A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER: EM TRÊS
ARTIGOS QUE SE COMPLETAM
(RESENHA - por Juliano Barreto Rodrigues)
O opúsculo A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam, de Paulo
Freire, talvez fosse mais propriamente subintitulado “em três discursos que se
completam", já que os dois primeiros capítulos são exatamente isto, discursos
que realizou em congressos. Só o último, tratando de um programa de
alfabetização em São Tomé e Príncipe é, nas palavras do próprio autor, um
artigo.
No primeiro capítulo (discurso escrito
em 1981) o autor parte do particular, da sua relação pessoal com a leitura - de
mundo e da palavra e da palavramundo (o mundo do aprendiz, a experiência e as
palavras que ele reconhece) -, revelando conceitos que perpassam os capítulos
seguintes. O segundo capítulo (discurso feito em 1992) se atém a algo mais
geral, uma introdução sobre a alfabetização de adultos e sobre as bibliotecas
populares. No terceiro capítulo, um artigo propriamente dito (publicado na Harvard Educational Review em 1981),
Paulo Freire trata da experiência particular de um programa governamental de
alfabetização que ele coordenou na República Democrática de São Tomé e
Príncipe, então recém-independente (1975) e, no final, apresenta e discute
partes dos Cadernos de Cultura Popular que foram utilizados no programa.
Partindo do início, Paulo Freire fala
sobre sua relação com o mundo durante a infância e de como a palavra surgiu e
se desenvolveu no seu mundo particular – o aprendizado da fala, a
alfabetização, a escola, a faculdade, a docência – e de como a palavra também
transforma o mundo. Insere o conceito de palavramundo, simbiose entre mundo e
palavra, que representa a ideia de que a leitura de mundo precede à leitura da
palavra, que o aprendizado deve partir das experiências do próprio aprendiz
(que tem que participar ativamente da criação de seu saber), e que a palavra
também transforma o mundo pessoal e coletivo.
O tempo todo Paulo Freire faz referência
àqueles que facilitam a aprendizagem – os pais, professores, colaboradores,
animadores dos Círculos de Cultura etc. – para destacar a importância que têm
no processo. Já explicando o método de alfabetização, emprega várias vezes o
prefixo “re”, em re-encontro, re-ler, re-escrita etc., destacando que as experiências prévias
do aprendiz, suas vivências, devem lastrear todo o método de
ensino-aprendizado.
Paulo Freire destaca sempre o caráter
político da alfabetização e várias vezes afirma que não deve ser uma mera
repetição de bá-bé-bí-bó-bú, que todo aprendizado deve partir da experiência de
mundo do aprendiz e tem que levá-lo a pensar seu próprio fazer, a posição que
ocupa no mundo, as relações de poder em que está inserido, o que precisa fazer
e aprender para pensar criticamente e mudar sua realidade (e da sua comunidade)
para melhor. É o que o autor chama de um dever revolucionário, destacado
principalmente no último capítulo, que trata da educação de um povo que vivia
sob o jugo do colonizador e que, independente, precisava se preparar para se
autogovernar. Assim, o que preconiza, em pouquíssimas palavras, é uma educação
para a consciência e realização de direitos.
A ideia-base do método de alfabetização
de adultos consiste em não achar que o seu objetivo é encher cabeças vazias.
Olhando o aprendizado como processo de conhecimento e de criação, o
alfabetizando é o seu sujeito, participante consciente, sendo o professor
alguém que o ajuda sem, no entanto, tirar dele a criatividade e
responsabilidade pelo aprendizado. Repetindo: o professor não enche algo vazio.
O autor traz uma crítica às comumente
chamadas “lições de leitura” mecânicas. Para ele, a gramática também não
deveria ser reduzida a “tabletes de conhecimentos que devessem ser engolidos
pelos estudantes” (FREIRE, 1989, pág. 11), mas algo que partisse e se
desenvolvesse no decorrer das discussões do que foi lido.
Outro importante conceito tratado é o da
magicização da palavra escrita, consistente em uma equivocada ideia da palavra
escrita como uma palavra salvadora, que alguém recebe passivamente e transforma
magicamente sua vida. O conceito é estendido também para abarcar a ilusão de
pensar que a quantidade de palavras (e leituras) tem, automaticamente, a ver
com a qualidade da leitura, da escrita, da inteligência de quem fala, lê ou
escreve.
Chama muito a atenção o conceito de
Paulo Freire de Biblioteca Popular, mais como um centro cultural ou, como ele
tratou no artigo sobre a alfabetização em São Tomé e Príncipe, “Círculo de
Cultura”: não um local de depósito de livros, mas de atividades de leitura,
teatro, discussão, compartilhamento de saberes, organização política,
repositório de histórias da comunidade. Neste último sentido, é muito
interessante o incentivo à gravação e transcrição das histórias, mitos e
costumes dos membros da comunidade, para formar um arquivo aberto para
manutenção dos conhecimentos ancestrais e, principalmente, fortalecer a
identidade própria do povo e sua coesão.
A narrativa de Paulo Freire condiz
inteiramente com sua ideia de palavramundo, pois, partindo de suas experiências
pessoais (seu mundo), narrando quase sempre em primeira pessoa e numa linguagem
próxima do coloquial, ilustra sua teoria com suas próprias vivências,
ressignificadas, trazendo um texto próximo de quem lê, em uma linguagem que é
mais comum no contador de histórias, no ficcionista, do que nos cientistas da
academia. No seu texto há reminiscências, afetividade, opinião declarada,
coisas que, provavelmente, contribuíram para tornar a obra tão difundida
(porque sua linguagem extrapola o modus corrente
do discurso científico e alcança um espectro maior de leitores, inclusive
externos ao meio acadêmico). Não há linguagem empolada, e isso sem detrimento
do desenvolvimento de uma teoria muito bem estruturada. É difícil até sublinhar
o texto à procura das partes mais importantes, porque quase todos os parágrafos
as têm. Parece que tudo ali é essencial. Se Paulo Freire tivesse caído, ele
próprio, na armadilha da magicização da palavra, engordado e enfeitado seu
texto como costumam fazer os que se afirmam pesquisadores e, mais ainda, os
criadores de uma teoria, talvez já tivesse sido esquecido. Mas sua humildade
intelectual e entrega ao objetivo o levaram a escrever de forma simples, mas
profunda (não simplista), a dizer muito em poucas palavras, a valorizar as
ideias acima do autor. Nesse sentido é, afirmo, um grande artista da palavra.
É fácil crer que nenhum leitor (não
somente os educadores) saia incólume da leitura de A Importância do Ato de Ler.
O texto cativante causa simpatia imediata por induzir, pelo exemplo do autor, à
rememoração dos próprios leitores acerca de suas experiências pessoais,
primeiro de mundo – situação em que o texto passa a ser do leitor também, que
recorda - depois de palavras, clareando coisas que se intui, mas nas quais
nunca se parou para pensar. Também aprofunda enormemente o tema do livro, sem
mistificações de uma escrita acadêmica. Trata-se, sem dúvida de um texto
fundamental - no sentido de texto fundador mesmo -, daqueles que “abrem a
cabeça” de quem lê. Deveria ser leitura e discussão obrigatória já na escola.
Pessoalmente, achei o texto muito
pertinente, principalmente no contexto de precarização da educação no Brasil. Queria
que tudo fosse aplicado aqui. É muito importante a ênfase no aspecto da
formação crítica e política, a educação vista como dever revolucionário de um
povo. Paulo Freire falou muito da educação no e pelo trabalho. Mas até isso é
desvirtuado por governos mal-intencionados, que sob o pretexto do pleno
emprego, dificultado pela falta de qualificação profissional, investem nos
cursos técnicos em detrimento dos cursos de formação critico-humanista. Talvez
esse seja o único ponto do livro que vejo com cautela. Aquela afirmação cabia
perfeitamente para o contexto de São Tomé e Príncipe, recém libertas da
colonização e precisando construir bases econômicas que garantissem seu
progresso material imediato. Já em uma pátria como o Brasil, há muitos séculos
livre do colonizador, até o trabalho pode ser instrumento de alienação. A elite
política quer que se ensine a trabalhar, mas sem pensar e nem, muito menos,
criticar.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
FREIRE,
Paulo. A importância do ato de ler: em
três artigos que se completam / Paulo Freire. – São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1989.
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