O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Memorial de Leitura


DO MUNDO À PALAVRA, DA PALAVRA AO MUNDO: PALAVRAMUNDO

(Memorial de Leitura)

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

O mundo de uma criança é mágico, o espaço parece enorme, o tempo... algo que os adultos inventam, todas as coisas a serem descobertas. É um universo das primeiras vezes. Ainda trago em mim um pouco daquele jeito de ler a realidade. Falando em leitura, de mundo e de palavras, faço aqui um relato de memórias em que recorto algumas gostosas lembranças de leitura de mundo, daquelas vinculadas às palavras (ditas, lidas, escritas), lembranças que vêm de supetão assim que penso nessa relação.

Era uma vez...

Sol alto, cheiro de poeira, o caminho de terra da subida ao morro tinha uma cruz enorme de madeira marcando a chegada a algum lugar. De repente, o amplo mundo se abriu para um mundo menor, eu estava dentro de um barraco de lona preta, sentado num banquinho colocado em frente a um altar. No meio do dia estava escuro. A benzedeira dizia uma oração e fazia referência à palavra “soldado”, pertinente a santo ou orixá. A cena é a minha lembrança fundadora. Tinha dois anos de idade. Ali, junto daquela experiência de mundo, vivi a experiência de transcendência extramundo da fé e a impressão de uma palavra. Aquilo repercutiu, dali para frente, em minha vida.

Nasceu uma dupla curiosidade, em relação ao que se pode ver e ao que se pode imaginar. O caminho da satisfação de ambas parecia ter as palavras como chave: Tudo que via e sentia eu perguntava aos meus pais o que era; tudo que eu não via, mas imaginava, eu tinha a impressão que um objeto mágico, o livro, escondia.

Na minha casa de infância havia um cesto, tipo Moisés, no meio do chão da sala. Em vez de carregar um menino, era cheio de livrinhos Sabrina, alguns thrillers policiais e suspenses de Alfred Hitchcock (estes, com suas caveiras, impressionavam mais). De forma que, eu pequenino, tomava os livros por brinquedos, tanto como o pé de amora do quintal ou as outras coisas do meu mundo familiar.

Ir para a escola me aproximava da chave do objeto mágico. Lembro bem de me debruçar na janela do carro de meu pai e, enquanto ele dirigia, eu conseguir ler as primeiras placas e letreiros da minha vida. Me senti crescido, dono do mundo. Eu já podia participar do segredo, aprender sobre tudo o que eu quisesse.

O primeiro livrinho que me lembro de ter lido foi Os três irmãos, de Vicente Guimarães. Nele, os irmãos puderam fazer pedidos, a serem realizados magicamente, e um pediu força, outro riqueza, outro sabedoria. Este, com o qual me identifiquei, recebeu um livro em que podia ler sobre qualquer coisa que quisesse aprender. Passei a procurar por um livro assim.

Era uma criança de conjunto habitacional, atenta a tudo, pés quase sempre descalços, estava sempre agarrado aos cachorros, gatos, patos, papagaios e outros bichos. Falava muito – as palavras sempre foram diversão – e, quando não estava falando, estava assoviando. Perguntava muito, mas como sempre acreditei em mistérios, buscava informações que as pessoas perto de mim não podiam dar.

Pré-adolescente, descobri os livros de parapsicologia. Meus pais tiveram a sensibilidade de não podarem aquela preferência peculiar, que me aproximou tanto da leitura (não deste mundo, mas de um tal “além”). Mais colecionava do que lia efetivamente, mas a relação com os livros se firmou ali. Trocava livros nos sebos e implorava à minha mãe o dinheiro para outros. Aprendiz de violão, uma vez encasquetei com um livro chamado, salvo engano, Da vida, apenas um violão. Insisti tanto que minha mãe se dispôs a ver o livro e, talvez, comprar para mim. Quando ela pegou o livro e leu a sinopse viu que o violão a que o título se referia era uma mulher lasciva. Era literatura adulta. Ela ficou brava comigo e, até hoje, rio daquela minha ingenuidade.

A escola teve pouca influência na leitura de ficção. Isso veio de casa, vendo minha mãe sempre sentada a devorar livros e livros, enquanto fumava. Às vezes nem nos ouvia quando a chamávamos. Com meu pai, eu e meu irmão tínhamos as ajudas com as tarefas escolares. De forma que, tanto para as leituras de fruição quanto as utilitárias, as maiores influências estavam em nosso círculo afetivo. Vô Antônio tinha um armário de livros e discos clássicos que era um parque dos sonhos para mim. Vó Ana lia jornais e era atualizadíssima.

Aos onze, bem por acaso, minha relação com a palavra ganhou um salto radical. Descobri inúmeros poemas de minha mãe e um novo universo se abriu para mim. Ela havia escrito aquilo! Então, ela escrevia e eu nem sabia. Menos ainda sabia que era possível falar do que estava dentro, de sentimentos. Se ela pôde, eu também poderia. Escrevi meu primeiro poema. Foi demais, incrível: eu punha para fora e, quando lia, revia o que sentia e processava melhor. Era como se conversasse comigo mesmo. Daí surgiu a experiência da escrita, não daquela escrita protocolar e obrigatória da escola, mas a escrita por prazer. Apreendi a palavramundo que me representava e passei a querer ampliá-la, para ampliar minhas possibilidades e experiências.

Como lia e escrevia bem, meus pais queriam que fizesse faculdade de Jornalismo. Tomei outro rumo, acabei me formando em Direito. Tal formação me deu contato com algo que eu chamo de “a palavra concreta”, ou “a concreção da palavra”: nos textos jurídicos uma vírgula errada, uma palavrinha mal-empregada podem significar a perda da liberdade de um cliente, um prejuízo financeiro etc.; um “cumpra-se” de um juiz tem o poder de movimentar instituições inteiras e mudar definitivamente a vida das pessoas. Aprendi a ter um cuidado imenso com a exatidão da palavra dita, mais ainda com a escrita (que permanece), e com suas consequências. A faculdade de Direito foi, dentre outras coisas, uma formação em escrita, teve (e tem) um valor inestimável para mim.

Toda a minha história de vida e a minha leitura de mundo estão vinculadas às palavras, seja representando, participando ou transformando cada coisa e cada vivência. Lembro-me de dois episódios em que as palavras, os livros, facilitaram muito a passagem de momentos difíceis: após um acidente, que me deixou sem andar por meses e com dores intensas, a leitura de livros sobre julgamentos famosos me fez passar por tudo de maneira muito mais leve; me lembro também, com prazer mesmo, do período em que eu levava todos os dias minha esposa para fazer fisioterapia para a recuperação de uma cirurgia de joelho e eu ficava na sala de espera lendo A Sombra do Vento, de Carlos Ruíz Zafón e, depois, Max Perkins, um editor de gênios, de A. Scott Berg. O que era para ser sacrificante foi uma oportunidade deliciosa de leitura, da qual tenho boas recordações até hoje.

Sou daqueles que se expressa muito melhor por escrito do que falando. E sempre achei que o que se imagina, no caso de interferir de alguma forma na realidade, passa a ser também, um tanto, realidade. Assim, já meio cansado da escrita concreta do Direito e do estilo seco da academia, pendi para a ficção. Gosto de ler e de escrever ficção porque acredito que aquilo que alguém imagina e escreve, mesmo quando invenção pura, transforma a realidade de quem lê, transforma sua forma de pensar, de agir e de reagir no mundo. Sendo assim, se as pessoas passam a agir, produzir ou destruir, influenciadas pelo que leram, então a ficção participa no mundo dito real, tendo, como eu já disse, sua parcela de realidade.

Meu tio disse um dia, comentando comigo alguma coisa que tinha lido em meu blog: “quem dera eu conseguisse expressar assim, por escrito, o que eu penso e sinto”. Isso teria mudado a realidade interna dele. Percebi que, o que eu faço naturalmente, tem um valor enorme, do qual eu não me dava conta. Interessante que isso nasceu lá atrás, do exemplo obtido nos poemas da minha mãe. Se meu tio houvesse tido o mesmo tipo de acesso e de exemplo, mediado pela ligação afetiva, talvez a relação que tem com sua palavramundo pudesse ser hoje diferente, maior e mais proveitosa para ele e para quem pudesse ler o que ele deixasse por escrito.

Reverencio o mundo, que deu-se a mim pelos sentidos e pela palavra. Reverencio a palavra, que me foi dada pelo mundo e que o transforma.

 

 

 

 

 

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