O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Um turbante alvo-escarlate


 

Um turbante alvo-escarlate

 

Juliano Barreto Rodrigues


Salto imortal. Nem bem salto, sim queda. O cão tarótico do Louco, íntimo, de casa, amigo de brincar, surtou e enlouqueceu, ele! Num lapso, sem lembrar de como e quê, estava eu deitado na relvinha peniquenta, querendo respirar mas o cachorro em cima. Eu, quatro anos; ele, bicho feito. Sou forte: parecendo muito mais do que criança, meu pontapé fincou o peito do au-au com tanta força que ele voou para o alto, ganiu. Voltou para minha cabeça. De repente, eu em pé, subindo degraus e vendo, surpreso, gotas grandes de sangue no chão. De onde vinham? De quem? Mamãe aparece na porta, apressada. Branca de susto, com um pano de prato na mão, corre para mim. Eu, colo, mãe correndo comigo nos braços, pano de prato na minha cabeça (agora turbante branco-rubro). Avenida. Sozinha, mãe grita para alguém parar um carro. No hospital, me põem para soprar um balão. Acordo, nem sei quando, em uma caixa acrílica. Eu choro, não consigo ver: tudo embaçado e vermelho. Só sangue que escorreu nos olhos. Passo os dedos na cabeça, sinto crateras, texturas monstruosas. Espelho: Tinham raspado só metade da minha cabeça, na outra metade muita costura com linha preta (susto para uma criança). Meus primeiros muitos pontos. Internação não desejo a ninguém, quero casa. Liberado, hepatite, dias sem brincar, sem escola, sem tia Belinha. Matar o cachorro? O meu Duque? De jeito nenhum. Mais um milímetro da mordida na têmpora, eu tinha ido. Não fui. Ele também não iria. Vida normal... Daí uns dias, Duque, pastor alemão, acostumado ao gosto de cabeça infantil, pega meu irmão mais novo. Mais pontos na cabeça, dias de hospital, hepatite na saída. Antes de nós, quase tinha arrancado a bochecha de uma vizinha, também criança. Dessa vez, Duque morto. Daí em diante, todo cachorro que vejo na rua eu adulo, inclusive os grandes. Medo? Os dentes de um já entraram na minha cabeça, entendo um pouco como pensam. Natureza, só isso.




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