O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

terça-feira, 5 de maio de 2015

MORDE E ASSOPRA


                                                        Juliano Barreto Rodrigues

Impropérios sussurrados para si mesma, Sesmaria vocifera intimamente por dentro: “Por que é que tenho que levar a vida servindo os outros e sendo humilhada? Que fiz eu, que sempre fui honesta, para merecer sina tão desgraçada? Minha mãe me deu esse nome ridículo e meu pai nem sei quem é. Treze irmãos perdidos por aí... e eu morrendo de solidão aqui.”
Para o ônibus, a chuva alagou a cidade inteira. O Rio de Janeiro agora parece um marzão de água doce, bem temperado de lixo arrastado pela correnteza. A amiga bolota impõe-se a Sesmaria: “Sisa, vai, desce logo que o motorista não vai ficar esperando”. Sisa salta no aguaceiro. Corre toda molhada para o primeiro abrigo que acha. São mais ou menos seis horas da tarde e, com o chuvaréu escurecendo o tempo, parece ser bem mais.
O cheiro de chuva, misturado com os cheiros de suor do próprio corpo e da sujeira que escorre na enxurrada, formam um perfume inigualável. Como os raios cortam o céu,  explodindo em trovões, dá um medo danado em Sisa, que grita a cada estouro “Valei-me minha Santa Bárbara” e se benze três vezes. As carnes magras e endurecidas da lida sem descanso estremecem e a conhecida valentia da matuta amolece.
Falta pegar mais um ônibus apinhado e subir o morro a pé. Só duas sacolas plásticas de supermercado protegem Sesmaria: uma vai na cabeça e na outra se esconde – da água – a bolsa. O resto, meu irmão, fica tudo ensopado. E ainda ter que aguentar a gorducha tagarela até quase em casa...
Aquela barulheira do dilúvio e toda a confusão da rua não ocupam toda a cabeça de Sisa. A cada sobressalto, um novo pensamento de lamentação surge e a vontade de ter o colo da mãe dói agudamente. Só e só. É como se sente Sesmaria. E, além disso, muito cansada da vida.
Um caminhão de gás passa, tirando lasca do meio-fio, e dá um banho de água suja nas duas. Sobram palavrões lá do Norte, aprendidos ainda na infância, coisas cabeludas mesmo. Sisa pragueja e diz que está cansada de viver, que não dá conta mais. O segundo ônibus encosta brutamente. Para cada um que desce, parece que entram dois. Agorinha alguém senta no colo do motorista.
A noite torna tudo mais intenso. Subindo a serra, com aquele trânsito absurdo, a sensação é que não demora e o ônibus cai na ribanceira, ou um caminhão bate de frente, ou um relâmpago atinge um poste e mata meio mundo. Sisa está cansada de viver, mas não quer, de jeito nenhum, morrer assim. Reza, faz promessa, blasfema.
O bolo humano desembarca todo no ponto final. A chuva deu uma treguazinha e agora é subir o morro. A gorda ainda quer ir de braço dado... O passo de cavalo cansado dá a marcação da toada. Enfim, a amiga fica em casa. Despede-se com um abraço, um vai com Deus e um até amanhã. Ufa! Sesmaria está sozinha. O alívio vai virando solidão a cada passo. Sisa lembra-se do “até amanhã” e sofre ter que repetir tudo de novo no dia seguinte.
 A encharcada desembrulha a bolsa e tira a chave de dentro. Abre a porta e vem o susto: as goteiras molharam sua cama. Agora é o fim, Sisa vai morrer. Num gesto automático liga a televisão. Plim-plim, segunda parte da novela das nove, prenderam o vilão, ele vai ser desmascarado. Senta Sisa na poltrona que vai ser seu dormitório. Daí a pouco está rindo, soltando acusações contra o preso, defendendo a mocinha.

Banho rápido no intervalo, Miojo na outra propaganda, chinelinho nos pés e uma roupa seca, Sisa goza sua hora e meia de prazer diário e dorme, moída, esquecida de todos os dissabores.

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