O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

terça-feira, 12 de setembro de 2017


Kafka e a história da boneca

Essa história foi contada durante a viagem de Nathan Glass e de seu sobrinho Tom, que pretendiam levar a pequena Lucy, de apenas nove anos, da cidade de Nova York, onde moravam, até Vermont.

"Kafka não foi apenas um grande escritor, foi também um homem notável. Já ouviu falar da história da boneca?

- Não que eu me lembre.

- Ah. Então eu vou contar. Será minha primeira contribuição para o corpo de provas que vai apoiar minha teoria.

- Acho que não entendi muito bem, Tom.

- É muito simples. Meu objetivo é provar que Kafka foi de fato uma pessoa extraordinária. Mas por que começar por esta história e não por outra qualquer? Não sei. O fato é que desde que a Lucy apareceu, ontem de manhã, não consegui tirá-la da cabeça. Tem de haver uma ligação qualquer. Ainda não consegui descobrir qual é, exatamente, mas acho que há um recado para nós, nela, uma espécie de aviso sobre como deveríamos agir.

- Menos preâmbulos, Tom. Vamos lá, me conte a história e pronto.

- Estou com a corda solta de novo, não é mesmo? A culpa é de todo esse sol, de todos esses carros e eu no meio, rodando a noventa, cem por hora. Meu cérebro está explodindo, Nathan. Eu me sinto cheio de ânimo, pronto para o que der e vier.

- Ótimo. Agora me conte a história.

- Está bem. A história. A história da boneca... É o último ano da vida de Kafka e ele está apaixonado por Dora Diamant, uma jovem de dezenove ou vinte anos que escapuliu da família hassídica e da Polônia para ir morar em Berlim. Dora tinha metade da idade dele, mas lhe deu coragem para sair de Praga – algo que Kafka tinha vontade de fazer havia anos e anos – e ir morar com ela, sua primeira e única mulher. Ele chegou a Berlim no outono de 1923 e morreu na primavera do ano seguinte; no entanto, esses últimos meses muito provavelmente foram os mais felizes de toda a sua vida. Apesar da saúde cada vez mais precária. Apesar das condições sociais de Berlim: falta de comida, distúrbios políticos e a pior inflação da história alemã. Apesar da certeza absoluta de que não ficaria muito mais tempo neste mundo.

Todas as tardes, Kafka saía para dar uma volta no parque. Na maior parte das vezes, Dora o acompanhava. Um belo dia os dois dão de cara com uma menininha soluçando desesperada. Kafka lhe pergunta o que houve e ela conta que perdeu a boneca. Na mesma hora ele se põe a inventar uma história para explicar o que tinha acontecido. ‘Sua boneca foi dar uma viajada’, ele diz. ‘Como é que você sabe?’, pergunta a menina. ‘Porque ela me mandou uma carta.’ Mas a menina não acredita muito na história. ‘Está com ela aí?’, pergunta. ‘Não, sinto muito, deixei em casa por engano, mas amanhã eu trago sem falta.’ Kafka é tão convincente que a menina não sabe mais o que pensar. Será possível que esse homem misterioso esteja dizendo a verdade?

Kafka volta direto para casa para redigir a carta. Senta-se à escrivaninha e, ao vê-lo trabalhar, Dora constata que o escritor está imbuído da mesma seriedade e tensão que dedica à própria obra. Kafka está resolvido a não enganar a pequena. Este é um verdadeiro lavor literário e ele quer sobretudo que saia direito. Se conseguir inventar uma linda e convincente mentira, ela haverá de suplantar a perda sofrida pela menina com uma realidade diferente – falsa, talvez, mas verdadeira e crível segundo as leis da ficção.

No dia seguinte, volta ao parque munido da carta. A pequena está a sua espera e, como ainda não aprendeu a ler, Kafka a lê em voz alta para ela. A boneca sente muito, mas cansou-se de viver com as mesmas pessoas o tempo inteiro. Teve de sair para ver o mundo, fazer novos amigos. Não é que não ame a menina, mas ansiava por uma mudança de ares e, assim sendo, era preciso se separarem por uns tempos. No fim, a boneca promete escrever à menina todos os dias e mantê-la a par de suas atividades.

É nesse ponto que a história começa a me despedaçar o coração. Já é bastante espantoso que Kafka tenha se dado ao trabalho de escrever aquela primeira carta, mas, não contente, ele assume a tarefa de escrever uma nova carta todos os dias – sem nenhum outro motivo que não seja o de consolar uma menina totalmente estranha, uma criança com quem havia cruzado por acaso numa tarde no parque. Que tipo de homem faz algo assim? E ele levou o projeto adiante durante três semanas, Nathan. Três semanas. Um dos escritores mais brilhantes de todos os tempos sacrificando seu tempo – seu tempo cada vez mais precioso e curto – para redigir cartas imaginárias de uma boneca perdida. Dora conta que ele escrevia cada sentença com uma atenção desmedida aos detalhes, que a prosa era precisa, divertida e empolgante. Em outras palavras, era a prosa de Kafka, e todos os dias, durante três semanas, ele foi ao parque e leu em voz alta uma nova carta para a menina. Nesse ínterim a boneca cresce, vai para a escola, conhece pessoas novas. Sempre declarando seu amor pela menina, dá a entender que complicações surgidas em sua vida a impedem de voltar para casa. Pouco a pouco, Kafka via preparando a criança para o momento em que a boneca desaparecerá de sua vida para sempre. Faz o possível para inventar um final satisfatório, pois teme que, se não conseguir, o encanto será rompido. Despois de testar diversas possibilidades, acaba se decidindo por casar a boneca. Descreve o jovem por quem ela se apaixona, a festa de noivado, o casamento no interior, até mesmo a casa onde a boneca e o marido vão viver. E, por fim, na última frase, a boneca se despede de sua antiga e amada amiga.

A essa altura, claro, a menina não sente mais falta da boneca. Kafka lhe deu algo em troca e ao final dessas três semanas as cartas já a curaram da infelicidade. Ela possui a história, e quando a pessoa tem sorte suficiente de viver dentro de uma história, de viver dentro de um mundo imaginário, as dores deste mundo somem. Pelo tempo que durar a história, a realidade deixa de existir.”

Fonte: AUSTER, Paul. Desvarios no brooklyn.Tradução: Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 166-169.


Nenhum comentário:

Postar um comentário