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Roseiral ou espinheira?
Juliano Barreto
Rodrigues
Suponhamos que você nunca tenha matado um ser humano: como você explica nunca ter chegado lá?
(Max Frish in “Diário 1966-1971”).
25
de maio de 1968. O doutor Hector Prudêncio me disse que o que eu tenho não tem
cura, que devo durar só seis meses. Meu Deus, o que faço?
Minhas
filhas vão ficar sem mãe. E Fortunato? Somos muito mais do que marido e mulher,
somos feito irmãos gêmeos, uma só alma dividida em duas. Não posso deixá-lo
sozinho. Ele não me deixaria.
[...]
13
de julho, 1968. As meninas estão de férias. Acertei a cabeça de Fortunato com o
martelo dele, enquanto ele lanchava na cozinha. Pensei que fosse mais fácil,
tive que bater muitas vezes enquanto ele estava no chão. Coitado. Mas ele não
me deixaria sozinha neste mundo, fiz o que ele faria por mim. Ele nem imaginava
que estou para morrer. Melhor assim. Enterrei no buraco que pedi para ele fazer
ontem, onde eu disse que iria fazer uma compostagem. Tampei e plantei roseiras.
Ele ficaria feliz.
FOLHA ARAXAENSE
Obituário
O falecimento de
Dona Maria Elvira, acontecido na noite de ontem 27 de janeiro de 1988, deixa a
sociedade araxaense muito consternada. Mãe de duas filhas, ilustre integrante
da Sociedade Eclesiástica Senhora da Alvura. Toda uma vida dedicada à
filantropia, ao aconselhamento e a fé, Dona Maria Elvira, que teve o esposo
provavelmente sequestrado em 1968, dedicou as últimas duas décadas de sua vida
a encontrá-lo e ao serviço do povo de Araxá. O presidente da Câmara de
Vereadores apresentou pesares, anunciou homenagens públicas e disse que a casa
de Dona Maria Elvira, que já funcionava como escola, será transformada em
fundação.
Mamãe foi uma mulher incrível, nos criou praticamente sozinha.
Quando sumiram com o papai eu tinha sete e minha irmã nove. Ela quase morreu de
desgosto. Estava passando por problemas de saúde mas, assim que papai
desapareceu, ela milagrosamente melhorou. O problema é que, como ninguém soube
o que aconteceu com papai, não tinham como aprovar pensão para ela. Ficamos à
mercê da sorte. A igreja, o padre Antônio Amaro, é que nos socorreu. Por pouco
não passamos fome.
O amor dos meus pais não era deste mundo. Viviam grudados,
parece que pensavam a mesma coisa e que conversavam sem falar. Foi um castigo
enorme para a mamãe ter ficado sem meu pai. Acho que só não morreu porque tinha
que nos criar. Ficou traumatizada, com mania de lavar as mãos e obcecada com a
limpeza da cozinha. Mas, tirando o sofrimento dos primeiros meses, posso dizer
que, no final das contas, aquilo foi um importante divisor de águas na vida
dela. Mamãe abraçou a causa social e a fé com muita força, deixou de ser a dona
de casa que era e criou uma obra de referência para todo o povo mineiro. Da dor
dela fez algo para amenizar a dor de muitos. Criou um hospital, uma casa de
repouso, duas escolas, uma biblioteca, a oficina técnica lá em casa, e um monte
de outras benfeitorias. Se não tivesse acontecido algo com papai, nada disso
teria sido criado.
Era uma mulher doce, com uma expressão de meio sorriso, parecendo
uma boneca de porcelana. Acontecesse o que fosse ela estava sempre com a mesma
feição. Sempre escreveu diários, mas nunca pudemos ler. Dizia que era coisa
boba de menina, que tinha vergonha. Até agora, eu e minha irmã nem tínhamos
tido a curiosidade de procurar onde guardava. Como se tornou uma figura pública
– membra honorária da Câmara e da Prefeitura, premiada pela Assembléia
Legislativa do Estado, reconhecida até pelo bispo –, e como nossa casa de
família vai ser desapropriada para se tornar uma fundação com o nome dela, com
um pequeno museu a ser construído no quintal, onde fica o roseiral, nos pediram
para procurar coisas pessoais que refletissem as ideias dela.
Depois de muito procurar, Lídia, minha irmã, que é quem ainda
morava com mamãe, me mandou um recado escrito: “Martinha querida. Encontrei
vinte e sete cadernos escondidos em uma mala velha lá no sótão. São os diários
da mamãe. O último estava no criado mudo dela. Diante das tratativas todas, referentes
à fundação que vão criar e aos procedimentos para a indenização que vão nos
dar, não tive, nem tenho, tempo para ler. Sei que você também não, por causa
dos seus filhos e de seu trabalho. Nem precisa, a gente conhecia bem a mamãe.
Assim, mandei tudo para a comissão da Câmara, que designou um grupo para a
constituição do museu. Vão ler e catalogar tudo, antes da homenagem, que será
daqui dez dias, no dia primeiro de março. Beijos. 20 de fevereiro de 1988.”
Vinte e nove de fevereiro, segunda-feira, dez e quinze da
manhã. Estou atarefadíssima com os preparativos. Lídia me passou um monte de
encargos. A festa será linda, o governador estará presente, alguns deputados
também, além de quase todos os vereadores da cidade. O bispo virá. O telefone começa a tocar sem parar. Grito
para meus filhos atenderem. Marquinhos vem da sala com uma expressão diferente.
--- Mamãe, é lá de uma tal comissão da Câmara. Vá atender,
a pessoa disse que tem... uma bomba?!
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