TRATO É TRATO
Juliano Barreto Rodrigues
Sofrendo de disenteria e prostração há dias, o coronel Onofre já
havia perdido a paciência com o doutor da corrutela e com as
raizadas dos palpiteiros. Desaguando daquele jeito, iria acabar
morrendo.
A mucama, com dó do sinhô, arriscou sugerir:
– O coroné tá é sofrendo de mal'oiado.
– Quê? Que diabo é isso mulher?
– Mal'oiado, zói gordo, zói grande, inveja.
– Entendi, entendi. Isso é besteira do populacho, superstição da
escravaria e de beata cabeça mole.
– Num tá mais aqui quem falô.
Como não sarasse, o velho foi falar com seu compadre Vitorino, homem
ilustrado e seu conselheiro fiel. Contou seu calvário e, por último,
citou sarcasticamente a sugestão da escrava.
Vitorino riu, recostou na cadeirona maciça de pinho, cruzou as
pernas, acendeu um pito, tirou o chapéu e disse olhando com uma cara
engraçada para o coronel:
– E o que tá esperando, homem? Mal olhado é coisa brava, derruba
até boi no pasto.
– Pare com isso, compadre, desde quando acredita nessas coisas?
Vosmicê, um homem viajado e culto... Isso é crendice do poviléu
que ignora a ciência.
– Amigo, pau que dá em Chico também bate em Francisco. Sua cabeça
pode não acreditar, mas pelo jeito seu intestino acredita – sorriu
divertindo-se.
– Será mesmo, compadre?
– Garanto que se a mucama estiver certa, uma benzedura forte te
cura daqui para ali. Aplicando no compadre uma boa jaculatória com
arruda não há quebranto que resista.
De um salto o coronel se pôs de pé agarrado às calças pelo cinto
e, com o rosto em brasa, gritou para Vitorino:
– Ejaculatória? Tá louco homem? Morro mas não tomo desse
remédio.
Vitorino também se levanta assustado e quase se acaba de tanto rir
da ira do compadre. Após se recompor explica:
– Ejaculatória não, meu amigo. Ja-cu-la-tó-ria! É o nome
que se dá às rezas curtas, destinadas uma para cada coisa, que as
rezadeiras e feiticeiras repetem na prática de seu ofício.
– Ê, compadre, achei que tava me afrontando, quase perco a cabeça
com vosmicê. Inda bem que colocou os pingos nos “i”.
– Quase tomo uns tabefes mas valeu o riso.
A cabana de Don'Ana do Riachão era assustadora. Pau-a-pique, coberta
de palha de coqueiro, chão batido, um cachorro furibundo amarrado à
porta e um papagaio barulhento a anunciar a chegada de estranhos.
A velha magricela e encurvada sai de lá com uma vara fina de
goiabeira, açoita aos gritos o cachorro e ameaça o papagaio. Cospe
e pragueja. Com um gesto impaciente manda as visitas entrarem. Dá de
costas e vai para dentro.
O interior era mais feio e sinistro do que o exterior. A fumaceira do
fogão a lenha tornava o ar irrespirável e neblinava tudo, dando um
aspecto de pesadelo. A fuligem tinha empretecido a parte mais alta
das paredes e a palha do telhado. Havia um amontoado de penduricalhos
para todo o lado que dividia a atenção a tal ponto que não dava
para fixar a vista em uma coisa só. A velha então mandou os dois se
sentarem.
– Vamo vê que mal aflige vosmicê – disse a senhora enquanto se
encaminhava para uma prateleira. Meteu a mão dentro de um caixote
onde uma galinha botava e arrancou de baixo da pobre um ovo.
Encaminhou-se para a mesinha onde havia uma cuia cheia d'água e
quebrou o ovo dentro dela. Conforme a gema e a clara flutuaram
formando figuras a velha vaticinou: – Tá com olhado seu dotô, e é
coisa séria. Pague a mesa com 300 réis.
– O que? É muito dinheiro para acabar com uma caganeira. Vosmicê
tratando de desarranjo daqui a pouco compra minha fazenda.
– O coronel é que sabe.
– Vamos deixar de conversa. Dou 100 e, se ficar bom, volto com mais
100, combinado?
– Tá bão. Mas se o sinhô não voltá, a coisa vai ser pior.
Vendo a cara de ultrajado do coronel, Vitorino pegou-o pelo braço e
cochichou em seu ouvido. Onofre sacudiu a cabeça e remexeu
impaciente o porta-moedas. Então pôs na mesa o dinheiro.
A anciã mandou o homem ficar de pé no meio do cômodo, deu-lhe um
pote com água para segurar, pegou um galho de arruda no quintal,
uma pena e um punhal e começou a operação mágica agitando o ramo,
como se varresse o corpo do coronel, enquanto dizia:
– Com dois te puseram, eu tiro com três: Arruda, ponteiro e pena
de um galo pedrês. Com erva forte e reza brava curo feitiço,
olho-gordo e quebranto, mal que fere e mal que mata, tiro e atiro
prum canto.
Jogou a planta na mesa e pegou o punhal. Com ele ia fazendo cruzes em
todos os lados de Onofre e recitando:
– Com ponteiro corto o mal. Cruzo a proa, cruzo a popa, cruzo
bombordo e estibordo, cruzo o mastro e cruzo o casco. E assim corto
todo embaraço.
Largou o punhal na mesa junto com a arruda e tomou a pena. Apontou
para a cabeça do coronel e fez cruzes de longe.
– A pena traz alívio e proteção, do povo de lá e do povo de cá.
Valei-me todos os velhos feiticeiros, que todo mal hão de levar. –
daí juntou os utensílios usados e embrulhou com um pano, para
despachá-los depois.
Terminada a obra, a velha levou o coronel até o umbral da porta, o
fez ficar de costas para fora e mandou que atirasse a água para
trás, por sobre a cabeça. Assim feito, mandou os compadres embora.
Dias depois o coronel estava feito novo e recebeu visita de Vitorino.
– Como está meu compadre?
– Muito bão meu amigo. A
bruxa parece que tirou com a mão o que tava me aporreando.
– Voltou lá para deixar os 100 réis?
– Qual o que?! Nunca vi cobrar por reza. Ela já foi mais que bem
paga pelo que fez. Exploradora!
Vitorino fez cara de reprovação mas não quis prolongar o assunto.
Pensou consigo: “rico só é rico porque é muquirana. Espero que
meu amigo não se arrependa”. Não deu outra. Pouco tempo depois o
coronel foi acometido por uma forte constipação. A mucama alertou:
– Vá em Don'Ana, sinhô. Ela te cura do vento-virado.
– Aquilo foi coincidência, mulher. Ademais, o remédio dela é
muito caro. A embusteira vive à custa do desespero dos outros. Não
me engana mais.
Dez dias até a morte. O coronel deixou muito dinheiro para seus dois
filhos pródigos dizimarem. No enterro deu muita gente. Vitorino
lamentou a cabeça dura do compadre e, com a impressão de ter visto
a feiticeira no meio da multidão, lembrou-se da frase de Hamlet: “Há
mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã
filosofia”. Pensou consigo que, às vezes, as pessoas põem tudo a
perder por pouco. O combinado não sai caro, desde que se cumpra o
acertado. De repente, uma dor de barriga pontiaguda o atingiu.
Persignou-se e sussurrou para ninguém:
– Não se subestima aquilo que não se entende – então saiu do
cemitério às pressas à procura de um banheiro, com a lição
aprendida e com mais uma história para contar.
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