IMPÉRIO DO ESCRITO
A comunicação nunca foi tão
textual
Juliano Barreto Rodrigues1
Resumo
A
observação de que a comunicação tem migrado sensivelmente da fala
para a escrita levou a elaboração deste artigo científico. O
estranhamento pelo fato do fenômeno de deslocamento para o textual
ocorrer em uma sociedade que tem, como senso comum, que “escrever é
mais difícil do que falar” provocou a tentativa de explicar os
motivos da mudança que, até simplesmente começar a acontecer,
parecia tão improvável. Embora possam, por exemplo, falar
diretamente via aparelho celular, as pessoas preferem mandar
mensagens de texto. Mas o texto, por sua vez, está cada vez mais
longe da norma padrão da língua. Estamos diante de uma transição
cultural de proporções importantes e que está ocorrendo com
atenção discreta do meio científico (provavelmente não do meio
empresarial, que estuda o comportamento dos públicos para lucrar).
Este artigo vem contribuir para a suscitação de hipóteses sobre os
motivos da alteração do paradigma comunicacional e chamar a atenção
para a importância dessa modificação.
Palavras-chave:
Fala; escrita; deslocamento;
comunicação; tecnologias
Introdução
Parece estranho, em uma sociedade da sensação2
(imagética e auditiva por excelência), tratar o escrito,
supostamente silencioso e limitado aos caracteres tipográficos3,
como protagonista da comunicação. Mas não soará absurdo se o
observador descer à gênese das representações comunicacionais
mais comuns hoje – sejam elas imagens, vídeos, músicas, games,
combinações de meios, soluções midiáticas, etc. – e constatar
que, na origem, há quase sempre um roteiro, um plano, um script,
(escritos) a direcionar a realização concreta daquilo que será
exposto.
Mais que isso, as redes sociais – especialmente o Whatsapp que,
instalado no smartphone, permite comunicação gratuita4,
em tempo real, com um ou vários interlocutores situados em diversos
lugares, com possibilidade de envio de mensagens escritas, de
chamadas remotas, arquivos de áudio, de imagem e vídeo – dão
prova incontestável de que o textual tem tido precedência, em
comparação com a fala, na preferência comunicacional não
presencial das pessoas. Aqui é necessário que se faça um recorte
populacional: este artigo se refere às pessoas que têm acesso a
tais tecnologias.
Entenda “textual” num sentido amplíssimo e polissêmico,
empregado tanto para referência ao escrito como produto final
quanto ao produzido a partir do escrito, seja vídeo, imagem,
música, publicidade, etc.
Um problema surge quando o senso comum afirma que “pensar é fácil,
falar o que se pensou é difícil e escrever é mais difícil ainda”
e, a cada dia, prefere mais se comunicar por escrito. A hipótese
aqui levantada é que a comunicação tem se complexificado e se
transformado em resposta à complexificação das relações
(humanas, humanas com as tecnologias e humanas mediadas por
tecnologias), sem que os comunicantes se deem conta nem sofram5.
O escrito parece mais conveniente nesta sociedade complexa e de
distanciamento físico (as pessoas conversam sem estar frente a
frente e sem expor emoções que a fala revela). Por isso tem sido
alçado, instintiva e artificialmente6, ao protagonismo
comunicacional.
Metodologia
A proposta deste artigo científico segue o fluxo dos insights
surgidos a partir da definição de tema inédito, talvez mais
facilmente trabalhado em um ensaio (que permitiria maior liberdade
discursiva) ou em uma tese, meio mais adequado ao tratamento de
objetos de estudo originais.
Para construir a lógica dos argumentos e explicar porque o senso
comum considera a comunicação escrita mais complicada do que a
falada – e ainda assim tem migrado para ela – optou-se por
particularizar e esclarecer três momentos da gênese comunicacional,
não lineares e nem sempre realizáveis concomitantemente: o
surgimento de uma ideia ou imagem, a sua transformação em
pensamento (já vinculado à linguagem e processo comunicativo
interno ou externo), a exteriorização do pensamento em fala ou em
texto.
O sentido desta primeira exposição é indicar a progressiva
complexificação que vai do primeiro processo até o da fala e, mais
ainda, da escrita. Para tanto, o referencial teórico utilizado é o
trabalho Pensamento e Linguagem, de Vygotsky (publicado
originalmente em 1962).
As hipóteses levantadas incitam uma posterior análise mais detida,
que pode, quando realizada (talvez no trabalho de conclusão de uma
pós-graduação stricto sensu), inclusive refutá-las. São a
defesa de um ponto de vista, lastreado teoricamente, a ser
aprofundado e validado amplamente, mas são ideias que tem eco e
partidários entre alguns estudiosos da pós-modernidade, fato que
denota sua importância.
Pretensa função deste artigo: servir como startupping de uma
maior atenção da academia para o fenômeno da suposta migração
fala-escrita, resultante da atual fase das tecnologias da
comunicação. É ser ponto de partida, sugestão para mais
pesquisas, objeto de ratificação ou ataque (no todo ou em partes) -
principalmente de aprofundamento -, com o fim de alcançar um maior
entendimento das transformações no comportamento comunicacional
para, a partir daí, prever novos mercados, possibilidades
educacionais, psicológicas e médicas, políticas de proteção às
liberdades de pensamento e informação, etc.
Do Pensamento à Fala, da Fala à
Escrita – Complexificação Crescente
Embora haja estudos psicolinguísticos, neurolinguísticos,
cognitivos, filosóficos, literários, históricos, acerca dos
processos de formação do pensamento, da fala e da escrita, não se
trata de assunto adstrito ao âmbito científico, haja vista que tais
processos são experiências comuns, naturalmente vividas por todas
as pessoas. Nesse sentido se, por um lado, pode ser difícil teorizar
cientificamente acerca dos processos, por outro, são fáceis de
entender, intuitiva e empiricamente, e de falar sobre. Ou seja, não
é preciso ser um especialista para participar do debate.
Inicialmente, para definir melhor a discussão, é importante
diferenciar duas expressões: pensamento e imaginação. Por
'imaginação' entenda-se a formação de imagens7
mentais, seja reproduzindo/reconstruindo o que já foi visto, seja
criando imagens novas ou associando imagens diversas. Tome-se
'pensamento' como o processamento de ideias (imagéticas ou não),
num diálogo mental interior com fins a alguma conclusão. Note-se
que quando se fala no surgimento de imagens utiliza-se aqui os verbos
“criar”, “associar”, “reproduzir”, “reconstruir8
”, enquanto para pensamento utilizou-se “processar”, indicando
um trabalho de transformação (neste caso amarrado, conforme será
demonstrado, à linguagem).
Segundo VYGOTSKY (2002, pág. 3), os processos mentais são, até os
dois anos de idade, desvinculados da linguagem e, a partir da sua
aquisição, serão cada vez mais indissociáveis. Isso é regra,
principalmente em relação ao pensamento: adquirida a linguagem,
todo pensamento se realizará, necessariamente, por toda a vida do
ser humano saudável, por meio dela ou a partir dela. A “conversa”
mental se dará, discursivamente, utilizando a língua internalizada
conhecida.
Kleist, no seu fragmento intitulado Sobre a Elaboração
Progressiva dos Pensamentos Através da Fala (1805) descreve o
paralelo pensamento/linguagem, como partes interdependentes:
As
fileiras das ideias e seus nomes vão lado a lado, e são congruentes
os atos emocionais para um e outro. A linguagem segue sem restrições,
não como um freio da roda da mente, mas como uma segunda roda a ela
paralela e contínua, rodando no seu [mesmo] eixo.” [tradução
livre]. (KLEIST, 1805, pág. 3)9
Imagens são invasivas até durante o sono (sonhos) e em exercícios
de “esvaziamento” como a meditação. Quase sempre puxam palavras
(e vice-versa), evoluindo assim para o pensamento. Daí podem, ou
não, vir a se tornar ato de comunicação exterior – momento que
exige um trabalho mental específico de seleção e timing das
palavras, bem como de adequação e reposicionamento diante das
respostas (no caso da fala).
Conforme Vygotsky (2002, pág. 87), “Qualquer análise da interação
entre o pensamento e a palavra terá de principiar por investigar os
diferentes planos e fases que um pensamento percorre antes de se
encarnar nas palavras”. Assim, faça-se uma graduação (rumo ao
mais complexo) do processo que vai da imaginação à fala, e desta à
escrita, nos seguintes momentos: imaginação, pensamento
(organização e conclusões para si), pensamento sobre como dizer
(tradução10 rápida do pensamento) ou pensamento sobre
como escrever (tradução lenta do pensamento), exteriorização
(fala ou escrita). Para clarificar tal ideia, ajudará explicar
melhor cada etapa.
Imaginação, do latim imaginatĭo, é justamente a capacidade
de criar imagens mentais11 , como dito anteriormente. É
cinematográfica, mas fugidia, obnubilada e circular (sai e volta
para o foco, às vezes se mescla ou se transforma a cada retorno) e
nem sempre tende a alguma conclusão lógica. O cérebro busca
preencher lacunas e comumente não o faz de forma coerente,
cronológica, sequencial e para uma direção consequente. O maior
exemplo são os sonhos, expressão mais vívida dos processos
imaginativos: um rosto conhecido pode se tornar em outro sem que, no
entanto, o sonhador deixe de reconhecer a nova representação como a
da primeira pessoa; daí a pouco, esta pode se tornar um animal; a
história pode tomar outro rumo absurdamente diferente do que vinha
tomando ou voltar a algum ponto já ultrapassado e, frequentemente, o
sonho acaba sem chegar a algum final coerente e lógico12
.
O imaginado pode surgir tanto sem como por estímulo. É menos
dirigível do que o pensamento13, tanto que a mera
suscitação da negação de algo traz à mente a imagem do negado.
Pensar é submeter esse mailström14 a regras
lógicas, linguísticas, discursivas, preferenciais, para se alcançar
determinada conclusão.
A imagem não será externalizada, comunicada, se não submetida ao
pensamento, que lhe dá um pouco mais de 'concreção' (um corpo
exprimível), permitindo que seja traduzida para a fala ou para a
escrita. Apresentar as diferenças entre esses dois trabalhos de
tradução conduzirá para a validação da hipótese levantada no
início do artigo.
A questão do pensamento para produzir a fala ou daquele para
produzir a escrita pode ser resumidamente explicada fazendo-se a
analogia com o trabalho das fibras musculares estriadas esqueléticas.
As chamadas fibras de tipo IIb têm resposta rápida (explosão) e
grande força, são de pronto emprego mas se esgotam rápido, não
suportando esforços de longa duração. Já as fibras tipo I são de
contração lenta e muito resistentes à fadiga, sendo apropriadas
para exercícios de resistência15. Ambos os tipos de
fibras estão presentes em todos os músculos estriados, mas fatores
genéticos determinam o predomínio de umas ou outras em cada
indivíduo, o que, em tese, imporia sua aptidão e facilidade para
esportes de força ou de resistência. Neste ponto, cabe uma
comparação com o cérebro humano que, embora não seja tecido
muscular, também tem, em cada indivíduo, maior propensão, por
exemplo, para o raciocínio lógico-matemático ou para o raciocínio
discursivo. Seguindo esta linha de pensamento, sugere-se que algumas
pessoas têm mais facilidade para a expressão oral, a fala –
resposta rápida a estímulo imediato –, enquanto outras se
expressam melhor por escrito, porque precisam remoer mais profunda e
lentamente os pensamentos antes de externalizá-los com a clareza e
exatidão que desejam (talvez esse desejo – autorregulação –
seja marca deste grupo, e o que faz com que tenham certa limitação
na comunicação falada, que exige resposta rápida).
Poder-se-ia argumentar que há quem se comunique muito bem tanto
falando quanto por escrito. De fato, da mesma forma que existem
atletas que têm bons resultados em provas de força e também nas de
resistência, seja por efeito do treinamento ou por uma facilidade
natural para as duas coisas. Mas, o que se afirma aqui é a
propensão. As pessoas tendem a se polarizar em um lado ou em outro.
Isso se exacerba e é mais notável nas atividades de alto
rendimento. Se são muito boas correndo maratonas, não serão em
tiros de cem metros. Se escrevem muito bem, provavelmente não serão
tão boas debatendo ou discursando de improviso.
No ano 2000, em um seminário internacional realizado em Cortona16,
na Itália, cientistas indicaram como provável época de surgimento
da linguagem falada (embora salientem que não houve um momento único
em todo o planeta) cerca 15 milhões de anos atrás. Contra cerca de
6 mil anos de escrita.
Sabendo que a evolução biológica humana se dá em contagem macro
de tempo, a habilidade de fala já é, há muito, internalizada e,
por isso, considerada “natural”, enquanto a da escrita ainda está
em processo de “naturalização”. A fala surgiu de uma
necessidade imediata de comunicação, enquanto a escrita foi
desenvolvida para formar um repositório de memória (e precisa ser
ensinada, a criança não a aprende livremente17 como a
fala). Talvez tudo isso explique o porquê da dificuldade em se
comunicar por escrito, comparado à fala (ainda que o texto permita
mais tempo de raciocínio). Trata-se apenas de uma questão de
adaptação evolutiva.
É importante, para as conclusões a que o artigo quer chegar,
reforçar a questão da maior complexidade da escrita em relação à
fala. Levando-se em conta que a fala é, grosso modo, uma tradução
rápida da imaginação ou do pensamento em palavras, a escrita está
pelo menos um nível acima em relação à complexidade: é a
tradução da fala fabricada mentalmente mas não exteriorizada
oralmente, que vai se demorar um pouco mais na mente, circulando por
maior ou menor tempo, em um processo consciente e um pouco mais
meticuloso de seleção e associação, para tentar sair redigida com
a exatidão e o efeito desejados (e sob as regras próprias desse
meio de expressão, que são diferentes das da fala). O processo
mental para a escrita seria comparável, em complexidade, com um
monólogo (embora seja possível argumentar que a comparação não é
perfeita, precisando ser bem explicada nas diferenças, já que,
muitas vezes ele – o monólogo interior – também ocorre,
internamente, antes da fala, mas mais rapidamente):
A
velocidade do discurso oral não se propicia a um processo complicado
de formulação – e não deixa tempo para deliberações e opções.
O diálogo implica a expressão imediata não pré-determinada. É
constituído por respostas e réplicas: é uma cadeia de reações.
Em comparação com isto, o monólogo é uma formação complexa
dando ao seu autor tempo e vagar para uma cuidada e consciente
elaboração lingüística. No discurso escrito, ao qual faltam os
apoios situacionais, tem que se conseguir a comunicação por recurso
exclusivo às palavras e suas combinações. (VYGOTSKY 2002, pág.
101).
Vygotsky (2002, págs. 99-101) acrescenta que, como no discurso
escrito o tom de voz, os gestos, as expressões faciais – que podem
dar significado diferente às palavras – não estão presentes, é
necessário que se use muito mais palavras, de forma (escolha e
colocação) muito mais exata, para deixar claro o sentido do que se
quer dizer. “O espírito que transcreve é aquele que está sempre
negando. Ele reprime a sensorialidade, relega o gesto e a palavra a
um nível subalterno e solicita da audição interna um esforço sem
precedentes de articulação e de discernimento.” (DUFOURT, 1997,
pág. 10).
Sob outra perspectiva, psicossocial, talvez seja possível sugerir
que as pessoas que têm maior facilidade de expressão por escrito,
do que pela fala, são aquelas possuidoras de um mecanismo inibitório
social mais sensível: ou temem que os interlocutores interpretem o
que venham a dizer de forma errada ou, então, não têm
autoconfiança suficiente para exprimirem-se sobre determinados
assuntos sem um raciocínio mais demorado e cuidadoso.
Aquilo a que Robert Mckee, professor dos roteiristas de Hollywood,
chama de “máscaras privadas” – os freios que impedem as
pessoas de dizerem os pensamentos e sentimentos que lhes vêm à
cabeça (e que ele afirma que se fossem expostos integralmente
traumatizariam os outros) – provavelmente é mais limitante,
intimamente, naqueles que optam pelo caminho mais complexo da escrita
do que nos que se sentem mais confortáveis falando. O 'preço' da
maior elaboração do raciocínio pelo escritor, processo mais
penoso, seria compensado pela maior sensação de controle sobre o
dito e sobre as possíveis interpretações que os outros poderiam
lhe dar. Conforme Dufourt (1997, págs. 10-11), “[…] os
artifícios da escrita conduzem a novos modos de pensamento. […] A
pena faz uma limpeza. Ela reorganiza tudo. Escrever é eliminar. […].
A escrita permite criar um mundo que não deve mais nada nem ao
conformismo, nem a espontaneidade [ou seja, à interpretação]”.
Nesse sentido, “A mediação gráfica é o artifício supremo, a
arte dos substitutivos. […]” (ibidem), substituindo gestos, sons,
imagens, sentidos, de forma a controlar, mais do que é possível na
fala, os efeitos e significados das palavras utilizadas.
“Não foi isso o que eu quis dizer”. Quem nunca disse ou pensou
algo assim? Acontece porque são utilizados signos linguísticos para
a comunicação (oral ou escrita), e eles são econômicos em sua
representação. Está-se sempre à beira da ‘má’ interpretação.
Quanto maior o repertório sígnico e seu domínio, maior a
possibilidade de expressão mais exata, maior a especificidade. Mas a
‘boa’ interpretação, o ‘bom’ entendimento, dependerão
também do repertório do destinatário (e de outros incontáveis
fatores ideológicos, sociais, culturais, etc., que o influenciam).
Segundo Koch (1995), nenhuma expressão verbal (escrita ou oral) tem
as informações completas para sua compreensão, sendo necessário
que o receptor a relacione com o contexto e com suas próprias
memórias para decodificar satisfatoriamente a mensagem. Assim, não
é possível ao enunciador ou redator ter domínio total do
significado. Se por um lado a fala tem, em relação à escrita, mais
ruídos e perde na escolha minuciosa das palavras, por outro, a
linguagem não verbal que lhe acompanha às vezes supre ou corrige,
com vantagem, as faltas e falhas que levariam a significados dúbios.
Talvez seja falsa ou superestimada a sensação de controle do
discurso escrito.
Então, se as vantagens são discutíveis, o que estaria levando
tantas pessoas a migrarem da preferência pela comunicação falada
para a escrita, ainda que muitas delas sejam, aparentemente (de
acordo com a norma padrão da língua), mal aparelhadas para sua
utilização?
O preconceito linguístico é muito discutido e não tem lugar na
sociedade que se apoderou do textual, o assumiu como seu e passou a
aplicá-lo simbioticamente com os moldes da fala, a despeito das
regras gramaticais da norma culta ou de qualquer norma que seja
externa à prática dialogal. Este empoderamento18
democrático tem transformado os hábitos comunicacionais,
principalmente na forma da expressão escrita.
O império do escrito:
um paradoxo resultante do avanço tecnológico?
A linguagem dos smartphones e das redes sociais é fonética,
baseada não só nos sons, mas nas regras da fala. Muito abreviada
(fds, kkkkk, kbç, aki, qdo, vc, etc), despreocupada com a pontuação,
com maiúsculas, possui recursos de ênfase e de sentimento
(emoticons, trilha sonora, inclusão de vídeo ou imagem, etc.). Há
um movimento de aproximação entre fala e escrita: de um lado a
migração da fala para a escrita – esta, em tese, um artefato mais
complexo – e, de outro, uma simplificação e coloquialização da
escrita. Os usuários da língua adéquam suas maneiras de expressão
com base nas situações encontradas, não se limitando a padrões
absolutos (neste sentido, cf. BAGNO, 2007).
A primeira hipótese levantada no início do artigo, de que o
deslocamento de preferência – da comunicação falada para a
escrita – seria uma resposta natural à complexificação do mundo
e das relações agora parece correta, embora evidencie uma lacuna
sugestiva da necessidade de aprofundamento, em pesquisa de maior
alcance, do que seja essa “complexificação”, do porquê da sua
influência no processo aqui estudado. A justificativa de que o
escrito, por permitir maior tempo e elaboração da expressão do que
a fala, é forma mais conveniente para dar respostas nesta sociedade
complexa, e de que o distanciamento físico entre as pessoas
(característico da pós-modernidade) favorece o fenômeno, também
são plausíveis, mas não concludentes. Além desses motivos, há
outros possíveis, mais ligados aos meios, às fontes:
A propagação dos computadores e da internet teve, já nos primeiros
anos da sua popularização, impacto enorme na sociedade, tanto que
surgiram gerações definidas principalmente pela relação com essas
tecnologias (gerações X, Y, Z...). É interessante notar que são
tecnologias com as quais a parte ativa da interação19 é
predominantemente via teclado, textual portanto. Dos computadores
instalados em pontos fixos surgiram os portáteis – tablets,
notebooks, iPad’s, smartphones, todos ainda
com comandos de teclado (tradicionais, ou touchscreen20,
ou até multitouch21). Em uma realidade que conta
com 5 bilhões22 de celulares no mundo, para uma população
de 7,5 bilhões23 de pessoas, sem falar nos outros
aparelhos, fica óbvio que sua utilização tem transformado a forma
de comunicação (bem como a aquisição de conhecimentos e a
cultura) no mundo.
À utilização textual predominante (via vários tipos de teclados)
das tecnologias, que interfere na relação das pessoas com a
escrita, se juntam outros elementos psicossociais da pós-modernidade
(em grande parte surgidos como consequência dessas tecnologias) que
também empurram a comunicação para o meio escrito: a
individualidade exacerbada, que rechaça o contato entre as pessoas;
o gosto pela “virtualidade” das relações; a possibilidade de
criar e alimentar uma imagem de si (criação e assunção de um
personagem, glamorização, celebrização) que só pode ser
sustentada à distância; a menor demonstração de sentimentos da
mensagem escrita em comparação com a falada; a criação de “mundos
fantásticos” insubsistentes às relações ‘reais’, etc.
Abrindo um parêntese, será tratada, nos próximos parágrafos, uma
outra questão, mais abstrata, mas que traz aprofundamento do viés
psicológico da preferência pela escrita:
Uma relação mais estreita pode ser criada entre os extremos
imaginação e escrita. A chave está em um ponto médio
(aparentemente não acessível a todos): no pensamento
inventivo do criador de histórias ficcionais. Escrever ficções é
criar imagens e tentar transportá-las ao leitor através do escrito.
O pensamento atua costurando ligações coerentes, situando as
imagens em um tempo e espaço ficcionais, trazendo linearidade para a
narrativa, com o objetivo mais comum de se chegar a um iter com
início, meio e fim (embora em uma chamada escrita de processo, em
contraposição à de resultado, esta sequência não seja essencial,
podendo até inexistir partes dela). A prática dessa escrita de
ficção transforma o próprio mecanismo de imaginação, tanto que,
no exercício de criar ficções, os sonhos (que são, em tese, o
ápice da imaginação sem limites) também podem começar a ficar
estruturados, passando a ter início, meio e fim, encadeados e
lógicos24 .
Talvez, por esse tipo de expectativa de lógica, as pessoas tenham
fascinação pelo cinema: as imagens (forma de percepção mais
imediata) têm continuidade, linearidade e lógica temporal e
espacial, começo, meio e fim (diferente do onírico). E não há
ansiedade por desfecho, porque ele já está prometido. Há o Logos25
.
A segurança da lógica, de se chegar a uma conclusão com mais
sentido, também parece ser maior na comunicação escrita do que na
fala. Justamente porque o timing da escrita é diferente,
sendo possível 'aparar arestas', reformular várias vezes, trabalhar
o efeito, antes de entregar o que se quer dizer. E todos têm medo de
como serão entendidos e do conceito que de si farão os outros,
principalmente no caso da escrita, que é perene. Nesta sociedade da
celebrização, a imagem tem um imenso valor pessoal. Deduz-se que
este seja mais um motivo para a crescente valorização da escrita
como meio de comunicação corriqueiro: embora mais complexa, em tese
assegura, ou ao menos parece assegurar, maior controle da
“representação do eu na vida cotidiana” (parafraseando
Goffman). A mais provável contradição dessa hipótese é que a 'má
escrita'26 (comum na comunicação mais descuidada do
Whatsapp e das redes sociais) teria, possivelmente, efeito negativo
na imagem que se quer criar ou destacar.
Considerações finais
São muitas as presunções aqui apresentadas, com o intuito de: 1º
– demonstrar a maior complexidade da escrita em relação à fala;
2º – especular com raciocínio científico o porquê de, apesar
disso, a escrita estar ganhando cada vez mais terreno em parte da
comunicação interrelacional que antes era quase exclusivamente da
fala. Para se chegar a uma argumentação lógica desses dois pontos
é que se partiu do surgimento originário do pensamento (a partir da
imaginação, que lhe é anterior) e demonstrou-se que, dele para a
fala, há todo um processamento específico, do qual uma próxima
etapa, a da escrita, se vale, em parte, para realizar sua própria
organização, também específica, numa sucessão de eventos mentais
particulares. Provado minimamente esse item, indicou-se hipóteses
plausíveis para tentar explicar porque as tecnologias de comunicação
têm alçado a escrita a uma parte do espaço dialógico que, até
então, era preponderantemente da fala.
Trabalhou-se, inicialmente, a hipótese ampla de que a
complexificação da comunicação – rumo ao impensável cenário
de cada vez maior utilização da escrita, quando se achava que esta
tendia a ser (com o advento das tecnologias da era da internet) cada
vez menos empregada – responderia a uma complexificação das
relações, entre as pessoas e delas com as máquinas. Esta hipótese
parece, aqui nas conclusões, correta.
Como possível argumento a explicar a adoção crescente – apesar
do maior trabalho mental de elaboração – da escrita em relação
à fala, apontou-se a superior sensação de controle, pelo
comunicador, do que apresenta por escrito, em relação àquilo que é
dito. Porém, concluiu-se que essa suposta vantagem é discutível,
já que mecanismos peculiares à fala (correções e substituições
simultâneas de palavras em resposta às reações do enunciatário;
a linguagem não-verbal dos gestos, silêncios, expressões; as
ênfases, alterações de volume, velocidade, etc.) também podem ir
burilando a interpretação a um resultado desejável pelo
enunciador, em tempo real, no momento discursivo. Esta constatação
levou à busca de outras possíveis explicações para o fenômeno da
alegada crescente migração de preferência da comunicação falada
para a escrita.
Uma delas sugere que o fato da interface com a maioria das
tecnologias de comunicação atuais ser o teclado, obrigatoriamente
utilizado por quem deseja acessá-las, tem interferido na relação
das pessoas com a escrita, familiarizando-as com seu formato e
naturalizando (até adaptando) sua utilização.
Apontou-se também elementos psicossociais característicos da
pós-modernidade como estimulantes da comunicação por escrito: o
individualismo, que reduz o contato pessoal ‘real’; as
possibilidades de apresentar uma imagem virtual de si trabalhada como
um personagem; a oportunidade de mascaramento dos sentimentos
propiciada pelo escrito, sem interação cara a cara; a invenção de
enredos e vidas irreais a partir de imagens e relações escolhidas e
editadas com determinado objetivo.
Outra alegação foi a maior segurança em se alcançar uma conclusão
lógica com a escrita (justamente por permitir ‘ruminar’ as
ideias antes de apresentá-las), bem como a possibilidade de
trabalhar melhor o efeito que se quer provocar no receptor com as
palavras. O desejo de controle de como serão entendidos, de como
serão julgados – em uma sociedade do marketing, em que a imagem
pessoal é um capital – leva os indivíduos a preferir formas de se
comunicar mais seguras, que não deponham contra a representação
que pretendem ter socialmente.
Diante do que foi apresentado, é certo dizer que o fenômeno
estudado advém de um conjunto de elementos, parte de uma transição
cultural, não de uma evolução natural27 . Por causa do
apelo imagético e sonoro, a maior apropriação da escrita parecia
algo inesperado quando as tecnologias relacionadas à internet
surgiram. Aqueles que cogitavam o fim do livro também vaticinavam
que os jovens estavam se afastando irremediavelmente da escrita. Mas
isso não se confirmou, tanto os livros continuam vendendo muito,
seja no formato físico ou digital, como nunca se escreveu tanto
(inclusive livros, coisa que prova a adaptabilidade das gerações
on-line).
É fato que a comunicação é cada vez mais textual. Entender esse
processo ajuda na compreensão do mundo e das relações. As
tecnologias ainda vão alterar muito o comportamento das pessoas e
pode até ser que outra reviravolta, como a ocorrida com o surgimento
do computador, da internet, do aparelho de telefonia celular, dê
novos rumos para a comunicação e destino humanos. Por enquanto, ter
consciência do valor do textual é participar lucidamente, e de
forma mais ativa, das oportunidades do império do escrito.
Notas:
1 Juliano Barreto Rodrigues é Mestre em Direito, Relações
Internacionais e Desenvolvimento (PUC-GO); especialista em Direito
Penal (UFG), Análise Criminal (FASEM), Direito Privado (FESURV) e
Direito Processual (FESURV); pós-graduando em Assessoria de
Comunicação e Marketing (UFG) e em Português, Língua e Literatura
(METODISTA – SP); graduado em Direito (PUC-GO). Autor publicado e
criador do blog de criação literária Coletivo sem Ponto
(<www.coletivosemponto.blogspot.com>).
2 "Sociedade da sensação", ou “sociedade excitada”
(TÜRCKE, 2010), faz referência ao momento histórico atual,
caracterizado pelo espetacular, o chamativo, pela hiperestimulação
sensorial através das tecnologias, que agem psicologicamente como
drogas anestesiantes a afastar as pessoas de sua situação concreta.
3 Genericamente tratados, seja letra impressa ou escrita cursiva.
4 Na verdade a gratuidade é do aplicativo, mas o utilizador precisa
ter acesso a internet e, obviamente, também um aparelho que sirva de
suporte ao software.
5 No sentido de ter que dispender qualquer esforço deliberado para
se adaptar.
6 Não significando aqui o antônimo de “naturalmente”, mas sim
no sentido de expediente habilidoso, artifício facilitador. Neste
caso, a utilização do artifício é não deliberada, mas evolução
natural (simples utilização de ferramenta intuída como mais útil
e oportuna para o momento histórico).
7 Quando se fala “imagens”
também se está referindo, para além do visual, a lembranças ou
criação de sons, referências olfativas, táteis e
gustativas.
8 O que pressupõe a possibilidade de acrescentamentos ou
modificações.
9 Do original: “Die Reihen der Vorstellungen und ihrer
Bezeichnungen gehen nebeneinander fort, und die Gemütsakte für eins
und das andere kongruieren. Die Sprache ist alsdann keine Fessel,
etwa wie ein Hemmschuh an dem Rade des Geistes, sondern wie ein
zweites mit ihm parallel fortlaufendes Rad an seiner Achse.”
10 No sentido de descrição, explicação, reflexão.
11 Daí, também, a sua relação com “criatividade”, que seria a
capacidade de criar a partir da combinação de imagens ou ideias.
Mas aí, de acordo com o significado restrito de imaginação e
pensamento que foram adotados neste artigo, a criatividade estaria
englobada no âmbito dos pensamentos (caracterizados pela imaginação
processada pelo diálogo psicológico interno do criador).
12 Na imaginação, como no sonho, identifica-se o ethos,
elemento de credibilidade (porque parte do próprio
imaginador/sonhador, que pode ser comparado ao enunciador de um
discurso), mas nem sempre se identifica o pathos (paixão,
efeito) e o logos (lógica).
13 Artistas são, ao que parece, mais familiarizados com a
materialização onírico-concreta, sendo capazes de dirigir um pouco
mais a imaginação e enfeixá-la (ou antes traduzi-la) em algo
materializado.
14 Turbilhão líquido.
15 Cf. SANTIAGO, Renato. Os tipos de músculos e as fibras
musculares. Hora do Treino [site]. 9 de maio de 2018.
Disponível em: <https://horadotreino.com.br/os-tipos-de-musculos/>
. Acessado em 30 de maio de 2018.
16 Cf. DA REDAÇÃO. Como, quando e porque o ser humano começou a
falar? As mais recentes respostas contam uma história apaixonante,
que começa com um pequeno comedor de insetos. Super Interessante
[site]. 31 de dezembro de 1988. Disponível em:
<https://super.abril.com.br/comportamento/palavra-de-homem/>.
Acessado em 17 de julho de 2018.
17 Generalização conceitual. Sabe-se que nem a fala surge “do
nada”, sem um aprendizado por imitação, que pode ser considerado
um processo de ensino, fragmentário, sem método e informal, mas,
ainda assim, uma forma de ensino.
18 Termo da moda, empregado aqui com o sentido de o sujeito
atribuir-se o domínio, o poder de algo.
19 Talvez seja um termo inexato, por remeter à ideia de relação
entre organismos vivos inter-relacionados, pessoas.
20 Tela sensível ao toque.
21 Diferentes toques na tela executam diferentes funções.
22 Segundo um estudo realizado pela associação global de operadoras
(GSMA) e divulgado em 27 de fevereiro de 2017, no Congresso Mundial
do Celular em Barcelona. Cf:
<https://oglobo.globo.com/economia/mais-de-cinco-bilhoes-de-pessoas-terao-celular-em-2017-20988439#ixzz4kaRkKxiQ>.
Acessado em 20 de jun. 2017.
23 Conforme o “Relógio da População Mundial”, disponível em:
<http://countrymeters.info/pt/> . Acesso em 20 de jun. 2017.
24 A afirmação se baseia em experiência pessoal do autor do
artigo, na sua vivência escrevendo narrativas ficcionais. É
hipótese que depende de pesquisas para ser comprovada e adquirir
generalidade científica.
25 Ethos, Pathos e Logos - formas retóricas de apelo persuasivo
articuladas por Aristóteles. Ethos apela à ética, Pathos às
paixões e emoções, Logos à lógica.
26 Termo controverso. Cabível aqui somente por ser o comumente
utilizado pelo leitor médio para classificar e criticar o texto que
foge flagrantemente de alguns padrões que reconhece para a escrita,
ainda que coloquializada.
A
expressão “leitor médio” também é relativa, sem definição
científica objetiva. Designa, em comunicação, o leitor que não é
especialista em algum gênero, nem é autor, nem tem – em regra –
profundos compromissos literários de interpretação, estéticos
e/ou críticos nas leituras que realiza.
27 Talvez seja interessante tratá-lo como resultante de uma evolução
artificial.
REFERÊNCIAS
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variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.
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Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música. Nº 1, 1997.
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Gedanken beim Reden (Sobre a Elaboração Progressiva dos
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Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. 2002. Edição
eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org). Acessado em 20
jun. 2017. Disponível em: <http://www.institutoelo.org.br/site/files/publications/5157a7235ffccfd9ca905e359020c413.pdf>.
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