PRECIOSAS RECORDAÇÕES
Juliano Barreto Rodrigues
– Deus te dê o que deu ao bode: rabo, chifre e bigode. – Era
assim que minha mãe me abençoava quando eu espirrava (risos). Na
hora de dormir, dava proteção dizendo: – Durma com Deus, Nossa
Senhora e o Anjinho da Asa Quebrada.
Esse é o tipo de coisa inesquecível que, dentre outras tantas,
torna a infância tão maravilhosa.
A lembrança de meu pai passando a ferro as cobertas e colocando
bolsa térmica nos meus pés para eu dormir quentinho, ou me
enrolando em uma pilha de cobertores para aplacar uma febre, o chá
docinho de capim cidreira que minha mãe fazia para facilitar o sono,
as gemadas para gripe, são um tesouro mágico que guardo no peito
para sempre.
As cantigas de roda, os pirulitos de melado em formato de cone,
enrolados em papel e vendidos, plantados de cabeça para baixo, em
uma bandeja de isopor ou madeira, os picolezeiros, o algodão doce, o
feijão da marmita que comíamos no almoço, a pelada com bola de
cobertão, os amigos daquele tempo, quanta saudade. Até as
cicatrizes de menino são troféus, enquanto as de adulto lembram
dores.
Herdei a música que meu avô cantava para minha mãe e que elejo
como fundo musical daquela época:
Pum pum piscatinga-ê
Piscatinga ararubê
Piscatinga-tinga
Aurê sarubê
Arubá
Piscatinga ararubê
Piscatinga-tinga
Clic, clec, cloc
Tararara tirurira
Clic, clec, cloc
Tararara tirurira
Tum-tum.
Brinquei tanto de guerrinha sob o pé de amora, fazendo com que o
roxo dos frutos apertados contra o corpo representasse os sinais de
tiros... saía todo pintado. Estava sempre descalço e sem camisa,
inventando todas as modas possíveis. Falava mais que o homem da
cobra e não parava quieto, o que me rendeu o apelido de mosquitinho
elétrico.
Às sextas-feiras sempre íamos à benzedeira. Tia Luzia era uma
preta linda e redonda, com o abraço mais aconchegante do mundo,
cheirando a sabonete. Nunca a vi sem o lenço na cabeça, o crucifixo
no pescoço e os óculos enormes de resina transparente. Eu e meu
irmão sentávamos em tamboretezinhos em frente ao altar, montado em
uma cantoneira na sala de visitas. Diante das imagens de santos
católicos juntas as de caboclos, pretos velhos, vó Maria Conga,
Iemanjá e Zé-Pelintra, todos iluminados com velas e tendo a seus
pés copinhos com bebida – que tinham um cheiro inigualável quando
misturados ao aroma da queima de defumador Espiritual – esperávamos
o deleite de um momento delicioso. Nossos pais ficavam de pé às
nossas costas e a Tia atrás de todos, rezando enquanto gesticulava
cruzes e bocejava enormemente, dependendo do carrego que tivéssemos.
Saíamos de lá levinhos.
Tive a companhia de tantos cachorros, gatos, papagaios, tartarugas,
tracajás, além de uma ovelha, um macaco e um bezerro que pisava com
seus cascos em meus pés descalços e causava um estrago. Foi
crescendo e se tornou enorme para uma casa de conjunto. Teve que ir
embora. Esses amigos moldaram meus afetos e minha comunicação.
Ensinaram o amor a toda criatura viva e a tolerância com a morte.
Vó Mili fazia beijú fininho, que servia com “café de menino”,
um café bem doce e aguado. Tinha uma daquelas geladeironas antigas
que davam choque. Eu, meu irmão e os primos dávamos as mãos e
esperávamos o primeiro pegar no puxador para sentir a corrente
passar. Saíamos pulando, gritando e dando gargalhadas pela cozinha.
Isso era o menor que aprontávamos.
As Sextas-feiras Santas na roça, com suas proibições, histórias
de assombrações e feiticeiras, instigavam minha imaginação e
alimentavam a fé e respeito ao sagrado. Quem já viveu aquelas
sensações de vigília lá na fazenda sabe do que estou falando.
Cresci em frente a uma praça de terra nua, em que havia uma feira
todas as terças. Naquela época, boa parte dos feirantes ia de
carroça. Lá pelas quatro e meia da manhã eu era acordado com o
barulho de cavalos e com a velha moda de viola que tocava alto em um
rádio. Que tempos, que tempos! Houve um ano em que um urubu criado
por uma mulher saia pelas ruas da feira furando as sacolas com as
compras das senhoras e esparramando tudo pelo chão. Era um Deus nos
acuda. Isso quando não era o homem da barraca de carnes indo lá em
casa reclamar que nosso cachorro tinha roubado alguma peça.
Badia, nossa passadeira, virou gente da família, está há tanto
tempo conosco que não tem mais cerimônias. Faz e desfaz, diz e
desdiz. Mulher de aço, trabalhadeira e mãe extremosa. Liga o
radinho de pilha e amansa de pé a roupa, horas e horas, sem
reclamar. Nunca agradeci pela presença e apoio que deu quando
disseram que meu pai havia morrido em uma queda de avião. Graças a
Deus era apenas um boato de gente maldosa, mas foi um susto enorme e
mais uma história para contar.
Vô Djalma ia lá em casa nos fins de tarde e, para desespero de
minha mãe e graça para nós, amarrava o rabo do cão no pé da
cadeira enrolada com fios de plástico. Adorava o malfeito. Todos os dias chegava com um saquinho de papel cheio de balas. Vô Rocha, padrinho
de minha mãe, também tinha esse costume de nos agradar com
guloseimas. Sempre o visitávamos à noite na ourivesaria, que era em
sua casa, ou no bar da esquina, onde estava sempre de pé no balcão
tomando um copo de cerveja. Insistia para que eu e meu irmão
pegássemos um Prestígio ou um Choquito. Fazia um carneiro frito com
farinha que jamais vi igual.
Brincadeira de menino era finca, bola, peão, bola de gude, pique
pega, bicicleta. Minha rua não tinha asfalto, e quando chovia a
enxurrada nos levava. Como era bom tomar banho de chuva. Eu sempre
tive uma imaginação muito fértil, inventava brincadeiras de
guerreiros, bruxos e jornadas longínquas. Criava paisagens
cinematográficas e universos paralelos. O cabo de vassoura ora era
espada, ora cajado, noutras vezes um cavalo.
Costumo dizer que há várias vidas dentro de uma vida. A infância é
uma delas, talvez a mais incrível. Tudo é novidade, há urgência e
intensidade em cada coisa, não há nada que não vire brincadeira. Ainda
sou aquela criança. Como disse Paulinho da Viola, “eu não vivo no
passado, [mas] o passado vive em mim”.
Infância. É dessa água, desse cimento e dessa areia que sou feito.
Se escrevo, a matéria vem daí, das peripécias que contei e de
tantas outras que vivi.
A quem me ouviu vai a benção impregnada de boas recordações:
– Deus te dê o que deu ao bode: rabo, chifre e bigode *.
* Na minha interpretação, as partes referidas do bode simbolicamente significam: notoriedade, inteligência e poder.
* Na minha interpretação, as partes referidas do bode simbolicamente significam: notoriedade, inteligência e poder.
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