O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

terça-feira, 29 de junho de 2021

Resenha Crítica, impressionista, de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", livro de José Saramago.


 

Albrecht-Durer

O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

(Resenha Crítica, Impressionista)


SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. – 2ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2017. 443 p.


O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, tem, a rigor, um título impróprio, porque dá a entender que o próprio Cristo estaria narrando, quando, na verdade, um narrador é que conta, em terceira pessoa, a vida de Jesus. No entanto, é possível que se entenda o título como significando uma versão que não aquela pretendida por Deus e escrita pelos evangelistas, mas uma assumida pela ótica (não pela mão) do próprio Cristo. Seja como for, é um título que promete algo além do que já se conhece da história corrente.

O narrador é, por assim dizer, atual. Em determinados momentos fala de situações bem mais recentes do que a época em que Jesus viveu (como em “[...] porque uma coisa assim nunca se tinha visto antes, nem tornou a ver-se mais, até aos dias de hoje.” - p. 357), e fala também da própria escrita (se situa como contador de uma história). É o que se evidencia, por exemplo na passagem:

[...] Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não se veja transformado em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridades. E também dizem que é esse o processo narrativo que melhor serve o sempre desejado efeito de verossimilhança, pois se o episódio imaginado e descrito não é nem poderá tornar-se nunca em facto, em dado da realidade, e nela tomar lugar [...]. (p. 220).

 

É uma literatura um tanto excludente, pela forma que foi construída: tem parágrafos imensos (o primeiro capítulo é a descrição de uma gravura, em um só parágrafo de várias páginas) e não faz marcações claras das falas das personagens, ou seja, não há travessão ou aspas para indicar diálogos, nem pontos de interrogação para marcar perguntas. Só a utilização de iniciais em maiúsculas no início de algumas frases, no meio dos parágrafos narrativos, dão a entender que há uma fala e a intercalação dos falantes. Exemplo:

[...] Uma mulher que atravessava o largo, trazendo uma criança de cinco anos pela mão, parou, olhou com curiosidade o forasteiro e perguntou, Donde vens, e como se achasse necessário justificar a pergunta, Não és daqui, Sou de Nazaré de Galileia, Tens família nestes lugares, Não, vim a Jerusalém e, como estava perto, decidi ver com é Belém, Estás de passagem, Sim, volto para Jerusalém quando a tarde principiar a refrescar. [...]. (p. 212).

 Disse “excludente” porque, além da linguagem culta, os parágrafos enormes e a falta de marcação das falas oferecem dificuldades extras para a leitura, o que é, com certeza, desestimulante para leitores menos experientes (mesmo para estes, na verdade) e menos obstinados à leitura do livro. Não é um livro vulgar, literalmente falando, no conteúdo nem na forma.

No entanto, trata-se de uma obra que apresenta grande qualidade narrativa, que engaja rapidamente o leitor que insistir na leitura, apesar da dificuldade acima mencionada. É que o ritmo tem uma constância interessante até o penúltimo quarto da obra (depois do qual a narrativa acelera), parecendo que o autor escreveu três quartos de uma vez só (o que seria impossível, já que o livro tem mais de 400 páginas e entrelinhas reduzidas), e consegue gerar expectativas, tensões e sensações novas em relação a uma história sobre a qual, em tese, todos os leitores ocidentais já conhecem as linhas gerais e o final. Isso acontece, por exemplo, quando José, pai de Jesus, corre para a cova a fim de salvar seu primogênito dos soldados de Herodes, que tinham ordem de matar todas as crianças com até 3 anos. Todos nós sabemos que Jesus não morre naquele episódio, mas, ainda assim, o narrador consegue deixar o leitor verdadeiramente apreensivo e temeroso do destino do protagonista. Isso se dá pelo manejo artificioso e genial das palavras, o que, por si só, faz da obra uma jóia de alto quilate. É a mágica da forma.

Se, por um lado, predomina uma escrita reta, substantiva, também há uma prosa poética, como em:

Mas o mal, que nasceu com o mundo, e dele, quanto sabe, aprendeu, amados irmãos, o mal é como a ave Fénix que, parecendo morrer na fogueira de um ovo que as suas próprias cinzas criaram volta a renascer. O bem é frágil, delicado, basta que o mal lhe lance ao rosto o bafo quente de um simples pecado para que se lhe creste para sempre a pureza, para que se quebre o caule do lírio e murche a flor da laranjeira. (p. 350).

 Falando do conteúdo, trata-se de uma releitura (e reescrita, neste caso, porque não mera interpretação) de uma história conhecida, como já dito, que embora não negue a versão oficial, a apresenta de uma perspectiva mais humana, destacando a cotidianidade das personagens bíblicas, a geografia e os costumes, mantendo os milagres mas tornando-os menos fantásticos – e, até por isso mesmo, mais críveis, ainda que dependentes da fé – ou, talvez seria melhor dizer, não lhes dando mais destaque do que devem ter. Também há um foco no crescimento psicológico do Cristo, que tem dúvidas, não sabe que rumo tomar, é grosseiro e ingrato com a mãe, vive com uma ex-prostituta, é mais humano. Humano, demasiado humano. Até ele se considera, tanto que pergunta como, sendo filho de Deus, come, bebe e ama como os homens. Esta humanidade toda já é um provável motivo de polêmica entre cristãos, mas sua relação com Maria de Magdala é, talvez, o ponto mais polêmico do livro.

É muito interessante que Saramago, autoproclamado ateu, tenha se dignado a escrever este Evangelho. Como diz a professora e escritora Tarsilla Couto de Brito (UFG), todos no ocidente são um tanto influenciados pelo cristianismo, mesmo os ateus, já que são todos criados dentro de uma tradição - familiar, escolar e cultural (as festas, feriados e folclore etc.) – eminentemente cristã. Sendo assim, embora incréu, Saramago conhece bem a história que se propôs a contar sob novo viés.

Gottfried Benn, famoso escritor do Expressionismo alemão disse que um autor religioso não faz boa literatura, porque sua crença o leva a tentar tornar sua arte edificante, banalizando-a. Nesse caso, a crença religiosa será um princípio estilístico ruim. É provável que essa generalização não corresponda tanto à verdade, mas tem um argumento importante que parece bem aplicável ao livro de Saramago: a falta de obrigação com o dogma, a ausência de temor reverencial, o olhar do ficcionista ao invés do olhar do fiel, é que permitiram a criação de uma obra tão ousada, original ao abordar temas negados e ao acrescentar novidades à narrativa-base. Sem a condição irreligiosa de Saramago, provavelmente o resultado do evangelho que escreveu não seria a obra prima que é.

Incomoda o machismo vigente naquele tempo e naquela cultura, que o narrador ressalta em vários momentos. É preciso que se pense que, naquela época, nem a ideia de machismo nem a palavra que o representa existiam. É preciso crer que aquele era o costume, para que o incômodo não antipatize tanto o leitor a ponto de largar o texto ao meio. Também é desagradável ler sobre a forma com que o protagonista trata sua família (sua mãe principalmente) em muitos momentos. Mais isso corrobora a ideia de sua humanidade.

Em O Evangelho segundo Jesus Cristo a mãe de Jesus, Maria, é relegada a um plano inferior, de figura indesejada pelo protagonista. Já Maria de Magdala é alçada a um ponto de destaque. É ela que acompanha Jesus nos seus anos mais importantes e até o momento de sua morte. É ela, mostrada aqui como mulher (de fato) de Jesus, a personagem mais controversa em relação à doutrina universalmente aceita.

A relação entre Deus e o Diabo é interessante e, ao invés de oposta, é complementar (Deus diz para Jesus: “[...] não esqueças o que te vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessa ao Diabo” – pp. 366-367). São mostrados como semelhantes: “[...] levo-os até a borda para que todos possam, finalmente, ver Deus e o Diabo em figura própria, o bem que se entendem, o parecido que são” (p. 370). E mais, há momentos em que o Diabo parece ser bem mais coerente do que o criador. É marcante, por exemplo, aquele em que Jesus acaba sacrificando a Deus o cordeiro que antes havia salvado, situação após a qual, o Diabo manda Jesus embora, dizendo que ele não aprendeu nada (porque deveria ter lutado pela vida). Noutra parte, o Diabo propõe a Deus que o perdoe e o aceite, para que só exista o bem, sem necessidade de tanta matança em nome de Deus, mas este não aceita e diz preferir assim. Aliás, o Deus deste Evangelho é um Deus arrogante, ambicioso, egoísta, enganador e sanguinário.

É feita uma relação, em várias páginas, dos mártires da Igreja Católica, arrolados em ordem alfabética por nome e tipo de morte violenta, que choca e que, somada às descrições de outros tipos de sacrifícios, apelam para a razão no sentido de induzir à conclusão de que os males causados pela religião podem ser maiores do que seus benefícios.

Jesus pergunta a Deus se ele se serve (usa) dos homens, e Ele responde: “Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare, e ele pára [...], falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses” (p. 370).

O que o livro todo parece dizer é que “[...] a história de Deus não é toda divina” (p. 410). Nesse sentido, o texto é quase um manifesto antirreligioso. Há uma crítica clara a esse Deus, à credulidade humana, à igreja. Por outro lado, Jesus é poupado. É fácil se identificar com ele, que, afinal, está pela humanidade, mais do que por Deus.

“[...] e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.” (p. 442). Finalizando a leitura, há como que este “fecho de ouro”, uma frase de grande efeito, que, arrisca-se dizer aqui, ficará gravada na memória de quem ler este Evangelho: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”.

Só me coube uma crítica impressionista, já que é a primeira leitura que faço de Saramago, não podendo comparar O evangelho segundo Jesus Cristo com o conjunto da obra do autor, nem com a fortuna crítica pertinente, a qual também não tive acesso ainda. Isso, porém, me dá liberdade para fazer um julgamento mais ligado puramente à fruição da leitura única e aos seus efeitos, sem ruídos externos nem pré-julgamentos. No entanto, é importante dizer que já havia assistido ao documentário José e Pilar, de cuja experiência saí com preconceito e impressão ruim acerca do autor, impressão totalmente revertida, logo no início da leitura deste evangelho.

Querendo classificar o livro em uma só palavra, a que me vem de pronto é “Soberbo!”, assim mesmo, em maiúsculas, exclamando. É um grande monumento literário. Na minha experiência pessoal, afirmo que restei cativado e desejoso de ler todas as outras obras do autor, que, se na pior hipótese, não tivessem 50% da qualidade desta, ainda seriam grandes.


Um comentário:

  1. https://www.eviseu.com/pt/livros/2223/uma-receita-e-um-conto-livro-de-receitas/
    Oi,Juliano? Aqui está o meu pequeno livro! Não espere muito... apenas leia, sim?

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