A pessoa é o que tem?
Juliano Barreto Rodrigues.
Olhando
em volta enquanto procurava uma ideia sobre o que escrever, fiquei reparando o
mobiliário e me lembrei de um livro chamado Viagem à Roda do Meu Quarto. O
autor, Xavier de Maistre, fez um exercício que (acredito) todos já fizeram
algumas vezes: olhou sossegadamente para as coisas ao seu redor e puxou na
memória o momento em que passaram a integrar suas pertenças, de onde vieram, como
foram usadas em tempos memoráveis, o que lhes causou um sinal, ou mancha, ou
marca, o que representam intima e socialmente e que sensações causam.
As pessoas têm uma interação estranha com os objetos. Alguns falam por
si, como os artísticos, por exemplo. Outros, só se exprimem pelo uso. Numa analogia, essa oposição
me faz lembrar a diferença entre as pessoas cultivadas e as mecânicas (no
sentido metafísico empregado por Alain-Rene LeSage, no livro História de Gil
Blas de Santillana). Talvez, os seres inanimados sejam tão representativos
quanto nós.
É
mágica a forma como o ser se desborda em suas coisas, seja no que veste, na
casa que habita, no que coleciona, nos móveis que compra, nas lembrancinhas que
guarda... Um Sherlock Homes poderia destrinchar as ocupações, hábitos, manias e
tendências de qualquer um, se tivesse acesso a seu santuário completo. O
indivíduo não se restringe ao que é in
nude – o que também não é estático e livre de interferentes – é, além disso, o que tem, com o que se relaciona e se utiliza para externalizar seu
ego.
Então,
os objetos têm vida. Não no sentido fisiológico, logicamente, mas num sentido
mais amplo, histórico. A consciência dessa “vida” existe na observação atenta
de seu usuário, revelando assim uma relação de dependência entre o material e o
imaterial. Mas isso é uma discussão filosófica para outra hora. Assim, deixemos
de lado o que não é essencial.
Aproveitando
a ideia de outra peça formidável, o livro História do Mundo em 100 Objetos, do
historiador Neil McGregor, poderia ser bem interessante realizar biografias a partir
do que os biografados têm. Pessoalmente, imagino que podemos falar indefinidamente da gente usando esse artifício, e creio que assim é possível ampliar em muito a
consciência da nossa interação com o que nos cerca e do quanto exorbitamos de
nós mesmos no que possuímos.
Voltando
ao assunto dos indivíduos cultivados e dos mecânicos, é justamente a capacidade
de abstrair, de pensar o fazer e o ser, uma das principais habilidades que
diferenciam uns e outros. Os mecânicos são seres práticos, que realizam as
coisas quase automaticamente, sem crítica, autocrítica ou criatividade mais
sofisticada. Seu contraponto é formado por quem estabelece raciocínios mais
elaborados sobre o que vê, sente ou faz, que procura razões, melhores formas de
fazer, sentidos mais profundos.
Exercícios
contemplativos como o que sugeri seriam bem interessantes para uns, mas não
para outros. Isso não significa que os mecânicos sejam pessoas menos essenciais
à sociedade do que os cultivados. O panegírico a estes seria injusto em relação
àqueles. Até porque, é bem mais fácil qualificar quem quer que seja como mecânico do que
atribuir a alguém o epíteto de culto. Cultura é algo tão relativo...
Dos
utensílios que tenho, os que mais valorizo e com os quais mais me identifico
são os meus livros. Dizem tudo sobre
minhas preferências e anseios. Lembrei-me de uma obra infanto-juvenil, que li ainda
criança, e que marcou minha trajetória de vida: Os Três Irmãos, de Vicente
Guimarães. Tendo-o perdido em algum momento da pré-adolescência, tive que
reencontrá-lo em um sebo e relê-lo, já adulto. Fala de três irmãos que, podendo
escolher entre a riqueza, a força ou a inteligência optam, cada um por uma
delas, e o destino deles é descrito na história.
Me
identifiquei com a personagem que escolheu a inteligência, recebendo um enorme
calhamaço encadernado em que poderia aprender sobre todas as coisas do mundo. E,
desde então, vivo a eterna fome de conhecer - que me move, me cerca de textos,
filmes e sons, e ocupa meus dias.
Cultos
ou incultos, práticos ou teóricos, somos um tanto da matéria que nos cerca. Da
forma que com ela lidamos é possível avaliar como tratamos a nós mesmos. Influímos
nas coisas e, da mesma forma, somos por elas inspirados ou oprimidos.
De
posse dessa consciência, passei a tentar moderar meus apetites super-consumistas, a
escolher mais cuidadosamente minhas aquisições e a encarregar-me melhor delas.
A organização, a limpeza, a posse do essencial me tornaram mais focado, mais
ágil, mais arrumado e feliz. Além disso, fui presenteado com um belo efeito
colateral: me sinto, e até pareço, mais inteligente.
“Conhece-te a ti mesmo”! Recomendo a experiência socrática a partir da contemplação do que está a sua volta.
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