O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

sábado, 29 de janeiro de 2022

Almo Caniço

 

Pam Herrick Prophetic Art


ALMO CANIÇO

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

Maria estava cravada junto ao batente da janela. Mas tão fixada que fazia par perfeito com aquele prego, vincado de velho, na folha canhota da ventana. “Barbaridad, que susto me meteste guria, parece uma assombração... aí estacando o olho desta sala”, disse o antiquíssimo patriarca (desgrenhado e vestido só de calçolão).

Jonísio passava dos anos banguelas, era ancião demais, experiente em vida mais que todo mundo. Mas os olhos ilegíveis da menina, mal’entrada na caminhada, pareciam ver dentro dele – e eram dois dedos rijíssimos, feito chifres, apontados no meio das suas memórias, a remexê-las desabusadamente, feito soro da verdade. [Seria ela algo, feito um demônio pessoal, a cobrar-me pelo tudo?] – pensava consigo o velho muito velho. Mas temia que ela lhe lê-se os pensamentos.

[Que fiz eu para essa guria, que desde o berço me julga sem dizer qualquer palavra?] – o coração se agigantando em incorreções. Mereja um suorzinho em meio às mil rugas. [Valei-me, meu São José Gabriel del Rosario, que eu já nem tenho idade para ter alguma fé. Mas afastai aqueles olhos encostados que me ardem. São meu suplício exculpante pré-purgatório?]. “Humm!” [E eu, que não matei, não roubei, até aqui não fui muito nem fui pouco, peso o quê, na Balança? Omissão conta? Coração seco conta?]. “Vá fazer alguma coisa, Melissa.” [O diabo da menina nem se mexe. Pergunto o que quer de mim? Eu sei que ela sabe de tudo, que martírio!]. “Não vê que estou... hã... fazendo uma coisa importante? Vai-te daqui, anda!”

Sopra um vento vesgo, encruzando porta-janela. O mais antigo de todos os homens mais velhos do mundo senta seus ossos na poltrona XV desgastada. Pede a morte, que passou, se esqueceu dele há muuuito tempo. Que fez ele da vida? Da própria e da alheia? [Fiz tanto de “um tudo” e outro tanto de nada, de sorte que, pensando bem, fiz qualquer coisa que valha?] – cofia barbaramente a barba cega enquanto mói e remói, e remói, e remói.

[Não reconheço os meus pés. Não lembro de ter pés assim. Una pana delgada cobre minha pele. Ninguém do meu tempo de nascido chegou até aqui; o que foi feito de mim? Não sei por que fiquei. E aquela menina que estava ali, espetada na ombreira da janela? Parece que me lembro, mas foi há tanto, mas tanto, tempo... Ela me dói cada folha velha que existe em mim. Dói-me culpa por não entendê-la. Dói-me a faca dos seus olhos. Dói-me a vitória que ela carrega(va?). Mas o que há, vovô? Recorda! Vai, recorda! Ai, ai, lembrei!, ou entendi: Eu, vivo, estou morto. Ela, morta, vive e mim].


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