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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

ANÁLISE CRÍTICA DO MINICONTO “VOCÊ LIGA PRA CÁ E CONTA QUAIS SÃO OS SEUS CAMINHOS EM SÃO PAULO”, DE BRUNO ZENI.






Por Juliano Barreto Rodrigues


Referência:
ZENI, Bruno. O fluxo silencioso das máquinas: pequenas iluminações asfálticas. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002. Págs. 61-62.

O porquê da classificação como miniconto:
Miniconto, microrelato, termos ainda não pacíficos e de significado não unânime na academia, mas cada vez mais utilizados, definem: 1) textos concisos (mais do que simplesmente breves); 2) com narratividade que mostre a progressão de uma personagem de um determinado estado a outro; 3) Que cause um efeito (empático, antipático, de perplexidade, de estranhamento) – através de forçada adesão do leitor, causada por determinado uso deliberado da linguagem; 4) seja aberto, no sentido de não trazer todas as conclusões, deixando que o leitor as tire; 5) e exato, na medida em que o autor consiga direcionar o leitor ao efeito pretendido, e não a outro (por isso a escolha e posição das palavras e frases – da forma, enfim – são muito importantes neste gênero).
Todos esses elementos característicos estão presentes no texto estudado. Há ainda a falta de parágrafos, a forma de utilização do título, da pontuação, das palavras, que reforçam a classificação no gênero miniconto.


Contextualização do texto com o título do livro

O título do livro de Bruno Zeni é “O fluxo silencioso das máquinas”. No miniconto específico, um de vários, a ideia de fluxo das máquinas - coincidente com o título do livro - está presente, embora o texto contradiga o adjetivo “silencioso”, acrescido ao substantivo “fluxo” do título da obra. Sons estão referidos o tempo todo, inclusive no não mencionado toque do telefone celular que interrompe quatro vezes o trajeto do protagonista. Há música, som de carros, até de um helicóptero, comparado ao som da cidade: “Por que o barulho das pás de um helicóptero parece tão alto, como se tomasse conta da cidade, como se fosse mesmo o barulho da cidade?”
Há correlação direta com o subtítulo do livro, “pequenas iluminações asfálticas”: a pequenez do corriqueiro, da rotina, do dia-a-dia que se repete na cidade, no asfalto (no trânsito, neste texto em particular). São inúmeras as referências às luzes - de carros (que se deduz pelo horário em que se passa o enredo: início da noite), do telão luminoso de cristal líquido, da parede do prédio “cintilando” a imagem de uma mulher, dos giroflex das ambulâncias (também só sugeridos, não ditos).


Impressão visual

Um só bloco de texto desalinhado do lado direito, sem parágrafos, que tem como facilitador da leitura da mancha gráfica apenas as margens, as entrelinhas e a serifa da fonte utilizada. A escolha da edição casa bem com o conteúdo: o desalinhamento dá ideia do caos do tema, a falta de parágrafos insinua um fluxo constante, o bloco gráfico maciço remete à concisão do texto e, psicologicamente, ao peso e cansaço da situação vivida pelo narrador.


Título do texto

Há a diferenciação ortográfica da primeira frase, que funciona, assim, como título, a exemplo do que se ensina em manuais de escrita para web. O mecanismo serve para facilitar que se acrescente o texto em dispositivos móveis sem que haja desconfiguração de formatação. Também é meio para que o título não seja deslocado, e sim faça parte do próprio texto (sem ser necessário repetir sua informação no restante do corpo). Recurso muito usado no jornalismo digital (Bruno Zeni é jornalista).


O narrador

Narrador personagem em segunda pessoa, que faz com que o leitor se envolva de forma mais intensa com o que está lendo, percebendo as coisas de forma mais real, mais profunda. “Você” é o interlocutor do diálogo telefônico apenas insinuado. Para um leitor que não é de São Paulo, talvez a associação pessoal não aconteça. Noutros pontos, o narrador alterna entre segunda e primeiras pessoas do singular e do plural, o que reforça o tom dialogal:
[Eu] Não sei se propaganda de roupa [...]” – primeira pessoa do singular.
[...] vamos esperar um pouco” – nós, primeira pessoa do plural.
No entanto, na maior parte do tempo, o narrador está falando consigo mesmo, realizando um monólogo interior direto, demonstrando impressões internas sobre o trajeto, os sons, imagens, sensações e sentimentos que está tendo. Isso é trabalhado à maneira de um fluxo de consciência, evidenciado pela forma de pontuação e alternância desordenada entre informações objetivas e subjetivas, pela interrogação para si mesmo (“Por que o barulho das pás de um helicóptero parece tão alto, [...], como se fosse mesmo o barulho da cidade?”).
No final, há uma parte que representa bem claramente a fragmentação característica do fluxo de consciência: “Todo mundo na rua. Todo dia. Me tira daqui. Me leva pra casa. Me beija. Dezenove e cinquenta e dois. Pensando em nós dois. Depois que tudo isso passar. Vai ser melhor.”
O narrador é protagonista, sua narração se limita a seu ponto de vista, não tendo acesso aos pensamentos da outra personagem (não identificável se homem ou mulher. Se o leitor se identificar – como é possível pela narração em segunda pessoa – o gênero será o seu).


Parágrafos

Não há parágrafos explícitos para o leitor “respirar”. As frases são curtas. Uso dos dois pontos: 4 vezes, três deles muito próximos – aceleram a leitura. À rapidez do texto se contrapõe a lentidão do trânsito descrito, indicando a tensão (e estresse) entre a pressa do narrador personagem e a arrastada fluidez do tráfego.
Você liga pra [ou para] cá e conta [...]”. Usado 5 vezes. Cada entrada, em discurso indireto livre, corta a cena, fazendo as vezes de um parágrafo.
Em todo o texto, embora os deduzidos parágrafos (que não existem de fato) tragam basicamente a repetição da mesma frase inicial, a preposição pra é utilizada duas vezes, nas frases de início e de final apenas, trazendo uma contradição com a forma para (mais formal) utilizada no interior do texto. A sensação é de que usa o coloquial pra como se estivesse se referindo diretamente ao interlocutor no telefone e o para quando está falando consigo mesmo.
Esses “parágrafos” (embora não explícitos) vão diminuindo de tamanho (como a distância até o destino do narrador) até que o último seja apenas uma frase.
O texto começa e termina com elocução parecida, dando a ideia de um ciclo ruim que se repete todo o dia, mas há um alento na última frase que parece dar sentido ao caos que é suportado: “Você liga pra cá e conta como se ama em São Paulo”.


Transgressões à linguagem formal

Algumas transgressões da linguagem formal são evidentes, como o uso da preposição reduzida pra, que dá o tom coloquial ao escrito (embora seja forma dicionarizada e aceita pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa).
A Avenida Paulista segue parada” – transgressão. O verbo seguir se refere a passagem de tempo e não ao espaço da Avenida Paulista, como a frase parece mostrar.
Os carros andam um pouco melhor [...]” – para indicar “um pouco mais rápido”.
[...]o desespero das sirentes.”
Vai ser melhor” – em vez de será melhor.
Depois que tudo isso passar. Vai ser melhor”. A transgressão está na ênfase da pausa causada pelo uso do ponto em vez de vírgula.
Todo mundo na rua. Todo dia. Me tira daqui. Me leva pra casa. Me beija.” – uso de pontos, em vez de vírgulas. Há uma reclamação explícita. Transgressão da ordem formal: me leva, em vez de leve-me; me tira, em lugar de tire-me; me beija, e não, beije-me.


Outras considerações


Não fica claro se o interlocutor ao telefone está longe, ensinando melhores rotas, ou dizendo que também está em outra parte do trânsito paulistano, rumando para o mesmo destino.


O substantivo “São Paulo” é um eco recorrente no texto. Usado seis vezes em quatro parágrafos (apenas deduzidos, como já dito).


No rádio, temos música, pelo menos” – uma escapada, uma fuga a suavizar a espera. O “pelo menos” demonstra insatisfação de estar naquela situação. O “temos” reflete a alternância para 1ª pessoa do plural.


Há referências à meteorologia, distâncias, horários, cotações, datas, informações tão comuns e buscadas, com maior ou menor interesse (e de importância variável), por quem transita diariamente pelas cidades.


A imagem da mulher na parede impõe, “prende”, a atenção de quem passa. A potência daquele apelo publicitário é irresistível. Mais uma marca – além do congestionamento do trânsito, do tempo exíguo, dos excessos de sons, luzes, sensações e imagens, e da própria forma do texto – da Pós-modernidade.


Verbos, advérbios, substantivos e adjetivos

Parece haver uma escolha deliberada pela construção textual substantiva, tentando economizar em verbos, o que se reflete também na reduzida utilização de advérbios (de modo e intensidade) e locuções adverbiais em comparação com a profusão de adjetivos e locuções adjetivas. Visão rápida:
1. ADVÉRBIOS E LOCUÇÕES ADVERBIAIS
- segue parada
- parece tão alto
- lentidão
- andam um pouco melhor
- vai ser melhor
2. ADJETIVOS E LOCUÇÕES ADJETIVAS
- imagens líquidas
- imagens líquidas
- cores irreais
- parcialmente nublado
- céu avermelhado
- fluxo lento
- trânsito intenso, mas correndo
- figura enorme
- corpo inteiro
- quadris enormes
- mulher quente
- cores quentes
- mulher quente cintilando
- trânsito está completamente parado
- trânsito complicado
- trânsito bom

Chamam a atenção o uso de “líquidas” (adjetivo) e “cristal líquido” (substantivo composto) porque o primeiro uso conota, e o segundo denota, fluidez, coerente com fluxo de trânsito e, além disso, termos muito utilizados para tratar os fenômenos de convivência, comunicação, interação com o meio e com as tecnologias, na Pós-modernidade.


Uma tentativa de interpretação à guisa de conclusão

Toda interpretação é subjetiva, parcial e lacunosa, mas isto é característica da literatura: o sentido do texto só se completa na medida do leitor, que entende de uma ou de outra forma – conforme sua vivência, seu repertório de leitura, suas capacidades culturais, sociais, intelectuais, etc. – o que está lendo. Dito isso, parto para uma sucinta interpretação crítica, que exatamente por ser crítica, não vai isenta de juízo de valor.
A informação de 182 km de congestionamento já situa o leitor na sensação angustiante e claustrofóbica de estar preso no trânsito. O horário de pico intensifica a impressão. O conflito é exatamente a agonia da distância diante da vontade de chegar logo (a um ponto de chegada/destino, e a um alguém).
Diante da impotência diante da situação do tráfego, o impulso é só não parar, continuar indo, tentando não surtar, porque vai passar, vai ser melhor (parafraseando as penúltimas frases do texto).
O que se vê no trajeto, não por querer, mas obrigatoriamente, vai enchendo o tempo e as sensações do narrador personagem, ativo-passivo diante do trânsito. Os elementos descritivos são direcionados para imergir o leitor nessa atmosfera maçante do congestionado de fim de tarde. Os estímulos distraem o motorista e ele leva o leitor neste processo. Daí a importância da forma, mais do que do enredo neste caso, para causar uma impressão marcante do texto.
De tempos em tempos os telefonemas, que bem podem ser só reminiscências, sem estar acontecendo realmente – mas não foi assim que entendi – ressituam o narrador personagem no seu objetivo: chegar, encontrar aquela pessoa referida, sair da angústia.
É um texto de resignação momentânea, em que o indivíduo (micro) está engolido pela cidade (macro), na esperança de chegar àquilo que finalmente lhe interessa. Indica assim a esperança de todos os que vivem situação semelhante hoje em dia: ser um pouco mais dono de seu tempo, de seu espaço, de si.
O miniconto me remete ao conceito de sociedade do tempo livre, em que os sujeitos só se sentem inteiros e felizes no espaço temporal em que não estão obrigados ao trabalho, ou seja, em exíguos momentos de fuga e liberdade. Assim, o efeito que o texto me causou foi a angústia de reviver aquele tipo de situação ruim, com a pressa impotente diante da contingência do trânsito.
As escolhas do autor são impressionantes, foi muito competente na maneira de apresentar sua ideia. Independente de se gostar ou não do tema ou do entrecho, é um texto admirável.

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