O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

sexta-feira, 30 de setembro de 2016


 PRECIOSAS RECORDAÇÕES


Juliano Barreto Rodrigues


– Deus te dê o que deu ao bode: rabo, chifre e bigode. – Era assim que minha mãe me abençoava quando eu espirrava (risos). Na hora de dormir, dava proteção dizendo: – Durma com Deus, Nossa Senhora e o Anjinho da Asa Quebrada.

Esse é o tipo de coisa inesquecível que, dentre outras tantas, torna a infância tão maravilhosa.

A lembrança de meu pai passando a ferro as cobertas e colocando bolsa térmica nos meus pés para eu dormir quentinho, ou me enrolando em uma pilha de cobertores para aplacar uma febre, o chá docinho de capim cidreira que minha mãe fazia para facilitar o sono, as gemadas para gripe, são um tesouro mágico que guardo no peito para sempre.

As cantigas de roda, os pirulitos de melado em formato de cone, enrolados em papel e vendidos, plantados de cabeça para baixo, em uma bandeja de isopor ou madeira, os picolezeiros, o algodão doce, o feijão da marmita que comíamos no almoço, a pelada com bola de cobertão, os amigos daquele tempo, quanta saudade. Até as cicatrizes de menino são troféus, enquanto as de adulto lembram dores.

Herdei a música que meu avô cantava para minha mãe e que elejo como fundo musical daquela época:


Pum pum piscatinga-ê
Piscatinga ararubê
Piscatinga-tinga
Aurê sarubê
Arubá
Piscatinga ararubê
Piscatinga-tinga

Clic, clec, cloc
Tararara tirurira
Clic, clec, cloc
Tararara tirurira

Tum-tum.


Brinquei tanto de guerrinha sob o pé de amora, fazendo com que o roxo dos frutos apertados contra o corpo representasse os sinais de tiros... saía todo pintado. Estava sempre descalço e sem camisa, inventando todas as modas possíveis. Falava mais que o homem da cobra e não parava quieto, o que me rendeu o apelido de mosquitinho elétrico.

Às sextas-feiras sempre íamos à benzedeira. Tia Luzia era uma preta linda e redonda, com o abraço mais aconchegante do mundo, cheirando a sabonete. Nunca a vi sem o lenço na cabeça, o crucifixo no pescoço e os óculos enormes de resina transparente. Eu e meu irmão sentávamos em tamboretezinhos em frente ao altar, montado em uma cantoneira na sala de visitas. Diante das imagens de santos católicos juntas as de caboclos, pretos velhos, vó Maria Conga, Iemanjá e Zé-Pelintra, todos iluminados com velas e tendo a seus pés copinhos com bebida – que tinham um cheiro inigualável quando misturados ao aroma da queima de defumador Espiritual – esperávamos o deleite de um momento delicioso. Nossos pais ficavam de pé às nossas costas e a Tia atrás de todos, rezando enquanto gesticulava cruzes e bocejava enormemente, dependendo do carrego que tivéssemos. Saíamos de lá levinhos.

Tive a companhia de tantos cachorros, gatos, papagaios, tartarugas, tracajás, além de uma ovelha, um macaco e um bezerro que pisava com seus cascos em meus pés descalços e causava um estrago. Foi crescendo e se tornou enorme para uma casa de conjunto. Teve que ir embora. Esses amigos moldaram meus afetos e minha comunicação. Ensinaram o amor a toda criatura viva e a tolerância com a morte.

Vó Mili fazia beijú fininho, que servia com “café de menino”, um café bem doce e aguado. Tinha uma daquelas geladeironas antigas que davam choque. Eu, meu irmão e os primos dávamos as mãos e esperávamos o primeiro pegar no puxador para sentir a corrente passar. Saíamos pulando, gritando e dando gargalhadas pela cozinha. Isso era o menor que aprontávamos.

As Sextas-feiras Santas na roça, com suas proibições, histórias de assombrações e feiticeiras, instigavam minha imaginação e alimentavam a fé e respeito ao sagrado. Quem já viveu aquelas sensações de vigília lá na fazenda sabe do que estou falando.

Cresci em frente a uma praça de terra nua, em que havia uma feira todas as terças. Naquela época, boa parte dos feirantes ia de carroça. Lá pelas quatro e meia da manhã eu era acordado com o barulho de cavalos e com a velha moda de viola que tocava alto em um rádio. Que tempos, que tempos! Houve um ano em que um urubu criado por uma mulher saia pelas ruas da feira furando as sacolas com as compras das senhoras e esparramando tudo pelo chão. Era um Deus nos acuda. Isso quando não era o homem da barraca de carnes indo lá em casa reclamar que nosso cachorro tinha roubado alguma peça.

Badia, nossa passadeira, virou gente da família, está há tanto tempo conosco que não tem mais cerimônias. Faz e desfaz, diz e desdiz. Mulher de aço, trabalhadeira e mãe extremosa. Liga o radinho de pilha e amansa de pé a roupa, horas e horas, sem reclamar. Nunca agradeci pela presença e apoio que deu quando disseram que meu pai havia morrido em uma queda de avião. Graças a Deus era apenas um boato de gente maldosa, mas foi um susto enorme e mais uma história para contar.

Vô Djalma ia lá em casa nos fins de tarde e, para desespero de minha mãe e graça para nós, amarrava o rabo do cão no pé da cadeira enrolada com fios de plástico. Adorava o malfeito. Todos os dias chegava com um saquinho de papel cheio de balas. Vô Rocha, padrinho de minha mãe, também tinha esse costume de nos agradar com guloseimas. Sempre o visitávamos à noite na ourivesaria, que era em sua casa, ou no bar da esquina, onde estava sempre de pé no balcão tomando um copo de cerveja. Insistia para que eu e meu irmão pegássemos um Prestígio ou um Choquito. Fazia um carneiro frito com farinha que jamais vi igual.

Brincadeira de menino era finca, bola, peão, bola de gude, pique pega, bicicleta. Minha rua não tinha asfalto, e quando chovia a enxurrada nos levava. Como era bom tomar banho de chuva. Eu sempre tive uma imaginação muito fértil, inventava brincadeiras de guerreiros, bruxos e jornadas longínquas. Criava paisagens cinematográficas e universos paralelos. O cabo de vassoura ora era espada, ora cajado, noutras vezes um cavalo.

Costumo dizer que há várias vidas dentro de uma vida. A infância é uma delas, talvez a mais incrível. Tudo é novidade, há urgência e intensidade em cada coisa, não há nada que não vire brincadeira. Ainda sou aquela criança. Como disse Paulinho da Viola, “eu não vivo no passado, [mas] o passado vive em mim”.

Infância. É dessa água, desse cimento e dessa areia que sou feito. Se escrevo, a matéria vem daí, das peripécias que contei e de tantas outras que vivi.

A quem me ouviu vai a benção impregnada de boas recordações:

– Deus te dê o que deu ao bode: rabo, chifre e bigode *.


* Na minha interpretação, as partes referidas do bode simbolicamente significam: notoriedade, inteligência e poder.



Nenhum comentário:

Postar um comentário