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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam - RESENHA

 


A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER: EM TRÊS ARTIGOS QUE SE COMPLETAM

(RESENHA - por Juliano Barreto Rodrigues)


O opúsculo A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam, de Paulo Freire, talvez fosse mais propriamente subintitulado “em três discursos que se completam", já que os dois primeiros capítulos são exatamente isto, discursos que realizou em congressos. Só o último, tratando de um programa de alfabetização em São Tomé e Príncipe é, nas palavras do próprio autor, um artigo.

No primeiro capítulo (discurso escrito em 1981) o autor parte do particular, da sua relação pessoal com a leitura - de mundo e da palavra e da palavramundo (o mundo do aprendiz, a experiência e as palavras que ele reconhece) -, revelando conceitos que perpassam os capítulos seguintes. O segundo capítulo (discurso feito em 1992) se atém a algo mais geral, uma introdução sobre a alfabetização de adultos e sobre as bibliotecas populares. No terceiro capítulo, um artigo propriamente dito (publicado na Harvard Educational Review em 1981), Paulo Freire trata da experiência particular de um programa governamental de alfabetização que ele coordenou na República Democrática de São Tomé e Príncipe, então recém-independente (1975) e, no final, apresenta e discute partes dos Cadernos de Cultura Popular que foram utilizados no programa.

Partindo do início, Paulo Freire fala sobre sua relação com o mundo durante a infância e de como a palavra surgiu e se desenvolveu no seu mundo particular – o aprendizado da fala, a alfabetização, a escola, a faculdade, a docência – e de como a palavra também transforma o mundo. Insere o conceito de palavramundo, simbiose entre mundo e palavra, que representa a ideia de que a leitura de mundo precede à leitura da palavra, que o aprendizado deve partir das experiências do próprio aprendiz (que tem que participar ativamente da criação de seu saber), e que a palavra também transforma o mundo pessoal e coletivo.

O tempo todo Paulo Freire faz referência àqueles que facilitam a aprendizagem – os pais, professores, colaboradores, animadores dos Círculos de Cultura etc. – para destacar a importância que têm no processo. Já explicando o método de alfabetização, emprega várias vezes o prefixo “re”, em re-encontro, re-ler, re-escrita  etc., destacando que as experiências prévias do aprendiz, suas vivências, devem lastrear todo o método de ensino-aprendizado.

Paulo Freire destaca sempre o caráter político da alfabetização e várias vezes afirma que não deve ser uma mera repetição de bá-bé-bí-bó-bú, que todo aprendizado deve partir da experiência de mundo do aprendiz e tem que levá-lo a pensar seu próprio fazer, a posição que ocupa no mundo, as relações de poder em que está inserido, o que precisa fazer e aprender para pensar criticamente e mudar sua realidade (e da sua comunidade) para melhor. É o que o autor chama de um dever revolucionário, destacado principalmente no último capítulo, que trata da educação de um povo que vivia sob o jugo do colonizador e que, independente, precisava se preparar para se autogovernar. Assim, o que preconiza, em pouquíssimas palavras, é uma educação para a consciência e realização de direitos.

A ideia-base do método de alfabetização de adultos consiste em não achar que o seu objetivo é encher cabeças vazias. Olhando o aprendizado como processo de conhecimento e de criação, o alfabetizando é o seu sujeito, participante consciente, sendo o professor alguém que o ajuda sem, no entanto, tirar dele a criatividade e responsabilidade pelo aprendizado. Repetindo: o professor não enche algo vazio.

O autor traz uma crítica às comumente chamadas “lições de leitura” mecânicas. Para ele, a gramática também não deveria ser reduzida a “tabletes de conhecimentos que devessem ser engolidos pelos estudantes” (FREIRE, 1989, pág. 11), mas algo que partisse e se desenvolvesse no decorrer das discussões do que foi lido.

Outro importante conceito tratado é o da magicização da palavra escrita, consistente em uma equivocada ideia da palavra escrita como uma palavra salvadora, que alguém recebe passivamente e transforma magicamente sua vida. O conceito é estendido também para abarcar a ilusão de pensar que a quantidade de palavras (e leituras) tem, automaticamente, a ver com a qualidade da leitura, da escrita, da inteligência de quem fala, lê ou escreve.

Chama muito a atenção o conceito de Paulo Freire de Biblioteca Popular, mais como um centro cultural ou, como ele tratou no artigo sobre a alfabetização em São Tomé e Príncipe, “Círculo de Cultura”: não um local de depósito de livros, mas de atividades de leitura, teatro, discussão, compartilhamento de saberes, organização política, repositório de histórias da comunidade. Neste último sentido, é muito interessante o incentivo à gravação e transcrição das histórias, mitos e costumes dos membros da comunidade, para formar um arquivo aberto para manutenção dos conhecimentos ancestrais e, principalmente, fortalecer a identidade própria do povo e sua coesão.

A narrativa de Paulo Freire condiz inteiramente com sua ideia de palavramundo, pois, partindo de suas experiências pessoais (seu mundo), narrando quase sempre em primeira pessoa e numa linguagem próxima do coloquial, ilustra sua teoria com suas próprias vivências, ressignificadas, trazendo um texto próximo de quem lê, em uma linguagem que é mais comum no contador de histórias, no ficcionista, do que nos cientistas da academia. No seu texto há reminiscências, afetividade, opinião declarada, coisas que, provavelmente, contribuíram para tornar a obra tão difundida (porque sua linguagem extrapola o modus corrente do discurso científico e alcança um espectro maior de leitores, inclusive externos ao meio acadêmico). Não há linguagem empolada, e isso sem detrimento do desenvolvimento de uma teoria muito bem estruturada. É difícil até sublinhar o texto à procura das partes mais importantes, porque quase todos os parágrafos as têm. Parece que tudo ali é essencial. Se Paulo Freire tivesse caído, ele próprio, na armadilha da magicização da palavra, engordado e enfeitado seu texto como costumam fazer os que se afirmam pesquisadores e, mais ainda, os criadores de uma teoria, talvez já tivesse sido esquecido. Mas sua humildade intelectual e entrega ao objetivo o levaram a escrever de forma simples, mas profunda (não simplista), a dizer muito em poucas palavras, a valorizar as ideias acima do autor. Nesse sentido é, afirmo, um grande artista da palavra.

É fácil crer que nenhum leitor (não somente os educadores) saia incólume da leitura de A Importância do Ato de Ler. O texto cativante causa simpatia imediata por induzir, pelo exemplo do autor, à rememoração dos próprios leitores acerca de suas experiências pessoais, primeiro de mundo – situação em que o texto passa a ser do leitor também, que recorda - depois de palavras, clareando coisas que se intui, mas nas quais nunca se parou para pensar. Também aprofunda enormemente o tema do livro, sem mistificações de uma escrita acadêmica. Trata-se, sem dúvida de um texto fundamental - no sentido de texto fundador mesmo -, daqueles que “abrem a cabeça” de quem lê. Deveria ser leitura e discussão obrigatória já na escola.

Pessoalmente, achei o texto muito pertinente, principalmente no contexto de precarização da educação no Brasil. Queria que tudo fosse aplicado aqui. É muito importante a ênfase no aspecto da formação crítica e política, a educação vista como dever revolucionário de um povo. Paulo Freire falou muito da educação no e pelo trabalho. Mas até isso é desvirtuado por governos mal-intencionados, que sob o pretexto do pleno emprego, dificultado pela falta de qualificação profissional, investem nos cursos técnicos em detrimento dos cursos de formação critico-humanista. Talvez esse seja o único ponto do livro que vejo com cautela. Aquela afirmação cabia perfeitamente para o contexto de São Tomé e Príncipe, recém libertas da colonização e precisando construir bases econômicas que garantissem seu progresso material imediato. Já em uma pátria como o Brasil, há muitos séculos livre do colonizador, até o trabalho pode ser instrumento de alienação. A elite política quer que se ensine a trabalhar, mas sem pensar e nem, muito menos, criticar.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam / Paulo Freire. – São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

 


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