DO MUNDO À PALAVRA, DA
PALAVRA AO MUNDO: PALAVRAMUNDO
(Memorial de Leitura)
Juliano Barreto Rodrigues
O mundo de uma criança é mágico, o espaço parece enorme, o
tempo... algo que os adultos inventam, todas as coisas a serem descobertas. É
um universo das primeiras vezes. Ainda trago em mim um pouco daquele jeito de
ler a realidade. Falando em leitura, de mundo e de palavras, faço aqui um
relato de memórias em que recorto algumas gostosas lembranças de leitura de
mundo, daquelas vinculadas às palavras (ditas, lidas, escritas), lembranças que
vêm de supetão assim que penso nessa relação.
Era uma vez...
Sol alto, cheiro de poeira, o caminho de terra da subida ao morro
tinha uma cruz enorme de madeira marcando a chegada a algum lugar. De repente,
o amplo mundo se abriu para um mundo menor, eu estava dentro de um barraco de
lona preta, sentado num banquinho colocado em frente a um altar. No meio do dia
estava escuro. A benzedeira dizia uma oração e fazia referência à palavra
“soldado”, pertinente a santo ou orixá. A cena é a minha lembrança fundadora.
Tinha dois anos de idade. Ali, junto daquela experiência de mundo, vivi a
experiência de transcendência extramundo da fé e a impressão de uma palavra.
Aquilo repercutiu, dali para frente, em minha vida.
Nasceu uma dupla curiosidade, em relação ao que se pode ver e ao
que se pode imaginar. O caminho da satisfação de ambas parecia ter as palavras como
chave: Tudo que via e sentia eu perguntava aos meus pais o que era; tudo que eu
não via, mas imaginava, eu tinha a impressão que um objeto mágico, o livro,
escondia.
Na minha casa de infância havia um cesto, tipo Moisés, no meio do
chão da sala. Em vez de carregar um menino, era cheio de livrinhos Sabrina,
alguns thrillers policiais e suspenses
de Alfred Hitchcock (estes, com suas caveiras, impressionavam mais). De forma
que, eu pequenino, tomava os livros por brinquedos, tanto como o pé de amora do
quintal ou as outras coisas do meu mundo familiar.
Ir para a escola me aproximava da chave do objeto mágico. Lembro
bem de me debruçar na janela do carro de meu pai e, enquanto ele dirigia, eu
conseguir ler as primeiras placas e letreiros da minha vida. Me senti crescido,
dono do mundo. Eu já podia participar do segredo, aprender sobre tudo o que eu
quisesse.
O primeiro livrinho que me lembro de ter lido foi Os três irmãos, de Vicente Guimarães.
Nele, os irmãos puderam fazer pedidos, a serem realizados magicamente, e um
pediu força, outro riqueza, outro sabedoria. Este, com o qual me identifiquei,
recebeu um livro em que podia ler sobre qualquer coisa que quisesse aprender. Passei
a procurar por um livro assim.
Era uma criança de conjunto habitacional, atenta a tudo, pés quase
sempre descalços, estava sempre agarrado aos cachorros, gatos, patos, papagaios
e outros bichos. Falava muito – as palavras sempre foram diversão – e, quando
não estava falando, estava assoviando. Perguntava muito, mas como sempre
acreditei em mistérios, buscava informações que as pessoas perto de mim não
podiam dar.
Pré-adolescente, descobri os livros de parapsicologia. Meus pais
tiveram a sensibilidade de não podarem aquela preferência peculiar, que me aproximou
tanto da leitura (não deste mundo, mas de um tal “além”). Mais colecionava do
que lia efetivamente, mas a relação com os livros se firmou ali. Trocava livros
nos sebos e implorava à minha mãe o dinheiro para outros. Aprendiz de violão,
uma vez encasquetei com um livro chamado, salvo engano, Da vida, apenas um violão. Insisti tanto que minha mãe se dispôs a
ver o livro e, talvez, comprar para mim. Quando ela pegou o livro e leu a
sinopse viu que o violão a que o título se referia era uma mulher lasciva. Era
literatura adulta. Ela ficou brava comigo e, até hoje, rio daquela minha
ingenuidade.
A escola teve pouca influência na leitura de ficção. Isso veio de
casa, vendo minha mãe sempre sentada a devorar livros e livros, enquanto
fumava. Às vezes nem nos ouvia quando a chamávamos. Com meu pai, eu e meu irmão
tínhamos as ajudas com as tarefas escolares. De forma que, tanto para as
leituras de fruição quanto as utilitárias, as maiores influências estavam em
nosso círculo afetivo. Vô Antônio tinha um armário de livros e discos clássicos
que era um parque dos sonhos para mim. Vó Ana lia jornais e era
atualizadíssima.
Aos onze, bem por acaso, minha relação com a palavra ganhou um
salto radical. Descobri inúmeros poemas de minha mãe e um novo universo se
abriu para mim. Ela havia escrito aquilo! Então, ela escrevia e eu nem sabia.
Menos ainda sabia que era possível falar do que estava dentro, de sentimentos.
Se ela pôde, eu também poderia. Escrevi meu primeiro poema. Foi demais,
incrível: eu punha para fora e, quando lia, revia o que sentia e processava
melhor. Era como se conversasse comigo mesmo. Daí surgiu a experiência da
escrita, não daquela escrita protocolar e obrigatória da escola, mas a escrita por
prazer. Apreendi a palavramundo que me representava e passei a querer
ampliá-la, para ampliar minhas possibilidades e experiências.
Como lia e escrevia bem, meus pais queriam que fizesse faculdade
de Jornalismo. Tomei outro rumo, acabei me formando em Direito. Tal formação me
deu contato com algo que eu chamo de “a palavra concreta”, ou “a concreção da
palavra”: nos textos jurídicos uma vírgula errada, uma palavrinha mal-empregada
podem significar a perda da liberdade de um cliente, um prejuízo financeiro
etc.; um “cumpra-se” de um juiz tem o poder de movimentar instituições inteiras
e mudar definitivamente a vida das pessoas. Aprendi a ter um cuidado imenso com
a exatidão da palavra dita, mais ainda com a escrita (que permanece), e com
suas consequências. A faculdade de Direito foi, dentre outras coisas, uma
formação em escrita, teve (e tem) um valor inestimável para mim.
Toda a minha história de vida e a minha leitura de mundo estão
vinculadas às palavras, seja representando, participando ou transformando cada
coisa e cada vivência. Lembro-me de dois episódios em que as palavras, os
livros, facilitaram muito a passagem de momentos difíceis: após um acidente,
que me deixou sem andar por meses e com dores intensas, a leitura de livros
sobre julgamentos famosos me fez passar por tudo de maneira muito mais leve; me
lembro também, com prazer mesmo, do período em que eu levava todos os dias
minha esposa para fazer fisioterapia para a recuperação de uma cirurgia de
joelho e eu ficava na sala de espera lendo A
Sombra do Vento, de Carlos Ruíz Zafón e, depois, Max Perkins, um editor de gênios, de A. Scott Berg. O que era para
ser sacrificante foi uma oportunidade deliciosa de leitura, da qual tenho boas
recordações até hoje.
Sou daqueles que se expressa muito melhor por escrito do que
falando. E sempre achei que o que se imagina, no caso de interferir de alguma
forma na realidade, passa a ser também, um tanto, realidade. Assim, já meio
cansado da escrita concreta do Direito e do estilo seco da academia, pendi para
a ficção. Gosto de ler e de escrever ficção porque acredito que aquilo que
alguém imagina e escreve, mesmo quando invenção pura, transforma a realidade de
quem lê, transforma sua forma de pensar, de agir e de reagir no mundo. Sendo
assim, se as pessoas passam a agir, produzir ou destruir, influenciadas pelo
que leram, então a ficção participa no mundo dito real, tendo, como eu já
disse, sua parcela de realidade.
Meu tio disse um dia, comentando comigo alguma coisa que tinha
lido em meu blog: “quem dera eu conseguisse expressar assim, por escrito, o que
eu penso e sinto”. Isso teria mudado a realidade interna dele. Percebi que, o
que eu faço naturalmente, tem um valor enorme, do qual eu não me dava conta.
Interessante que isso nasceu lá atrás, do exemplo obtido nos poemas da minha
mãe. Se meu tio houvesse tido o mesmo tipo de acesso e de exemplo, mediado pela
ligação afetiva, talvez a relação que tem com sua palavramundo pudesse ser hoje
diferente, maior e mais proveitosa para ele e para quem pudesse ler o que ele
deixasse por escrito.
Reverencio o mundo, que deu-se a mim pelos sentidos e pela
palavra. Reverencio a palavra, que me foi dada pelo mundo e que o transforma.
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