LALÚ
Juliano Barreto
Rodrigues.
“Ei menino, o que está
fazendo aí?”, perguntei vendo o moleque cavoucando o jardim da porta do
terreiro. “Ôxe, nhanhá, nada não, estava procurando uma batata doce pra comer.”
Lalú chegou assim, numa
segunda-feira cedo, de fins de agosto. Vendo o menino com fome, chamei para
dentro. Tinha doze para treze anos e dizia ter vindo lá de Cachoeira, sozinho.
Achei esquisito demais e, depois de dar de comer, levei para falar com mãe Deinha
de Oxaguiã. Não sei do que falaram, só sei que, quando saíram lá do barracão,
estava decidido que o menino ficaria.
Entrão e curioso feito
ele só, sempre foi sabido e pitaqueiro, metia o dedo em tudo. Bom para falar
até, explicava coisa difícil do jeito mais mastigadinho do mundo, facinho de
entender. Mas quando alguém perguntava de sua família em Cachoeira, ou onde
morava, desconversava ou confundia tanta história que, no fim, o perguntador
saía sem saber mais do que antes.
Engraçado é que, no
salão do candomblé, os novos não podiam sentar em cadeira, nem fazer certas
coisas, mas Lalú andava onde queria, batia tambor, dançava e, quando mãe Deinha
estava cuidando de alguma obrigação por ali, ele sentava no trono dela. Uma
coisa de desacreditar. Remexia até na peneira de búzios da mãe, e já o vi até jogar
para Yaô, sem nunca ter aprendido. Ou será que veio com isso lá de Cachoeira?
Sei lá, o que sei é que não foi feito no terreiro, embora nossa mãe tenha dado
obrigação de Exú nele. No santo, ficou sendo chamado Exú Ómókunrin.
Com uns dois anos da
chegada de Lalú, mãe Deinha foi ao ló, morreu. Foi feita toda a cerimônia de
Axexê, com a ajuda de todos os grandes dos terreiros de Salvador. Todo mundo a
considerava. Dias depois já se falava em sucessão. Uma banda pendia para a mãe
pequena, a Iyá Kekerê Joaninha de Oyá, a outra para a Mayê Cidélia de Oxum,
muito mais nova e filha de sangue de mãe Deinha. O moleque, que se dava com
todo mundo, resolveu por conta própria ajudar e, desobedecendo um tabu, catou a
peneira da mãinha, como ele a chamava e, escondido, jogou os búzios para saber
quem deveria sucedê-la na condução do Ilê. Saiu falando a torto e a direito,
tomou bronca, mas deixou todo o mundo com a pulga atrás da orelha: mãe Deinha,
quando viva, ouvia o moleque. Ele indicou Mayê Cidélia. A mãe pequena, Joaninha
de Oyá, ficou melindrada, começou a destratar o menino. Bateu o pé que a
tradição tinha que ser seguida, que um babalaô de fora tinha que vir ao
terreiro e, sob o testemunho de pais e mães de outras casas, deveria fazer um
jogo para o orixá indicar quem assumiria o posto. Acontecia, às vezes, até de não
ser quem se candidatava para o posto.
Babá Martinho, babalaô
respeitadíssimo, viajado para a África, vaidoso e importante, foi convidado
para presidir a consulta. Ia ser assim: duas iyás fariam seus jogos na presença
do povo do terreiro e das testemunhas das outras casas, e ele daria a palavra
final, só confirmando se fosse unânime ou, se não, fazendo seu jogo.
Data marcada para daí
três meses. Mãe Deinha só podia ser sucedida, efetivamente, com um ano do Axexê.
O moleque começou a dar umas saídas. “Onde você vai, Lalú?”, eu perguntava
todos os dias. “Vou pras bandas do Mercado das Sete Portas”, respondia. Saía de
manhã e voltava só à tardezinha. Dizia que ia ganhar uns trocados. Éramos bem
próximos, me chamava de tia, mas mesmo assim eu nunca soube muito sobre ele.
Achei que estava aprontando, então, um dia pedi para que o seguissem.
Marquinhos disse que Lalú rumou para o rumo oposto ao do mercado, mas que, já
bem longe, deu meia volta e foi para o Sete Portas. Deve ter desconfiado e
mudou o destino, matreiro que era.
Chegou o dia “D”, todos
estavam apreensivos. Como o terreiro estava dividido quase no meio, era certo
que uma das metades ficaria insatisfeita. O povo nem comentava o jogo que o
Lalú tinha feito, embora ele cutucasse de vez em quando. A cerimônia começou,
internamente, de madrugada. Os convidados foram chegando lá pela hora do
almoço. Todos os preceitos estavam sendo seguidos direitinho, coisa bonita de
se ver.
Noca da Pedreira, mãe
de santo da velha geração, rígida, um pouco antipática, mas com uma mão de
búzios respeitadíssima, jogou primeiro. Em onze búzios abertos ela declarou:
“Deu Oyá, a Iyá Kekerê Joaninha deve assumir. Parte do terreiro comemorou só
com os olhos e cutucões de cotovelos uns nos outros.
Mãe Idália de Oxalufã,
senhora doce, conciliadora e avoadinha, mas muito cuidadora das tradições e
conhecida por ter o terreiro com mais filhos naquelas bandas da Bahia, montou
sua linda peneira do lado do poste central do salão. Primeiro fez discurso,
cantou, depois rezou a mojuba do jogo e lançou. Depois de esfregar as mãos, fez
mais um discurso de meia hora, até que babá Martinho interrompeu e ela teve que
dizer, enxugando a testa: “deu Oxê, Oxum fala em cinco búzios. Quem assume é Mayê
Cidélia de Oxum.” Ela estava enrolando não era atoa, sabia que não deveria ser
assim, o melhor é que as duas tivessem visto a mesma resposta, porque agora
quem tinha que decidir era babá Martinho e, quem tivesse o jogo vencido ficaria
com o ego meio abalado.
Já beirando às cinco da
tarde o babá Martinho pega seus búzios, reza a salva e, para o espanto geral,
pede que chamem o filho mais novo do terreiro. Lalú se adianta, de branco alvíssimo,
como era seu costume, super arrumado e todo sorriso, parecendo que já estava
esperando. Babá Martinho diz que o lançamento será feito pelo mais novo e que
ele, babá, só fará a interpretação. A cara de todo mundo estava engraçada. Não
é que o moleque estava no centro das atenções? A Iyá Kekerê pede para falar no
ouvido do babá, mas Mayê Cidélia interrompe, dizendo que é melhor que a
conversa seja a três. Saíram para a camarinha e, por lá, ficaram uma meia hora.
Acredito que devem ter falado no jogo que Lalú tinha feito antes e que a Iyá
Kekerê deva ter levantado suspeita sobre ele, dizendo que era tendencioso. Sei
lá, nunca fiquei sabendo, o fato é que o babá manteve sua decisão. Naquele
calor dos infernos, a gente, já cansada, só queria que aquilo acabasse.
Lalú parecia até mais
alto, orgulhoso que estava. Eu lá me tremendo de nervoso. Ele pegou com toda a
reverência os búzios do babá, esfregou eles nas mãos com toda intimidade – que
já tinha de mexer com os búzios dos outros –, olhou para todo mundo com a maior
cara de santo e lançou: Xangô respondia em doze búzios abertos. Seria preciso
mais uma jogada, para saber qual mãe, ou qual orixá, Xangô indicaria, poderia
até ser outra pessoa além das duas. Antes, não sei por que cargas d’água, se
para aparecer ou porque achou bonito o porte do moleque, ou para torturar mais ainda
quem estava na espera, o babá resolve perguntar para Lalú: “diz aí, menino, o
que você acha que o orixá está dizendo?” Foi a deixa, o menino começou: “está
falando é do senhor, que o senhor precisa parar de comer tanto feijão fradinho,
que está lhe soltando muito o intestino, que o senhor deve olhar mais para
aquele outro filho que o senhor tem com a morena lá de Cruz das Almas e que o
babá tem que usar cozimento de fava de sucupira no pé direito, para acabar com
a dor no Tendão de Aquiles. É esse nome mesmo, não é?” Foi um silêncio geral,
os olhos do babá estavam desse tamanho. Depois de uma engasgada ele falou:
“Quem é você, moleque? De que orixá você é?” Lalú, que não era bobo nem nada,
respondeu seu nome de santo, que já indicava filho de quem era: “Sou Exú
Ómókunrin”. O babalaô ficou olhando para ele um tempo, depois mandou que
jogasse os búzios. Deu um búzio aberto, respondendo Exú. O normal é que se
jogasse novamente até sair Oyá, orixá da Iyá Kekerê, ou Oxum, orixá da Mayê,
mas o fato é que o babá pegou na mão do menino, olhou nos olhos dele e disse:
“Quem deve ocupar o lugar de mãe Deinha?” Então Lalú sai com “conforme eu já
tinha dito pra todo mundo, quem deve tocar o terreiro é a Mayê Cidélia, vi no
jogo de mãe Deinha”. Ouvi uns risinhos e uns resmungos. O lado da Iyá Kekerê
começou um muxoxo, mas o babá interrompeu perguntando se a Iyá aceitava ou
discordava do que foi dito. Ela, que era brava mas muito respeitadora das
coisas de santo, chegou perto do menino com cara ruim, olhou bem nos olhos
dele, pegou em suas mãos e gritou: “Laroiê Exú!” Depois abriu um sorriso e o
abraçou. Tinha acatado. Foi bonito demais. O caso é lembrado até hoje.
Dias depois da festa
catei o moleque zanzando pelo terreiro e o chamei num canto. “Como é que você
fez aquilo, menino tinhoso? Como é que sabia tanta coisa do babá?” Com a cara
mais boa e deslavada ele me respondeu: “Naqueles dias em que saía, não ia pras
Sete Portas, eu ia é pra Federação, onde o babá mora. Lá eu assuntei bastante.”
Depois da minha bronca ele disse: “O que tá certo tá certo, Exú faz o certo até
por linhas tortas.” Só me bastou acreditar.
No dia seguinte à
sucessão, dei falta de Lalú pelo quintal. Como, no outro dia, também não
apareceu, saí perguntando a todo mundo do terreiro. Ninguém sabia do moleque,
então mandei uma yaô lá no bairro da Federação para saber dele. Como o menino
andou por lá muito tempo, era certeza que alguém daria notícia. Ela voltou
encabulada, dizendo que ninguém viu ou ouviu falar de Lalú, nem em alguém com suas
características, por lá. Falou que esteve nos mercados, nas feiras, conversou
com os vigilantes e o povo dos candomblés, com os meninos nas ruas, com
negociantes, os vadios e os donos de botecos, e nada, nem uma noticiazinha. Nunca
mais ficamos sabendo de Lalú. Hoje, lembrando tudo e conhecendo as coisas do
santo, eu me pergunto se ele era gente de verdade, assim de carne e osso, ...ou
não.
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