Resenha literária
OS VESTÍGIOS DO DIA
(de KAZUO ISHIGURO)
Juliano Barreto Rodrigues.
ISHIGURO, Kazuo. Os vestígios do dia,
seguido de “Depois do anoitecer” / Kazuo Ishiguro ; tradução de
José Rubens Siqueira. - 2ª ed. - São Paulo : Companhia das Letras,
2016. 285 págs.
Atravessei Os Vestígios do Dia na
frente de outros livros da minha lista de leitura principalmente
porque a quarta capa indicava que muito seria dito sobre a rotina de
um mordomo inglês da antiga geração, profissão que admiro e sobre
a qual sempre quis saber mais. Quem não se encanta com os modos
ingleses, dos quais o mordomo seja, talvez (e até por exigência
profissional, além de meramente pessoal), o maior representante?
Alguns outros elementos somaram para
aumentar meu interesse no livro: sua apresentação visual, com uma
linda capa ilustrada com a fachada da mansão Darlington Hall; a
elegante pintura marrom dos cortes da frente, da cabeça e do pé do
miolo, que agrega sofisticação e evidencia esmero com a edição
(um chamariz para apaixonados não apenas pelos conteúdos dos
textos, mas também pela arte do objeto livro); as páginas
amareladas, que são minha preferência; um adesivo vermelho pregado
na capa, em que se lê “Premio Nobel 2017”, um atestado, em tese,
da qualidade do autor; a tradução do experiente José Rubens
Siqueira.
O enredo é a história, narrada em
primeira pessoa, da vida profissional do mordomo de uma casa inglesa
de grande prestígio e importância. Neste sentido, o âmbito pessoal
se confunde com o do trabalho. É uma ficção que alcança elementos
de Antropologia Social e Profissiografia, porque trata dos universos
real e simbólico dos mordomos, a relação com sua própria posição
social, a ideia de vocação, a visão que têm da profissão e das
virtudes e qualidades que distinguem aqueles que são modelos de
excelência, os aspectos práticos e também a aura profissional que
emanam, e sua representação social. Tratar isso na ficção permite
uma amplitude muito maior do que uma análise acadêmica, porque a
narrativa pode descer a questões subjetivas, psicológicas, não
meramente descritivas, possibilitando ao leitor imergir no universo
alheio, dentro de tempos e espaços (reais ou imaginários) repletos
de sensações, conflitos, questões íntimas etc., que uma obra de
não-ficção1
provavelmente jamais atingiria.
O livro também é uma história de
amor desencontrado, de relação familiar, de desigualdade social, de
política internacional entreguerras, de ascensão e queda, de
definitividades. Stevens, o narrador personagem, fala do seu
presente, trabalhando como mordomo de Mr. Farraday, na Darlington
Hall, e da viagem de carro que faz para o norte
da Inglaterra, com o intuito de encontrar Miss Kenton, uma governanta
que saiu há anos da mansão para se casar. Remete também ao passado
do protagonista, servindo o antigo proprietário, Lord Darlington,
talvez a pessoa mais relevante em toda sua história pessoal.
Stevens é um homem de comportamento
monocórdio e com apenas um grande mote na vida: se considerar e ser
reconhecido como um grande mordomo. Ele incorpora um ideal,
desenvolve uma confusão indissociável entre sua figura pessoal e a
profissional, e frui o bônus dessa conduta para seu objetivo
profissional, mas também o ônus proporcional na sua vida pessoal,
para a qual não tem qualquer habilidade. O grande mordomo existe, em
detrimento do homem Stevens. Neste sentido, é uma história triste,
de abnegação extrema. Na trama, Stevens não passa por nenhuma
grande desmedida. O mais parecido disso é sua coragem de sair em
viagem da mansão, à procura de Miss Kenton.
A trama se desenvolve sem altos e
baixos. Há episódios interessantes do passado e um conflito
marcante (Cf. pág. 116), quando Mr. Lewis, um americano presente a
uma das conferências extraoficiais na mansão, é confrontado com
Mr. Dupin, o francês que é peça chave nas negociações acerca do
relacionamento entre vencidos e vencedores no pós 1ª Guerra
Mundial. Posso dizer que é o momento mais saboroso do enredo2.
Depois disso, toda a narrativa caminha tranquilamente, intercalando
digressões com reflexões filosóficas e práticas acerca do ofício
de mordomo, das relações entre patrões e subordinados, daqueles
com seus pares... até o nó da história, já no final do livro,
quando finalmente Stevens encontra Miss Kenton e eles têm uma
conversa reveladora. São os dois picos do enredo.
Quando soube que havia uma adaptação
para o cinema (1994), com atores icônicos – Anthony Hopkins, Emma
Thompson, James Fox, Christopher Reeve, Hugh Grant, Peter Vaughan,
Ben Chaplin, Michael Lonsdale – fiquei muito curioso em saber como
a adaptação de um enredo tão sem conflitos poderia dar certo
(levando em conta ainda que comumente o leitor já se decepciona com
a síntese drástica necessariamente feita para a adaptação do
livro para a tela). E, na minha opinião, não deu certo mesmo. O
filme consegue até tornar mais insosso o final, omitindo uma
declaração explícita de Miss Kenton que há no final do livro.
Pior, enfatiza o acessório em detrimento do principal: o livro é o
retrato de uma profissão interessante, isso é que o torna bom. O
resto, neste caso, é só contexto e colorido. No filme mostram
praticamente só esse resto, o acessório. Nem a atuação de Anthony
Hopkins está à altura do personagem do livro.
Então o livro é sem graça? De jeito nenhum. É interessantíssimo,
desde que se leve em conta que o que o torna muito bom é a revelação
dos meandros de uma profissão rara e antiga, muito discreta, com uma
ética de serviço exigente e que está em extinção.
O estilo narrativo é simples e
direto, com poucas comparações e metáforas, não chama a atenção
para si, não se exibe. Isso me lembra a ideia de Beatrice Warde
(1932) sobre uma tipografia invisível, criada para ser funcional mas
o mais sóbria e modesta possível, instrumento de bastidor.
Ampliando o conceito para o texto em si, seria bem aplicado para o
estilo empregado em Os Vestígios do Dia:
um “copo de cristal”, uma escrita invisível, fantasma,
transparente, totalmente a serviço do enredo (com exceção de uma
ou outra deliciosa pérola de construção de frase, do tipo “Camas
desconhecidas raramente se dão bem comigo [...]”). Kazuo Ishiguro
não enfeita e não vai além do necessário nesta obra. O livro é
quase mais curto do que o desejável.
Na página 250 começa um capítulo referente a noite do sexto dia de
viagem. Stevens está em Weymouth e já se passaram dois dias do seu
encontro com Miss Kenton, que só será narrado daí a algumas
páginas, um bem-vindo artifício de escritor, gerador de muita
expectativa. E essa expectativa é aumentada com a apresentação do
progresso lento, passo-a-passo, da conversa que eles têm.
A caracterização dos personagens é
muito boa, principalmente a de Stevens. Ele é um daqueles mordomos
que estamos acostumados a ver em filmes, com seus clássicos “pois
não” e “sinto muito”, empertigados, polidos, “cheios de
dedos”, ciosos das aparências3,
de ouvidos sempre atentos, seres de gostos apurados, no limite entre
a simplicidade e o esnobismo, elegantemente a postos, orgulhosos de
seu status de mordomos
de grandes mansões e servindo a pessoas importantes, com a diferença
que, neste livro, um mordomo é o protagonista, e é apresentado de
uma forma tão verossímil que, me arrisco a dizer, nenhum leitor se
deparará novamente com outro mordomo, na literatura, sem se lembrar
de Stevens.
Estando o protagonista tão bem caracterizado e se mostrando tão
constante em seu modo de ser, chega um momento em que o leitor já
deduz o final. O arco dramático da história não é lá tão
“dramático”: Stevens começa de um jeito, viaja com a
expectativa de mudar alguma coisa, vive um contato mínimo com alguns
sentimentos que ele mesmo não assume, e termina praticamente do
mesmo jeito, apenas reforçando o que já era.
Sentimentalmente, o livro é, de certa forma, uma tragédia íntima,
no sentido do que poderia ter sido e não foi. O leitor experimenta –
eu pelo menos tive – uma catarse diante da solução dada para um
sofrimento inconfessado.
Uma alegoria que resume a ideia que Stevens faz da atividade que
exerce é referida mais de uma vez no texto para tratar da dignidade
do ofício e da “profundidade do profissionalismo”:
[...] certo mordomo [...] viajara com seu patrão para a
Índia e lá servira durante muitos anos, cobrando dos empregados
indianos o mesmo alto padrão que exigia na Inglaterra. Certa tarde,
ele entrou na sala de jantar para conferir se estava tudo em ordem
para a refeição e notou um tigre deitado debaixo da mesa. Com muita
cautela, o mordomo deixou o recinto, tomando o cuidado de fechar as
portas, e foi calmamente para a sala de estar, onde seu patrão
tomava chá com um grupo de visitantes. Com um pigarro polido, chamou
a atenção do patrão, depois sussurrou em seu ouvido: “Sinto
muito, senhor, mas parece que há um tigre na sala de jantar. O
senhor talvez permita que a calibre doze seja utilizada?”.
Segundo a lenda, minutos depois, o anfitrião e seus
convidados ouviram três tiros de espingarda. Quando o mordomo
reapareceu na sala algum tempo depois, para completar os bules de
chá, o patrão perguntou se estava tudo bem.
“Muito obrigado,
senhor”, foi a resposta. “O jantar será servido na hora de
sempre e tenho o prazer de informar que não haverá mais nenhum
vestígio dos acontecimentos recentes”. (pág. 47).
Naquela conferência de 1923, o
episódio entre o americano e o francês a que me referi, Stevens
viveu situações que o ergueram ao patamar do mordomo da história
do “tigre embaixo da mesa”.
Para o mordomo, a mansão é quase
um “ente”, em que gerações se sucedem sob a distinção4
de seu renome, que deve ser preservado. A ambientação, no texto, é
cuidadosa, sem se perder em descrições exageradas. Está quase
sempre relacionada às sensações das personagens a respeito dos
ambientes. Exemplo: quando a sala do mordomo é apresentada, além da
descrição há o comentário sobre a sua sobriedade austera e
opressora; quando o quarto do pai de Stevens é mostrado, chega-se a
afirmar que parece uma cela.
Leitores se identificam com outros
leitores e com livros. Vários momentos das personagens são passados
na biblioteca e, não raro, algumas situações com livros são
referidas. É feita até menção específica à Enciclopédia
Britânica e aos volumes da The
Wonder of England, de Mrs. Jane
Symons, por exemplo.
O primeiro parágrafo do livro é longo e quase não chama a atenção,
gerando apenas curiosidade em saber por que Stevens está preocupado
com a viajem que deseja fazer. Ele fala diretamente ao leitor, num
tom confessional, utilizando expressões coloquiais que aproximam
essa relação – como “devo dizer”, “devo confessar”, “na
verdade”, “lembro bem” –, uma estratégia cativante de
vínculo que continuará a ser utilizada nos parágrafos seguintes,
repletos de expressões do tipo “como você deve saber”, “permita
que eu esclareça”, “por que negar?”, “quero deixar bem
claro” etc. Chama a atenção o
fato dele estar sempre se desculpando ou se explicando, para garantir
que não será mal interpretado.
Artifício interessante para a
verossimilhança é o cuidado de Stevens em não expor alguém que
supostamente existiu, como na passagem “Certa tarde, para sua
própria tristeza e vergonha, Mr. Charles permitiu-se ficar bêbado
na companhia de dois outros hóspedes, cavalheiros
que chamarei apenas de Mr. Smith e Mr. Jones, uma vez que é possível
que ainda sejam lembrados em certos círculos.
[…]. (pág. 48, sem negrito no original).
Por essas e outras, a leitura de Os
Vestígios do Dia vale demais. O
enredo é horizontal, sem acidentes no relevo – como se deduz que
seja a rotina de trabalho de um empregado doméstico – mas não é
chato. O livro é a prova de que uma história não precisa ser cheia
de nós e pirotecnias para ser muito boa (e repare que esta trama só
tem um grande personagem). É uma visão de lupa na realidade de
alguém que exerce uma atividade devocional, quase de clausura.
Trata-se de uma desmistificação. Ler Os Vestígios do Dia
é quase como viajar para um
país exótico. Talvez seja mais adequado dizer que é como viajar
para dentro da vida de alguém exótico.
1
A não ser, talvez, a biografia,
embora muitos tratem tal gênero como ficção.
2
Stevens considera aquela conferência como o momento em que alcançou
sua maturidade na profissão. O livro destaca que os grandes eventos
são cruciais na carreira de um mordomo.
3
Nesse sentido, é muito interessante, por exemplo, a explicação,
na página 152, da importância do estado de polimento da prataria
para se determinar o “padrão” de uma casa.