Juliano Barreto Rodrigues
Impropérios sussurrados para si
mesma, Sesmaria vocifera intimamente por dentro: “Por que é que tenho que levar
a vida servindo os outros e sendo humilhada? Que fiz eu, que sempre fui
honesta, para merecer sina tão desgraçada? Minha mãe me deu esse nome ridículo
e meu pai nem sei quem é. Treze irmãos perdidos por aí... e eu morrendo de
solidão aqui.”
Para o ônibus, a chuva alagou a
cidade inteira. O Rio de Janeiro agora parece um marzão de água doce, bem
temperado de lixo arrastado pela correnteza. A amiga bolota impõe-se a
Sesmaria: “Sisa, vai, desce logo que o motorista não vai ficar esperando”. Sisa
salta no aguaceiro. Corre toda molhada para o primeiro abrigo que acha. São
mais ou menos seis horas da tarde e, com o chuvaréu escurecendo o tempo, parece
ser bem mais.
O cheiro de chuva, misturado com os
cheiros de suor do próprio corpo e da sujeira que escorre na enxurrada, formam
um perfume inigualável. Como os raios cortam o céu, explodindo em trovões, dá um medo danado em
Sisa, que grita a cada estouro “Valei-me minha Santa Bárbara” e se benze três
vezes. As carnes magras e endurecidas da lida sem descanso estremecem e a conhecida
valentia da matuta amolece.
Falta pegar mais um ônibus apinhado e
subir o morro a pé. Só duas sacolas plásticas de supermercado protegem
Sesmaria: uma vai na cabeça e na outra se esconde – da água – a bolsa. O resto,
meu irmão, fica tudo ensopado. E ainda ter que aguentar a gorducha tagarela até
quase em casa...
Aquela barulheira do dilúvio e toda a
confusão da rua não ocupam toda a cabeça de Sisa. A cada sobressalto, um novo
pensamento de lamentação surge e a vontade de ter o colo da mãe dói agudamente.
Só e só. É como se sente Sesmaria. E, além disso, muito cansada da vida.
Um caminhão de gás passa, tirando
lasca do meio-fio, e dá um banho de água suja nas duas. Sobram palavrões lá do
Norte, aprendidos ainda na infância, coisas cabeludas mesmo. Sisa pragueja e
diz que está cansada de viver, que não dá conta mais. O segundo ônibus encosta
brutamente. Para cada um que desce, parece que entram dois. Agorinha alguém
senta no colo do motorista.
A noite torna tudo mais intenso.
Subindo a serra, com aquele trânsito absurdo, a sensação é que não demora e o
ônibus cai na ribanceira, ou um caminhão bate de frente, ou um relâmpago atinge
um poste e mata meio mundo. Sisa está cansada de viver, mas não quer, de jeito
nenhum, morrer assim. Reza, faz promessa, blasfema.
O bolo humano desembarca todo no
ponto final. A chuva deu uma treguazinha e agora é subir o morro. A gorda ainda
quer ir de braço dado... O passo de cavalo cansado dá a marcação da toada. Enfim,
a amiga fica em casa. Despede-se com um abraço, um vai com Deus e um até
amanhã. Ufa! Sesmaria está sozinha. O alívio vai virando solidão a cada passo.
Sisa lembra-se do “até amanhã” e sofre ter que repetir tudo de novo no dia
seguinte.
A encharcada desembrulha a bolsa e tira a
chave de dentro. Abre a porta e vem o susto: as goteiras molharam sua cama.
Agora é o fim, Sisa vai morrer. Num gesto automático liga a televisão.
Plim-plim, segunda parte da novela das nove, prenderam o vilão, ele vai ser
desmascarado. Senta Sisa na poltrona que vai ser seu dormitório. Daí a pouco
está rindo, soltando acusações contra o preso, defendendo a mocinha.
Banho rápido no intervalo, Miojo na
outra propaganda, chinelinho nos pés e uma roupa seca, Sisa goza sua hora e
meia de prazer diário e dorme, moída, esquecida de todos os dissabores.
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