatura. Por isso mesmo, achei interessante tratar da literatura oral como gênero.

Segundo o Glossário Ceale (SOUZA, 20??), a expressão Literatura Oral foi utilizada pela primeira vez em 1881, pelo pintor, folclorista e escritor francês Paul Sébillot, no livro Littérature Orale de la Haute-Bretagne. Literatura Oral designa os textos (em sentido amplo, significando um entrelaçamento de signos linguísticos que produzem sentido), em prosa e verso, transmitidos oralmente. É o caso das lendas, mitos, parlendas, adivinhas, provérbios etc.

Essa literatura existia antes mesmo da invenção da escrita. Mas, ainda hoje, há culturas que mantém a tradição de repassar manifestações literárias oralmente (poemas, contos, rezas...). Nas religiões de origem bantu e nagô, aqui mesmo no Brasil, os mitos e costumes são transmitidos através de versos (ingorossis, itans, orikis etc.); na África Ocidental há os Griots. Nas tribos indígenas também se mantém a literatura oral. Mesmo entre os habitantes urbanos, que aparentemente não têm uma cultura tradicional preservada tão oralmente, também há algumas manifestações do tipo, como as lendas urbanas, as cantigas de roda, as adivinhações. Ao conjunto das ocorrências orais de fundo literário alguns estudiosos têm chamado “oratura” (de orature, uma aglutinação entre os termos em inglês oral + literature).

Muito da literatura fundadora que conhecemos e estudamos hoje por escrito, nasceu oralmente (é o caso da Ilíada e da Odisseia, de Homero). Também nasceram oralmente Beowulf, e os contos de fadas antigos. Alguém contesta que se tratem de literatura?

A Wikipédia (2020) destaca o caráter de arte “improvisacional” da literatura oral. Diz que, normalmente [não exclusivamente] o narrador aprende um conjunto de sequências “roteirizáveis” ao invés de decorar, ao pé da letra, um conjunto de textos. A partir daí, cria uma trama com início, meio e fim. Visualiza os personagens, as cenas e cenários, e improvisa a forma de contar. Disso decorre que nunca a mesma história será contada exatamente do mesmo jeito. Isso pode valer para contos e outras formas em prosa, mas talvez não para cantigas e versos, que geralmente são aprendidos e repetidos palavra por palavra. Nesse sentido,


Zumthor (1997) esclarece que o texto oral é realizado sem rascunhos – ou melhor dizendo, “sem borracha” –, por mais que cantadores populares possam ensaiar e aprimorar seus versos antes das apresentações. O momento onde o texto toma forma é circunstancial. Por isso mesmo, é certo dizer que nenhuma performance é igual a outra. (LÚCIO; CUNHA, 2017, p. 4701).

 

A consignação por escrito da Literatura Oral é polêmica. Se, por um lado, evita que muitas de suas manifestações sumam, se extinguam, por outro, a transcrição representa uma apropriaçao por parte do transcritor, que passa a ser autor (lembra o caso dos Irmãos Grimm?); engessa ou deturpa uma versão de algo que, por ser oral e contado por diferentes pessoas, é naturalmente modificável no tempo e no espaço; além disso, altera as próprias características da fala popular.

No entanto, ainda que oralidade e escrita tenham diferenças muito evidentes, devem ser vistas em suas peculiaridades, mas não como coisas opostas, porque comumente se entrecruzam. SOUZA (20??) demonstra a defesa dessa ideia por nosso sistema escolar:


Na alfabetização, tais entrecruzamentos [entre oralidade e escrita] se revelam importantes. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) dos anos iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, aproximam o ensino da escrita da oralidade, ao sugerir a valorização da cultura oral como forma de iniciar o aluno no mundo da escrita, apresentando perspectivas teórico-metodológicas que envolvem a narração e a escuta de histórias, o levantamento de narrativas que circulam nas famílias e o trabalho com gêneros orais, tais como cordel, canções e parlendas.

 

Entendendo “literatura” e mesmo “texto” como algo mais amplo, neles podem se enquadrar os quadrinhos, o cinema, as novelas de TV, as canções populares, o repente, o improviso, o graffiti e o pixo nos muros (Cf. LÚCIO; CUNHA, 2017) e  - por que não? - os Storytellings do mundo institucional e corporativo. É preciso considerar, inclusive, o caso de algumas obras de arte não autônomas que dependem de significados externos, escritos, que completem ou traduzam significados (WILLIAMS, 2007, p. 259) - é o caso de algumas pinturas, filmes, músicas, por exemplo. Não sendo primariamente literárias, secundariamente podem ser lidas pelo viés literário.

Por tudo que foi dito, Literatura Oral é, sim, literatura. E a ela deve ser reconhecido o valor que se dá a algo escasso, em vias de desaparecimento caso não continue a ser repassado. Se pensarmos pos este viés, em muitos casos a maioria das narrativas orais tradicionais são muito mais preciosas do que as escritas. Aquelas foram construídas por gerações (nesse sentido são coletivas) e continuam vivas, se transformando um pouco a cada recontagem (por esta ótica, tem algo do gênero dramático, dependem de uma certa performance do contador). Já as escritas, viraram mercadoria corrente e perene, abundam. Têm mutio valor, mas é preciso que as pessoas, inclusive os literatos e as universidades, confiram à boa literatura oral o lugar que merece, junto à literatura com “L” maiúsculo, posto quase exclusivamente conferido aos cânones escritos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LITERATURA ORAL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Literatura_oral&oldid=59490160>. Acesso em: 9 out. 2020.

 LÚCIO, Ana Cristina Marinho; CUNHA, Thiago da Silveira Cunha. Literatura e outras linguagens: exemplo do testemunho de pichadores em João Pessoa. XV Congresso Internacional da Abralic. Universidade Federal da Paraíba. 2017. Disponível em: <https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522243505.pdf> . Acesso em 09 out. 2020.

SOUZA, Josiley Francisco de. Literatura Oral. In: Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita para educadores. Glossário Ceale. Faculdade de Educação da UFMG. 20??. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/literatura-oral#:~:text=Literatura%20oral%20%C3%A9%20uma%20express%C3%A3o,modo%20diferente%20do%20falar%20cotidiano> . Acesso em 09 out. 2020.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; traduçãode Sandra Guardini Vasconcelos, - São Paulo : Boitempo, 2007. 464 p.

 


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