Criança lendo. De Sally Rosembaum |
Estatuto da Literatura Infanto-Juvenil no contexto das artes em
geral
“A literatura infantil são os livros
que aparecem nos catálogos de livros para crianças”. (SORIANO, 1975, apud
COLOMER, 2003, pp. 50-51).
Colomer (2003, p. 42) se refere a Shavit (1986) para
constatar que a Literatura Infanto-Juvenil se desenvolveu alimentada pela ideia
de função literária e de função educativa. Inicialmente se discutiu (1) se os livros
infanto-juvenis deveriam ser considerados verdadeiramente literatura e, (2) para
o âmbito dessa análise, se os objetos de discussão crítica deveriam ser as
obras reconhecidas e legitimadas por sua qualidade literára ou, por outro viés (mas não necessáriamente
oposto), aquelas que tinham sucesso de público. Em seguida, (3) o debate chegou
à definição da Literatura Infanto-Juvenil como “[...] um campo específico no
interior do sistema de comunicação literária [...]” (COLOMER, 2003, p. 43).
Naquela discussão sobre os livros infanto-juvenis poderem,
ou não, ser considerados literatura – apresentando aquelas características
distintivas da literatura para adultos – várias autoridades (literatos,
estudiosos etc.) diziam que não. Nesse sentido, COLOMER (2003) colacionou
opiniões de Benedetto Croce, de Sánchez Ferlosio, de Rico de Alba. Ocorre que, nos
anos 60 do século XX, os formalistas russos, criando elementos para uma ciência
literária, focaram na função poética da linguagem para definir o que era
literatura (função essa que diferencia certos textos de outras expressões
linguísticas). Assim, identificada a “literariedade” da linguagem naqueles textos
considerados voltados para o público infanto-juvenil, foram considerados
literatura, mas uma literatura menor (por se desviar menos da norma demarcatória
do texto não literário).
Na tentativa dos críticos e autores de livros
infantis, no sentido de mudar a ideia de que se tratava de uma literatura
menor, passaram a apontar marcas daquela literariedade (presente na literatura
para adultos) também nos textos para crianças e adolescentes e, o que se provou
ainda mais importante depois, mostrar marcas específicas de literariedade
linguística nestes textos (que não ocorriam na literatura para adultos). Porém,
aceitar essa distinção, significava ter que adotar critérios e procedimentos
diferentes para produzir e para avaliar as obras consideradas de Literatura
Infanto-Juvenil, o que causou (e ainda causa) muita resistência no meio (Cf. COLOMER,
2003, p. 45). Necessitou-se definir teoricamente os termos desse objeto. Nesse
sentido,
[...] Explicitar os critérios pelos
quais se avaliam as obras infantis torna-se imprescindível para poder ir além
dos supostos pelos diferentes grupos sobre o que é conveniente para a infância
e a adolescência, inclusive, com frequência, além do débil guia daquilo que os
adultos recordam ter lido na sua própria infância. (COLOMER, 2003, p. 46).
Existia, e ainda existe, no que diz respeito aos
critérios definidores do valor literário, a tensão entre a avaliação crítica do
texto (pelo que é o texto, observadas as convenções do gênero) e a consideração
do leitor (maior ou menor alcance e aceitação da obra). Historicamente, a
balança já pendeu tanto para um quanto para o outro lado, ora priorizando a
qualidade do texto em si, ora centrando-se mais no leitor. Há, hoje, um
movimento no sentido de valorizar a união dos dois critérios.
Sendo assim, hoje trata-se a Literatura
Infanto-Juvenil como um campo específico, que se busca estudar equilibrando a
atenção no texto e no leitor. Entendida como forma de comunicação literária, o
objetivo do estudo da Literatura Infanto-Juvenil é, segundo Soriano (1985, apud
COLOMER, p. 52), “[...] o diálogo que, de uma época para outra, de uma
sociedade para outra, se estabelece entre as crianças e os adultos por meio da
literatura.”
A classificação da Literatura Infanto-Juvenil como “gênero”,
também gerou polêmica, haja vista a existência de gêneros, na terminologia
literária, como romance, conto, crônica, poema etc., que também são formas de
realização na própria Literatura Infanto-Juvenil. Mas há também quem defenda a
definição naqueles termos e sob o critério de categorização diferente.
Também registrou-se polêmica no que diz respeito à ficção
fantástica e a realista, porque muitos críticos consideravam que a fantasia –
vinculada à tradição oral popular (folclore, contos populares, contos de fada
etc.) – seria uma forma menor, que só caberia para os povos primitivos e para
as crianças, situação que mudou enormemente com a valorização da ficção
fantástica pelos adultos. Por outro lado, também passou a ser bem comum a
literatura ficcional realista voltada para crianças e adolescentes. Também
houve, após a publicação de estudos da Psicologia, uma revalorização da
fantasia, graças ao reconhecimento de sua conveniência como instrumento
pedagógico e de cultivo do imaginário. Vale destacar, no entanto, que no meio literário,
A reutilização dos modelos folclóricos
[incluam-se os contos de fadas, as narrativas populares] teve também seus detratores.
Para alguns autores [...], o novo desenvolvimento da fantasia produziu apenas “obras
menores, pastiches sem encanto; adota-se voluntariamente o estilo do conto para
explicar qualquer coisa às crianças”. (COLOMER, 2003, p. 72).
Colomer (2003, pp. 72-73) informa que, a partir da
Segunda Guerra Mundial, a qual sobreveio uma tendência antiautoritária no campo
da produção literária, houveram tentativas de definição da Literatura Infantil
que reconciliaram suas funções pedagógicas e literárias, bem como levaram à
crescente revalorização da ficção fantástica e da importância do leitor em
relação a obra.
Quem é esse leitor a quem a Literatura Infanto-Juvenil
se dirige? Como destaca Palo (2006, p. 1), “O tema literatura infantil
leva-nos de imediato à reflexão acerca do que seja esse ‘infantil’ como
qualificativo especificador de determinada espécie dentro de uma categoria mais
ampla e geral do fenômeno literário.” A criança é, segundo tal autora, uma
minoria que, no Ocidente, não tem direito a voz nem qualquer autonomia no seu
desenvolvimento, uma minoria submissa (dominados), guiada pela autoridade dos adultos
(dominadores), situação corroborada pela Psicologia da Aprendizagem, que indica
fases de maturação psicológica das crianças, justificando a dependência “natural”
delas em relação aos adultos, na etapa de formação. Outra justificativa é a
falta de domínio que as crianças têm do código verbal, para significar padronizadamente
o mundo à sua volta e nele influir eficientemente, através da comunicação.
Palo
(2006) defende que a falta de competências abstratas das crianças são
compensadas por aquilo que ela designa como “concretitude” da experiência e da
mente infantil. E que essa característica é muito interessante pedagogicamente,
além de não ser contrária à fruição estética nem, portanto, à fruição literária
(tomando-se literatura como arte). Destaca a importância da Pedagogia no
processo de:
[...] adequar o literário às fases do raciocínio
infantil, e o livro, como mais um produto através do qual os valores sociais
passam a ser veiculados, de modo a criar para a mente da criança hábitos
associativos que aproximam as situações imaginárias vividas na ficção a
conceitos, comportamentos e crenças desejados na vida prática, com base na
verossimilhança que os vincula. (PALO, 2006, p. 2).
Destaca
que, a criança (não vista como um “adulto em miniatura”) tem, na sua mente
intintiva e pré-lógica, a capacidade de descobrir correspondências e operar
sinestesias através não da representação, mas da “presentação” das coisas, como
ocorre na arte, motivo pelo qual a criança consegue responder ao signo
artístico (literário, inclusive). Afirma que, na produção da Literatura ficcional,
há “a dominante poética nos textos [...] um espaço onde equivalências e
paralelismos dominam, regidos por um princípio de organização basicamente
analógico, que opera por semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a
linguagem informa, antes de tudo, sobre si mesma.” (PALO, 2006, p. 5). Esse
modo (linguagem universal da arte) favorece a liberdade do imaginário, da
experimentação e da descoberta, que preponderam nas crianças e, portanto, cabe
para elas.
Palo
(2006) volta a tratar da função utilitário-pedagógica da literatura, a qual
contrapõe a função poética, que “põe em crise qualquer previsibilidade de uso
frente à alta taxa de imprevisibilidade da mensagem” (PALO, 2006, p. 7). Destaca
que, ao contrário do uso passivo da informação, na segunda hipótese, a mente do
receptor age efetivamente e de forma mais independente: criando, reconstruindo,
no próprio ato da leitura. Diz que, privilegiar esta utilização (que considera
acertada) é lançar mão de uma pedagogia mais centrada no aprender (per si),
a partir do “fluir e refluir do texto”, do que no ensinar (da forma entendida tradicionalmente).
PONDERAÇÕES PESSOAIS
Considero
que a Literatura Infanto-Juvenil tem mesmo uma função educativa, lastreada, mais
comumente, na exemplaridade. Textos escritos para crianças possuem, na sua
quase totalidade, conteúdo moralizante e educativo. Mesmo aqueles que, não
tendo sido escritos originalmente para crianças, só as alcançaram – pelas mãos
de adultos, como destaca Palo (2006) – porque têm algum conteúdo
utilitário-pedagógico ou, na hipótese de exceção, porque ao menos não têm
elementos “deseducativos” ou considerados “inadequados”. Isso corrobora a
conclusão de que a Literatura Infanto-Juvenil ainda tem, como requisito, função
educativa. Mas não há que se discutir que existem, como também no caso da
literatura para adultos, livros com maior ou menor “literariedade”. Sendo
assim, em ambos os casos, há aqueles que serão considerados “arte” e terão
qualidade reconhecida, outros não. Mas é lógico que os critérios críticos devem
levar em conta as diferenças de escrita para um e outro público. Daí se conclui,
já que devendo critérios diversos de avaliação, que creio na Literatura Infantil
como relativamente autônoma.
Como
adepto da ideia de arte pela arte, e da arte como algo que não deve ter utilidade
(em sentido estrito) óbvia, já me debati (combati) muito com a questão da
leitura de ficção ter uma função. Criticamente, a exceção à regra da liberdade quase
absoluta da criação artística (porque até a arte que subverte o faz dentro de
alguns limites do thesaurus do gênero escolhido) – que defendo – diz
respeito à Literatura Infanto-Juvenil. Esta sim, considero que deve ter função.
Mas também acredito que, como expôs Palo (2006), a função poética da linguagem
literária, sua forma, também provoca o desenvolvimento sensível e intelectual
da criança (aliás, de qualquer leitor, de qualquer idade), despertando um
aprendizado por elaborações subjetivas mais profundas e intuitivas, não apenas racionais.
Quando
escolho um livro para uma criança não decido apenas pela informação. Procuro
sempre aquela linguagem que escapa um pouco da norma meramente comunicacional, procuro
algo que cause um “efeito” a partir da própria composição artística das frases,
que apresente elemento estético, que ajude a própria criança formar o gosto (em
oposição à expressão mais usada “educar o gosto”).
Para
além disso, também considero que a literatura fantástica dê uma margem muito
maior de liberdade para a imaginação infantil do que a ficção realista. As
fábulas, contos de fadas, histórias maravilhosas da tradição oral... educam de
uma maneira mais genérica, lúdica, encantadora e mágica. Prefiro!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COLOMER, Teresa. “Os debates teóricos até os anos oitenta”. In:
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil
atual. Tradução de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003.
PALO, Maria José e OLIVEIRA, Maria Rosa D. “A literatura e o literário
infantil”. In: PALO, Maria José e OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil:
voz da criança. São Paulo: Ática, 2006.
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