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segunda-feira, 15 de julho de 2019

O último Pai do Segredo e Guardião de Almas

Agoli-Agbo, 12º rei do reino do Daomé - Foto: Wiki




O último Pai do Segredo e Guardião de Almas



Juliano Barreto Rodrigues



“Vovó Enitióró, conte uma história lá da África para nós?”

Eu, longíssimo da minha terra e tentando trazer um pouquinho de lá para falar para as meninas, olhei para os lados e vi o livro no criado mudo. Me lembrei, na hora, de algo que tinha ouvido, há muitos e muitos anos.

“Peguem suas esteiras e sentem-se, filhas. Vou contar uma história antiga, coisa da época do meu tataravô, Babá Ofátibá.

Houve um tempo, na época no Dahomey, hoje parte da República do Benin, em que quem mantinha as tradições, os interditos, a genealogia, as leis, relações de poder, eram também adivinhos e conselheiros dos reis. Uns cultuavam voduns, outros orixás. Os adivinhos que cultuavam orixás eram chamados Babalawôs, os Pais do Segredo. Uma casta respeitadíssima e restrita, fechada em si e muito influente, politicamente.

Todo Pai do Segredo, cioso de sua posição e querendo manter o prestígio de sua família, escolhia um de seus filhos para, desde pequenininho, ir memorizando todo o saber da tradição oral.
A derrocada dos últimos grandes reis tribais africanos, não só do Benin, também dissolveu toda essa rede de influência e memória. Os adivinhos passaram a prestar serviços para quem pagasse, mas sofriam o rancor do povo, que ficava feliz em vê-los destituídos daquilo que consideravam privilégios.

Cada Babá tomou rumo próprio, as Ordens Centenárias a que pertenciam se esvaziaram, eles passaram a lutar contra a pobreza, mas mantinham-se fiéis a toda sua vida de repositórios da tradição. Não sabiam fazer qualquer outra coisa. E eram muito necessários, mas seus descendentes já não queriam a mesma profissão.

Nosso ancestral, o velho Babá Ofátibá, sempre vivera das lembranças alheias, mas de repente estava preso às suas próprias lembranças dos tempos áureos. Seus filhos não quiseram seguir seus passos, à exceção da filha mais velha, Ojú Inú, que com sua doçura e boa memória tinha aprendido muito, embora não pudesse servir como oráculo, função, naquele tempo, exclusiva de homens. O pai contava-lhe tudo - mais por desejo de falar do que para satisfazer a própria curiosidade da filha. Se tranquilizava acreditando que com ela a tradição não se perderia, já que estava velha para se casar e era a mais feia das irmãs. Ficaria para sempre em casa. Enganou-se. A filha se casou com um bom homem de outra tribo e foi embora, levando toda a história de seu povo, de nosso povo.

Ninguém aprendia mais o oráculo, ninguém queria mais ser guardião dos segredos. Mas as famílias importantes tinham, ao menos, seus Guardiães de Almas, mantenedores da memória de seus ancestrais, de seus cultos familiares, de suas histórias. Alguns forçavam um escolhido a aprender, mas era sempre um processo frustrante. Também surgiu uma nova classe de gente, os griots, que por vocação e prestígio social recolhiam aleatoriamente a sabedoria oral a que tinham acesso e se apresentavam, contando histórias, fantasiando, entretendo os povoados. Eram artistas, que viviam de andanças e não tinham compromisso nenhum, além de consigo mesmos.

Um dia apresentaram um jovem branco a Ofátibá, já velho e desgostoso da vida. Seu oráculo já o advertira, e tinha sonhado com um pombo branco pousando-lhe no ombro. Pois bem, o rapaz inglês não falava sua língua, mas tinha um bom tradutor. Vivia-se entre franceses, mas era bem esquisito um inglês por lá. Ele dizia algo sobre as tradições, a necessidade de mantê-las, sobre a importância do conhecimento de gerações e gerações, coisas que soavam deliciosas aos ouvidos do velho. Disse que queria aprender. Foi acolhido feito filho.

Em sete anos, Ofátibá já era o último da última linhagem de grandes babalawôs. E nem era procurado mais para o oráculo, mas só para tirar dúvidas a respeito de títulos e terras. Tinha deixado, na prática, de ser um Guardião do Segredo para ser apenas um Guardião de Almas. Tinha esperanças: fazia oferendas para que as divindades mantivessem a memória na cabeça de mais alguém.

Nesse meio tempo as mulheres, contadoras de histórias no âmbito da casa, também começaram a se reunir para trocar histórias. Como as pessoas não contavam mais com babalawôs, mas ainda precisavam de conselhos e oráculos, recorriam a elas, que passaram a manipular as conchas de búzios para consultar os deuses.

Dois anos mais, o velho Ofátibá tinha enterrado todos os Babás da velha tradição. Contava com seu “filho branco inglês” adotado, para continuá-lo. Sonhava casá-lo com alguém da tribo e mantê-lo sob suas asas. Mas o rapaz foi embora, sem muita cerimônia. O pombo nos ombros do Babá tinha voado.

Nonagenário, ressentido com as pessoas e, principalmente, sentindo ter falhado em manter a memória de seus ancestrais, seus cultos e costumes, Ofátibá se entregava ao próprio tempo, só esperando a morte. Pensava nisso dia e noite, deveria ter obrigado os filhos a aprender, nem que fosse à custa de crueldade. Tinha uma dívida para com seus mais velhos, que já tinham partido para o Orun. Sentia vergonha de seus deuses, que o tinham visto cair e cair, sem deixar quem os cultuasse a altura.

Pouco antes de morrer, Ofátibá recebe a visita do estudante inglês, que chega diferente, em roupas importantes, portando um ar professoral. O Babá o repreende por ter ido embora, pede ao tradutor que lhe transmita as esperanças que tinha em relação ao rapaz, e chora. Então o moço, que já nem era mais tão moço, tira da mala dois grandes volumes e os apresenta ao velho. São o resultado de seu doutorado, a transcrição e análise de todas as histórias ouvidas por anos naquelas tribos. O doutor, empolgado, abriu o livro em uma página aleatória e leu um trecho, que foi traduzido para o Babá. Ofátibá não acredita naquele objeto mágico. Do alto da lembrança de sua grandeza, o antigo babalawô, então reduzido a último Guardião de Almas, vira criança. Sorri encantado, mas logo cai em si e se desilude. Os deuses, provavelmente irritados, tinham encontrado uma solução para a manutenção da tradição, mas que parecia um castigo para os ingratos nas tribos: haviam trocado a mente dos homens, seus ouvidos e bocas, seus corações, por um objeto, que cochichava segredos só para quem conseguisse decifrá-lo. E teve ciúme do seu conhecimento todo, de gerações e gerações, nas mãos dos brancos, que eram os que sabiam ler. Também se preocupou com o engessamento do que estava ali, porque a tradição oral era viva, o que era contado ia se modificando aos poucos, de um contador para outro, que acrescentava algo de sua própria intuição ou reinterpretava, enquanto o escrito era aquilo e aquilo mesmo, quase sem margem para crescer.

O doutor, que ia autografar o livro para Ofátibá, também tem uma revelação e se inquieta. Vê que transpôs para o papel centenas de histórias, de crenças, de receitas, disso e daquilo, mas que mutilou a alma daquilo tudo, que só podia ser efetivamente entendido e sentido do lado de dentro daquela cultura, e transmitido conforme eles recebiam: da boca para o ouvido, da mão que faz para a mão que imita. Saiu de lá sem autografar livro nenhum, menos orgulhoso, menor de ego, mas maior de espírito.

Fato é que Ofátibá morreu dali há dias e, com ele, toda uma forma de pensar. O velho babalawô já se havia ido há muito tempo, mas agora partira o que restara dele, o último Guardião de Almas.”




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