Por
Juliano
Barreto Rodrigues
Referência:
ZENI,
Bruno. O
fluxo silencioso das máquinas: pequenas iluminações asfálticas.
São Paulo : Ateliê Editorial, 2002. Págs. 61-62.
O porquê da
classificação como miniconto:
Miniconto,
microrelato, termos ainda não pacíficos e de significado não
unânime na academia, mas cada vez mais utilizados, definem: 1)
textos concisos (mais do que simplesmente breves); 2) com
narratividade que mostre a progressão de uma personagem de um
determinado estado a outro; 3) Que cause um efeito (empático,
antipático, de perplexidade, de estranhamento) – através de
forçada adesão do leitor, causada por determinado uso deliberado da
linguagem; 4) seja aberto, no sentido de não trazer todas as
conclusões, deixando que o leitor as tire; 5) e exato, na medida em
que o autor consiga direcionar o leitor ao efeito pretendido, e não
a outro (por isso a escolha e posição das palavras e frases – da
forma, enfim – são muito importantes neste gênero).
Todos esses
elementos característicos estão presentes no texto estudado. Há
ainda a falta de parágrafos, a forma de utilização do título, da
pontuação, das palavras, que reforçam a classificação no gênero
miniconto.
Contextualização
do texto com o título do livro
O
título do livro de Bruno Zeni é “O fluxo silencioso das
máquinas”. No miniconto específico, um de vários, a ideia de
fluxo das máquinas - coincidente com o título do livro - está
presente, embora o texto contradiga o adjetivo “silencioso”,
acrescido ao substantivo “fluxo” do título da obra. Sons estão
referidos o tempo todo, inclusive no não mencionado toque do
telefone celular que interrompe quatro vezes o trajeto do
protagonista. Há música, som de carros, até de um helicóptero,
comparado ao som da cidade: “Por que o barulho das pás de um
helicóptero parece tão alto, como se tomasse conta da cidade, como
se fosse mesmo o barulho da cidade?”
Há
correlação direta com o subtítulo do livro, “pequenas
iluminações asfálticas”: a pequenez do corriqueiro, da rotina,
do dia-a-dia que se repete na cidade, no asfalto (no trânsito, neste
texto em particular). São inúmeras as referências às luzes - de
carros (que se deduz pelo horário em que se passa o enredo: início
da noite), do telão luminoso de cristal líquido, da parede do
prédio “cintilando” a imagem de uma mulher, dos giroflex das
ambulâncias (também só sugeridos, não ditos).
Impressão
visual
Um só bloco de
texto desalinhado do lado direito, sem parágrafos, que tem como
facilitador da leitura da mancha gráfica apenas as margens, as
entrelinhas e a serifa da fonte utilizada. A escolha da edição casa
bem com o conteúdo: o desalinhamento dá ideia do caos do tema, a
falta de parágrafos insinua um fluxo constante, o bloco gráfico
maciço remete à concisão do texto e, psicologicamente, ao peso e
cansaço da situação vivida pelo narrador.
Título
do texto
Há a diferenciação
ortográfica da primeira frase, que funciona, assim, como título, a
exemplo do que se ensina em manuais de escrita para web. O mecanismo
serve para facilitar que se acrescente o texto em dispositivos móveis
sem que haja desconfiguração de formatação. Também é meio para
que o título não seja deslocado, e sim faça parte do próprio
texto (sem ser necessário repetir sua informação no restante do
corpo). Recurso muito usado no jornalismo digital (Bruno Zeni é
jornalista).
O
narrador
Narrador personagem
em segunda pessoa, que faz com que o leitor se envolva de forma mais
intensa com o que está lendo, percebendo as coisas de forma mais
real, mais profunda. “Você” é o interlocutor do diálogo
telefônico apenas insinuado. Para um leitor que não é de São
Paulo, talvez a associação pessoal não aconteça. Noutros pontos,
o narrador alterna entre segunda e primeiras pessoas do singular e do
plural, o que reforça o tom dialogal:
“[Eu] Não sei se
propaganda de roupa [...]” – primeira pessoa do singular.
“[...] vamos
esperar um pouco” – nós, primeira pessoa do plural.
No entanto, na maior
parte do tempo, o narrador está falando consigo mesmo, realizando um
monólogo interior direto, demonstrando impressões internas sobre o
trajeto, os sons, imagens, sensações e sentimentos que está tendo.
Isso é trabalhado à maneira de um fluxo de consciência,
evidenciado pela forma de pontuação e alternância desordenada
entre informações objetivas e subjetivas, pela interrogação para
si mesmo (“Por que o barulho das pás de um helicóptero parece tão
alto, [...], como se fosse mesmo o barulho
da cidade?”).
No final, há uma
parte que representa bem claramente a fragmentação característica
do fluxo de consciência: “Todo mundo na rua. Todo dia. Me tira
daqui. Me leva pra casa. Me beija. Dezenove e cinquenta e dois.
Pensando em nós dois. Depois que tudo isso passar. Vai ser melhor.”
O narrador é
protagonista, sua narração se limita a seu ponto de vista, não
tendo acesso aos pensamentos da outra personagem (não identificável
se homem ou mulher. Se o leitor se identificar – como é possível
pela narração em segunda pessoa – o gênero será o seu).
Parágrafos
Não há parágrafos
explícitos para o leitor “respirar”. As frases são curtas. Uso
dos dois pontos: 4 vezes, três deles muito próximos – aceleram a
leitura. À rapidez do texto se contrapõe a lentidão do trânsito
descrito, indicando a tensão (e estresse) entre a pressa do narrador
personagem e a arrastada fluidez do tráfego.
“Você liga pra
[ou
para]
cá
e conta [...]”. Usado 5 vezes. Cada entrada, em discurso indireto
livre, corta a cena, fazendo as vezes de um parágrafo.
Em todo o texto,
embora os deduzidos parágrafos (que não existem de fato) tragam
basicamente a repetição da mesma frase inicial, a preposição pra
é
utilizada duas vezes, nas frases de início e de final apenas,
trazendo uma contradição com a forma para
(mais
formal) utilizada no interior do texto. A sensação é de que usa o
coloquial pra
como
se estivesse se referindo diretamente ao interlocutor no telefone e o
para
quando está falando consigo mesmo.
Esses “parágrafos”
(embora não explícitos) vão diminuindo de tamanho (como a
distância até o destino do narrador) até que o último seja apenas
uma frase.
O texto começa e
termina com elocução parecida, dando a ideia de um ciclo ruim que
se repete todo o dia, mas há um alento na última frase que parece
dar sentido ao caos que é suportado: “Você liga pra
cá
e conta como
se ama
em São Paulo”.
Transgressões
à linguagem formal
Algumas
transgressões da linguagem formal são evidentes, como o uso da
preposição reduzida pra,
que dá o tom coloquial ao escrito (embora seja forma dicionarizada e
aceita pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa).
“A Avenida
Paulista segue
parada”
– transgressão. O verbo seguir se refere a passagem de tempo e não
ao espaço da Avenida Paulista, como a frase parece mostrar.
“Os carros andam
um
pouco melhor [...]”
– para indicar “um pouco mais rápido”.
“[...]o desespero
das sirentes.”
“Vai ser melhor”
– em vez de será
melhor.
“Depois que tudo
isso passar. Vai ser melhor”. A transgressão está na ênfase da
pausa causada pelo uso do ponto em vez de vírgula.
“Todo mundo na
rua. Todo dia. Me tira daqui. Me leva pra casa. Me beija.” – uso
de pontos, em vez de vírgulas. Há uma reclamação explícita.
Transgressão da ordem formal: me leva,
em vez de leve-me;
me tira,
em lugar de tire-me;
me beija,
e não, beije-me.
Outras
considerações
Não fica claro se o
interlocutor ao telefone está longe, ensinando melhores rotas, ou
dizendo que também está em outra parte do trânsito paulistano,
rumando para o mesmo destino.
O substantivo “São
Paulo” é um eco recorrente no texto. Usado seis vezes em quatro
parágrafos (apenas deduzidos, como já dito).
“No rádio, temos
música, pelo
menos”
– uma escapada, uma fuga a suavizar a espera. O “pelo menos”
demonstra insatisfação de estar naquela situação. O “temos”
reflete a alternância para 1ª pessoa do plural.
Há referências à
meteorologia, distâncias, horários, cotações, datas, informações
tão comuns e buscadas, com maior ou menor interesse (e de
importância variável), por quem transita diariamente pelas cidades.
A imagem da mulher
na parede impõe, “prende”, a atenção de quem passa. A potência
daquele apelo publicitário é irresistível. Mais uma marca – além
do congestionamento do trânsito, do tempo exíguo, dos excessos de
sons, luzes, sensações e imagens, e da própria forma do texto –
da Pós-modernidade.
Verbos,
advérbios, substantivos e adjetivos
Parece haver uma
escolha deliberada pela construção textual substantiva, tentando
economizar em verbos, o que se reflete também na reduzida utilização
de advérbios (de modo e intensidade) e locuções adverbiais em
comparação com a profusão de adjetivos e locuções adjetivas.
Visão rápida:
1.
ADVÉRBIOS E LOCUÇÕES ADVERBIAIS
-
segue parada
-
parece tão
alto
-
lentidão
-
andam
um
pouco melhor
-
vai ser melhor
2.
ADJETIVOS E LOCUÇÕES ADJETIVAS
-
imagens líquidas
-
imagens
líquidas
-
cores irreais
-
parcialmente
nublado
-
céu avermelhado
-
fluxo lento
-
trânsito intenso,
mas correndo
-
figura enorme
-
corpo inteiro
-
quadris enormes
-
mulher quente
-
cores quentes
-
mulher
quente
cintilando
-
trânsito
está completamente
parado
-
trânsito
complicado
-
trânsito
bom
Chamam a atenção o
uso de “líquidas” (adjetivo) e “cristal líquido”
(substantivo composto) porque o primeiro uso conota, e o segundo
denota, fluidez, coerente com fluxo de trânsito e, além disso,
termos muito utilizados para tratar os fenômenos de convivência,
comunicação, interação com o meio e com as tecnologias, na
Pós-modernidade.
Uma
tentativa de interpretação à guisa de conclusão
Toda interpretação
é subjetiva, parcial e lacunosa, mas isto é característica da
literatura: o sentido do texto só se completa na medida do leitor,
que entende de uma ou de outra forma – conforme sua vivência, seu
repertório de leitura, suas capacidades culturais, sociais,
intelectuais, etc. – o que está lendo. Dito isso, parto para uma
sucinta interpretação crítica, que exatamente por ser crítica,
não vai isenta de juízo de valor.
A informação de
182 km de congestionamento já situa o leitor na sensação
angustiante e claustrofóbica de estar preso no trânsito. O horário
de pico intensifica a impressão. O conflito é exatamente a agonia
da distância diante da vontade de chegar logo (a um ponto de
chegada/destino, e a um alguém).
Diante da impotência
diante da situação do tráfego, o impulso é só não parar,
continuar indo, tentando não surtar, porque vai passar, vai ser
melhor (parafraseando as penúltimas frases do texto).
O que se vê no
trajeto, não por querer, mas obrigatoriamente, vai enchendo o tempo
e as sensações do narrador personagem, ativo-passivo diante do
trânsito. Os elementos descritivos são direcionados para imergir o
leitor nessa atmosfera maçante do congestionado de fim de tarde. Os
estímulos distraem o motorista e ele leva o leitor neste processo.
Daí a importância da forma, mais do que do enredo neste caso, para
causar uma impressão marcante do texto.
De tempos em tempos
os telefonemas, que bem podem ser só reminiscências, sem estar
acontecendo realmente – mas não foi assim que entendi –
ressituam o narrador personagem no seu objetivo: chegar, encontrar
aquela pessoa referida, sair da angústia.
É um texto de
resignação momentânea, em que o indivíduo (micro) está engolido
pela cidade (macro), na esperança de chegar àquilo que finalmente
lhe interessa. Indica assim a esperança de todos os que vivem
situação semelhante hoje em dia: ser um pouco mais dono de seu
tempo, de seu espaço, de si.
O miniconto me
remete ao conceito de sociedade
do tempo livre,
em que os sujeitos só se sentem inteiros e felizes no espaço
temporal em que não estão obrigados ao trabalho, ou seja, em
exíguos momentos de fuga e liberdade. Assim, o efeito que o texto me
causou foi a angústia de reviver aquele tipo de situação ruim, com
a pressa impotente diante da contingência do trânsito.
As escolhas do autor
são impressionantes, foi muito competente na maneira de apresentar
sua ideia. Independente de se gostar ou não do tema ou do entrecho,
é um texto admirável.
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