O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Roseiral ou Espinheira

https://medium.com/@ohcwilliam/remove-the-thorn-get-to-the-heart-of-the-problem-5040806dbde0

Roseiral ou espinheira?


Juliano Barreto Rodrigues


Suponhamos que você nunca tenha matado um ser humano: como você explica nunca ter chegado lá?
(Max Frish in “Diário 1966-1971”).



25 de maio de 1968. O doutor Hector Prudêncio me disse que o que eu tenho não tem cura, que devo durar só seis meses. Meu Deus, o que faço?

Minhas filhas vão ficar sem mãe. E Fortunato? Somos muito mais do que marido e mulher, somos feito irmãos gêmeos, uma só alma dividida em duas. Não posso deixá-lo sozinho. Ele não me deixaria.

[...]

13 de julho, 1968. As meninas estão de férias. Acertei a cabeça de Fortunato com o martelo dele, enquanto ele lanchava na cozinha. Pensei que fosse mais fácil, tive que bater muitas vezes enquanto ele estava no chão. Coitado. Mas ele não me deixaria sozinha neste mundo, fiz o que ele faria por mim. Ele nem imaginava que estou para morrer. Melhor assim. Enterrei no buraco que pedi para ele fazer ontem, onde eu disse que iria fazer uma compostagem. Tampei e plantei roseiras. Ele ficaria feliz.


FOLHA ARAXAENSE

Obituário

O falecimento de Dona Maria Elvira, acontecido na noite de ontem 27 de janeiro de 1988, deixa a sociedade araxaense muito consternada. Mãe de duas filhas, ilustre integrante da Sociedade Eclesiástica Senhora da Alvura. Toda uma vida dedicada à filantropia, ao aconselhamento e a fé, Dona Maria Elvira, que teve o esposo provavelmente sequestrado em 1968, dedicou as últimas duas décadas de sua vida a encontrá-lo e ao serviço do povo de Araxá. O presidente da Câmara de Vereadores apresentou pesares, anunciou homenagens públicas e disse que a casa de Dona Maria Elvira, que já funcionava como escola, será transformada em fundação.


Mamãe foi uma mulher incrível, nos criou praticamente sozinha. Quando sumiram com o papai eu tinha sete e minha irmã nove. Ela quase morreu de desgosto. Estava passando por problemas de saúde mas, assim que papai desapareceu, ela milagrosamente melhorou. O problema é que, como ninguém soube o que aconteceu com papai, não tinham como aprovar pensão para ela. Ficamos à mercê da sorte. A igreja, o padre Antônio Amaro, é que nos socorreu. Por pouco não passamos fome.

O amor dos meus pais não era deste mundo. Viviam grudados, parece que pensavam a mesma coisa e que conversavam sem falar. Foi um castigo enorme para a mamãe ter ficado sem meu pai. Acho que só não morreu porque tinha que nos criar. Ficou traumatizada, com mania de lavar as mãos e obcecada com a limpeza da cozinha. Mas, tirando o sofrimento dos primeiros meses, posso dizer que, no final das contas, aquilo foi um importante divisor de águas na vida dela. Mamãe abraçou a causa social e a fé com muita força, deixou de ser a dona de casa que era e criou uma obra de referência para todo o povo mineiro. Da dor dela fez algo para amenizar a dor de muitos. Criou um hospital, uma casa de repouso, duas escolas, uma biblioteca, a oficina técnica lá em casa, e um monte de outras benfeitorias. Se não tivesse acontecido algo com papai, nada disso teria sido criado.

Era uma mulher doce, com uma expressão de meio sorriso, parecendo uma boneca de porcelana. Acontecesse o que fosse ela estava sempre com a mesma feição. Sempre escreveu diários, mas nunca pudemos ler. Dizia que era coisa boba de menina, que tinha vergonha. Até agora, eu e minha irmã nem tínhamos tido a curiosidade de procurar onde guardava. Como se tornou uma figura pública – membra honorária da Câmara e da Prefeitura, premiada pela Assembléia Legislativa do Estado, reconhecida até pelo bispo –, e como nossa casa de família vai ser desapropriada para se tornar uma fundação com o nome dela, com um pequeno museu a ser construído no quintal, onde fica o roseiral, nos pediram para procurar coisas pessoais que refletissem as ideias dela.

Depois de muito procurar, Lídia, minha irmã, que é quem ainda morava com mamãe, me mandou um recado escrito: “Martinha querida. Encontrei vinte e sete cadernos escondidos em uma mala velha lá no sótão. São os diários da mamãe. O último estava no criado mudo dela. Diante das tratativas todas, referentes à fundação que vão criar e aos procedimentos para a indenização que vão nos dar, não tive, nem tenho, tempo para ler. Sei que você também não, por causa dos seus filhos e de seu trabalho. Nem precisa, a gente conhecia bem a mamãe. Assim, mandei tudo para a comissão da Câmara, que designou um grupo para a constituição do museu. Vão ler e catalogar tudo, antes da homenagem, que será daqui dez dias, no dia primeiro de março. Beijos. 20 de fevereiro de 1988.”

Vinte e nove de fevereiro, segunda-feira, dez e quinze da manhã. Estou atarefadíssima com os preparativos. Lídia me passou um monte de encargos. A festa será linda, o governador estará presente, alguns deputados também, além de quase todos os vereadores da cidade. O bispo virá.  O telefone começa a tocar sem parar. Grito para meus filhos atenderem. Marquinhos vem da sala com uma expressão diferente.

--- Mamãe, é lá de uma tal comissão da Câmara. Vá atender, a pessoa disse que tem... uma bomba?!






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