Agoli-Agbo, 12º rei do reino do Daomé - Foto: Wiki
O
último Pai do Segredo e Guardião de Almas
Juliano Barreto Rodrigues
“Vovó Enitióró, conte
uma história lá da África para nós?”
Eu, longíssimo da minha
terra e tentando trazer um pouquinho de lá para falar para as meninas, olhei
para os lados e vi o livro no criado mudo. Me lembrei, na hora, de algo que tinha
ouvido, há muitos e muitos anos.
“Peguem suas esteiras e
sentem-se, filhas. Vou contar uma história antiga, coisa da época do meu
tataravô, Babá Ofátibá.
Houve um tempo, na
época no Dahomey, hoje parte da República do Benin, em que quem mantinha as
tradições, os interditos, a genealogia, as leis, relações de poder, eram também
adivinhos e conselheiros dos reis. Uns cultuavam voduns, outros orixás. Os
adivinhos que cultuavam orixás eram chamados Babalawôs, os Pais do Segredo. Uma
casta respeitadíssima e restrita, fechada em si e muito influente, politicamente.
Todo Pai do Segredo,
cioso de sua posição e querendo manter o prestígio de sua família, escolhia um
de seus filhos para, desde pequenininho, ir memorizando todo o saber da
tradição oral.
A derrocada dos últimos
grandes reis tribais africanos, não só do Benin, também dissolveu toda essa
rede de influência e memória. Os adivinhos passaram a prestar serviços para
quem pagasse, mas sofriam o rancor do povo, que ficava feliz em vê-los
destituídos daquilo que consideravam privilégios.
Cada Babá tomou rumo
próprio, as Ordens Centenárias a que pertenciam se esvaziaram, eles passaram a
lutar contra a pobreza, mas mantinham-se fiéis a toda sua vida de repositórios
da tradição. Não sabiam fazer qualquer outra coisa. E eram muito necessários,
mas seus descendentes já não queriam a mesma profissão.
Nosso ancestral, o
velho Babá Ofátibá, sempre vivera das lembranças alheias, mas de repente estava
preso às suas próprias lembranças dos tempos áureos. Seus filhos não quiseram
seguir seus passos, à exceção da filha mais velha, Ojú Inú, que com sua doçura
e boa memória tinha aprendido muito, embora não pudesse servir como oráculo, função,
naquele tempo, exclusiva de homens. O pai contava-lhe tudo - mais por desejo de
falar do que para satisfazer a própria curiosidade da filha. Se tranquilizava
acreditando que com ela a tradição não se perderia, já que estava velha para se
casar e era a mais feia das irmãs. Ficaria para sempre em casa. Enganou-se. A
filha se casou com um bom homem de outra tribo e foi embora, levando toda a
história de seu povo, de nosso povo.
Ninguém aprendia mais o
oráculo, ninguém queria mais ser guardião dos segredos. Mas as famílias
importantes tinham, ao menos, seus Guardiães de Almas, mantenedores da memória
de seus ancestrais, de seus cultos familiares, de suas histórias. Alguns
forçavam um escolhido a aprender, mas era sempre um processo frustrante. Também
surgiu uma nova classe de gente, os griots, que por vocação e prestígio social
recolhiam aleatoriamente a sabedoria oral a que tinham acesso e se apresentavam,
contando histórias, fantasiando, entretendo os povoados. Eram artistas, que
viviam de andanças e não tinham compromisso nenhum, além de consigo mesmos.
Um dia apresentaram um
jovem branco a Ofátibá, já velho e desgostoso da vida. Seu oráculo já o advertira,
e tinha sonhado com um pombo branco pousando-lhe no ombro. Pois bem, o rapaz
inglês não falava sua língua, mas tinha um bom tradutor. Vivia-se entre
franceses, mas era bem esquisito um inglês por lá. Ele dizia algo sobre as
tradições, a necessidade de mantê-las, sobre a importância do conhecimento de
gerações e gerações, coisas que soavam deliciosas aos ouvidos do velho. Disse
que queria aprender. Foi acolhido feito filho.
Em sete anos, Ofátibá
já era o último da última linhagem de grandes babalawôs. E nem era procurado
mais para o oráculo, mas só para tirar dúvidas a respeito de títulos e terras.
Tinha deixado, na prática, de ser um Guardião do Segredo para ser apenas um
Guardião de Almas. Tinha esperanças: fazia oferendas para que as divindades
mantivessem a memória na cabeça de mais alguém.
Nesse meio tempo as
mulheres, contadoras de histórias no âmbito da casa, também começaram a se
reunir para trocar histórias. Como as pessoas não contavam mais com babalawôs,
mas ainda precisavam de conselhos e oráculos, recorriam a elas, que passaram a
manipular as conchas de búzios para consultar os deuses.
Dois anos mais, o velho
Ofátibá tinha enterrado todos os Babás da velha tradição. Contava com seu
“filho branco inglês” adotado, para continuá-lo. Sonhava casá-lo com alguém da
tribo e mantê-lo sob suas asas. Mas o rapaz foi embora, sem muita cerimônia. O
pombo nos ombros do Babá tinha voado.
Nonagenário, ressentido
com as pessoas e, principalmente, sentindo ter falhado em manter a memória de
seus ancestrais, seus cultos e costumes, Ofátibá se entregava ao próprio tempo,
só esperando a morte. Pensava nisso dia e noite, deveria ter obrigado os filhos
a aprender, nem que fosse à custa de crueldade. Tinha uma dívida para com seus
mais velhos, que já tinham partido para o Orun. Sentia vergonha de seus deuses,
que o tinham visto cair e cair, sem deixar quem os cultuasse a altura.
Pouco antes de morrer,
Ofátibá recebe a visita do estudante inglês, que chega diferente, em roupas
importantes, portando um ar professoral. O Babá o repreende por ter ido embora,
pede ao tradutor que lhe transmita as esperanças que tinha em relação ao rapaz,
e chora. Então o moço, que já nem era mais tão moço, tira da mala dois grandes
volumes e os apresenta ao velho. São o resultado de seu doutorado, a
transcrição e análise de todas as histórias ouvidas por anos naquelas tribos. O
doutor, empolgado, abriu o livro em uma página aleatória e leu um trecho, que
foi traduzido para o Babá. Ofátibá não acredita naquele objeto mágico. Do alto
da lembrança de sua grandeza, o antigo babalawô, então reduzido a último Guardião
de Almas, vira criança. Sorri encantado, mas logo cai em si e se desilude. Os
deuses, provavelmente irritados, tinham encontrado uma solução para a
manutenção da tradição, mas que parecia um castigo para os ingratos nas tribos:
haviam trocado a mente dos homens, seus ouvidos e bocas, seus corações, por um
objeto, que cochichava segredos só para quem conseguisse decifrá-lo. E teve
ciúme do seu conhecimento todo, de gerações e gerações, nas mãos dos brancos,
que eram os que sabiam ler. Também se preocupou com o engessamento do que
estava ali, porque a tradição oral era viva, o que era contado ia se
modificando aos poucos, de um contador para outro, que acrescentava algo de sua
própria intuição ou reinterpretava, enquanto o escrito era aquilo e aquilo mesmo,
quase sem margem para crescer.
O doutor, que ia
autografar o livro para Ofátibá, também tem uma revelação e se inquieta. Vê que
transpôs para o papel centenas de histórias, de crenças, de receitas, disso e
daquilo, mas que mutilou a alma daquilo tudo, que só podia ser efetivamente entendido
e sentido do lado de dentro daquela cultura, e transmitido conforme eles
recebiam: da boca para o ouvido, da mão que faz para a mão que imita. Saiu de
lá sem autografar livro nenhum, menos orgulhoso, menor de ego, mas maior de
espírito.
Fato é que Ofátibá
morreu dali há dias e, com ele, toda uma forma de pensar. O velho babalawô já se
havia ido há muito tempo, mas agora partira o que restara dele, o último
Guardião de Almas.”
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