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REFLEXÕES
ACERCA DA AUTORIA LITERÁRIA
Juliano Barreto Rodrigues
O texto que
ora se apresenta tem tom ensaístico e é pretensioso, por objetivar,
em uma extensão mínima, abranger reflexões e conceitos complexos
sobre autoria e criação literária, apresentados pelo professor
Jamesson nas aulas de Escrita Criativa na Educação Básica,
disciplina da Especialização em Estudos Literários e Ensino de
Literatura, da UFG. O desafio aqui é ser
simples na abordagem sem, no entanto, perder a profundidade
teórico-conceitual.
Suponha que
um deus menor (ou seria melhor dizer o deus de um pequeno mundo?)
surja nos dias de hoje (é o autor ou autora) e tenha poderes para
criar seu herói (protagonista) e várias personagens orbitando ao
redor, umas mais importantes do que outras para os eventos, mas todas
absolutamente essenciais para a completude (acabamento1)
da trama e do arco da personagem principal. Essa analogia nos
permitirá entender mais facilmente alguns conceitos bakhtinianos,
bem como outros pertinentes à questão da autoria literária.
O autor,
aquele deus menor de que falamos, é onipotente e onisciente em
relação à sua criação idealizada (não confundir com a figura do
narrador), mas está inserido em um mundo já criado e em
funcionamento, com regras definidas, portanto, para que sua criação
seja recebida e aceita, ele tem que transitar dentro dos limites
histórico-culturais e ideológicos preexistentes. Em primeiro lugar,
definido o gênero literário do texto em criação, o autor estará
vinculado a uma memória linguística compartilhada por uma
comunidade em que se insere e ao “tesouro técnico” do gênero,
ou seja, àquilo que o caracteriza, o conjunto do que já foi escrito
naquele gênero (que também não é rígido, já que muitas
transgressões também vão sendo mais ou menos aceitas e o gênero
vai se moldando historicamente, sempre). Isso harmoniza perfeitamente
com a concepção bakhtiniana do estético, como resultado "de
um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação
exotópica2
do autor, que está fundada no social e no histórico, nas relações
sociais de que participa o autor" (BRAITH, 2005, pág. 108).
Um nadador
pode fazer o que quiser dentro dos limites do meio aquático que
escolher nadar. Se estiver boiando, não estará nadando. Para nadar
precisa mover-se e se deslocar em alguma direção. Fazendo um
paralelo, alguém alfabetizado também pode fazer o que quiser com as
letras e palavras que
conheça
(primeiro limite). Se juntar letras a esmo não estará escrevendo.
Para escrever, tem que redigir palavras que façam sentido e que,
juntas, indiquem alguma informação. Se convencionou chamar “nadador
profissional” a quem conheça e tenha proficiência em pelo menos
um estilo de nado, respeite suas regras históricas internas (tesouro
técnico) e, ao mesmo tempo, que tente transgredir seus limites para,
nos detalhes, alcançar um diferencial que o ponha à frente do ponto
que seus pares já alcançaram. Um recorde é um original notável,
algo que define um novo paradigma. Sua peculiaridade, os passos para
o avanço, a irrupção da novidade dentro das regras, passam a ser
incorporados ao tesouro técnico de um gênero de nado.
Tudo o que
foi dito no parágrafo anterior é cabível ao autor literário. Sua
liberdade criativa está adstrita às bordas do gênero escolhido, ao
tesouro técnico desse gênero, que representa valores literários
vigentes, os quais, por sua vez, são respostas ao contexto dos
valores de mundo. Mas, aqui também, através da concreção (em
palavras escritas) do seu excedente de visão (Cf. segundo parêntesis
da nota nº 2 e, também, a nota nº 5), há a tendência, mais ou
menos natural, de transgredir os limites do gênero, ampliando-o,
fazendo-o evoluir.
Um exemplo
mais extremo são as obras experimentais, que, de modo semelhante ao
que ocorre nos desfiles de alta-costura, inovam superlativamente para
ultrapassar um statu
quo ante e
estabelecer uma nova tendência a ser seguida. São obras de ruptura,
ou antes de distensão dos limites, feitas como referência para
outros autores, não para o consumidor médio, e podem dar muito
certo ou muito errado. Mas, de toda forma, normalmente não agradam o
público mais amplo. As obras que decorrem delas, ou são por elas
influenciadas, são aceitas após passarem por um certo filtro
cultural moderador, suavizador dos excessos de “arte conceitual”,
para atender aos critérios de uso3.
Um
dos maiores exemplos literários do que estamos falando é o livro
Ulisses,
de
James Joyce. Livro escrito para escritores, experimental, foi um
divisor de águas para o gênero romance. Estabeleceu um marco
indicativo do que era o romance antes e do que seria depois de sua
publicação, tanto que muitos contemporâneos à publicação
chegaram a anunciar, à época, “o fim do romance”. E, pode-se
dizer, é um livro que quase não conta com qualquer empatia da parte
dos leitores não-escritores, leitores de fruição de efeito, nem de
quem não trabalhe com literatura ou, ao menos, a pesquise (críticos
literários, teóricos, acadêmicos etc.). Ulisses
transgrediu
o gênero mas não o destruiu nem fugiu dele, deu-lhe novos rumos.
Voltemos a
falar do autor. Ele é, não apenas um elemento constituinte/criador
mas, talvez mais ainda, um organizador, ou reorganizador, da memória
de passado (histórica, portanto) e de futuro (projeção), que são
complementares mas não completas, porque toda vez que se enuncia,
“resgatam-se os valores já estabelecidos, mas ao invocar os
valores ou significações, concomitantemente, reinventa-se o
sentido, pois o indivíduo contribui com o tom, a expressão e o
desejo do seu projeto discursivo” (GEGe/UFSCar,
2019, pág. ?).
A
partir do momento que considera a obra acabada e a entrega ao leitor,
o autor sai de cena4
ou, pelo menos, deveria. “Rei morto, rei posto”, o universo
imaginário da obra agora pertence a novos deuses, os leitores, que
extrapolam as intenções do autor e ressignificam tudo com suas
próprias capacidades e visões de mundo. Nesse sentido é que
dissemos que a obra só está acabada para o autor.
A
liberdade criativa do autor, sua inspiração (que nasce da
influência externa no seu interior psíquico), são limitadas, em
certa medida, pelas convenções do tesouro técnico do gênero
escolhido, da forma, do momento histórico em que está inserido etc.
A memória de gênero advém dos recursos historicamente utilizados
para a sua escrita. Essa memória do gênero transige para a autoria
(a alimenta).
O
posicionamento axiológico do autor não o impede de extrapolar de
si5
para, por meio da capacidade de representação da arte, viver um
excedente axiológico através da personagem criada. É possível ser
muitos, sentir como muitos, pensar como tantos, dentro da
representação artística, ainda que, para alcançar a
verossimilhança, o autor tenha que ter bebido da anima
mundi,
através de muita vivência, ou observação, ou reflexão, ou, mais
frequentemente, de tudo isso junto.
Partindo
para uma outra reflexão, qual o papel da crítica literária no
processo de evolução dos gêneros? Responder a isso ajudará a
entender mais facilmente algumas forças a que a autoria também está
exposta.
A
crítica segue paralelamente à produção literária, da qual
depende, e funciona como um sistema de freios e contrapesos (mais
explícito do que se pode ver no processo criativo de um autor
literário durante sua criação), puxando para a adequação aos
limites convencionais do gênero ou, então, por outro lado, em tendo
ciência de que algo legitimamente dá um passo além no estado da
arte, convalidando-o, criando e emprestando bases teóricas a
fundamentar e fortalecer o novo, por assim dizer, movimento.
A fortuna crítica
de um autor paradigmático lança luzes sobre o que fez de diferente,
como alcançou determinados efeitos e resultados, como estendeu os
limites do gênero. Esclarece a quem vem em seguida.
A
crítica bem-feita é um “olhar de lupa” sobre aquilo que os
artistas fazem, muitas vezes, por intuição6.
É a racionalização do impulso, a explicação do porquê de algo
ter dado certo ou errado.
Fica
claro, a partir do dito sobre a crítica, que há, tanto para os
críticos quanto para os autores, forças centrípetas (puxando para
a unificação e centralização das ideologias verbais) e
centrífugas (que tendem para a transformações causadas pela
dinâmica da vida real) em tensão, e que a estilística, a
linguística, a teoria literária, a filosofia da linguagem, a
própria crítica, cedem mais para um ou outro lado, sempre dentro do
contexto dos valores de determinado tempo e lugar. O autor também
vive isso de forma evidente, mas o crítico literário é, de certa
forma, o guardião da moderação ou o legitimador da mudança. O
autor literário, como artista, muitas vezes está tão envolvido com
seu existir intelectivo-sensível e com a própria obra, tão
implicado com sua volição emotiva (escolha afetiva) que, às vezes,
cria coisas que só dariam certo em outro contexto, em outro
ambiente, em outra época (exemplos: os livros que um dia foram
proibidos ou desprezados e que hoje fazem muito sucesso de público
e/ou de crítica).
NOTAS
1 Artisticamente, um autor
reorganiza e reconstitui os elementos sensíveis e os abstratos para
compor uma unidade supostamente original. Ele se apropria de uma voz
social que determina, axiologicamente, o todo estético, e procura,
situando-se do lado de fora da criação (Cf. “excedente de visão”,
no corpo da nota de rodapé nº 3), completar o herói, as
personagens – naqueles elementos em que eles não podem se
completar por si só, por não terem consciência de como os outros
os veem. A possibilidade desse acabamento tem a ver com a pretensa
onipotência do deus menor de que falamos, o autor (embora nenhuma
personagem ou obra seja totalmente acabada, já que sempre dependem
de outros “deuses menores” com importância equivalente à do
autor: os leitores)
2 Exotopia é a extra-localização
do autor em relação ao outro, o que justifica expressar, para esse
outro, o olhar único do autor sobre a vida (responder), seu ponto de
vista diferente, seu “excedente de visão” (que é a
possibilidade de um sujeito ver mais de outro sujeito do que este
próprio pode ver, justamente por ser externo a ele, estar numa
posição exotópica). Também pressupõe assumir uma
responsabilidade sobre o que inova e transforma, ou tenta
transformar, na visão do outro. Ao mesmo tempo que o autor é
responsável pelo que faz e diz, o que faz e diz é, de certa forma,
resposta aos elementos presentes em sua vida.
3 “Uso” é uma palavra que
tem que ser utilizada aqui com comedimento, já que há controvérsia
teórica acerca da utilidade da arte. Não se pretende adentrar nessa
seara aqui. Entenda “uso”, como acesso para fruição.
4 A “morte do autor”, outra
ideia polêmica. Quando falamos em sair de cena, não estamos falando
que o autor não deve, por exemplo, dar entrevistas após a
publicação para promover um livro, mas sim que ele deve se eximir
de, posteriormente à entrega da obra, tentar controlar a
interpretação dos leitores. O livro é um “filho criado para o
mundo”, tem vida própria, o autor precisa desapegar, deixar que os
leitores completem o livro.
5 Atividade estética como
excedente de visão. O autor é capaz, por exemplo, de escrever um
poema de desilusão sem estar desiludido. É um Eu sendo Outro, uma
experiência vicária. Abdica-se do próprio ponto de vista. O nó
autoral consiste na possibilidade de lidar com a diversidade de
pontos de vista de diferentes personagens.
6 Ato realizado sem reflexão
sobre o próprio ato. É impulsiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
BRAITH,
Beth (Org.). Bakhtin:
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, 264p.
GEGe/UFSCar
– Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso.
Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. 112p. Excerto disponível em: <https://linguagenseminteracao.blogspot.com/2012/11/glossario-bakhtin.html>. Acessado em 10 set. 2019.