Juliano Barreto Rodrigues
Costumo
comparar a escrita ao desenho para mostrar o que se pode fazer para enfatizar e
tornar mais interessante o que se expõe. Iniciemos pelo mais básico: em regra,
se começa um desenho da esquerda para a direita, de cima para baixo, como
também fazem os escritores ocidentais; os instrumentos utilizados são mais ou
menos semelhantes – um suporte adequado e meios de gravação, que no desenho e
pintura são, em tese, mais diversificados e versáteis; ambas as formas de arte,
a escrita e o desenho (aí incluída a pintura) visam informar algo ao
observador-receptor. Tal informação terá sempre, no caso do fazer artístico, um
conteúdo estético e sensível-emocional.
Empregando
meios próprios é possível, nos dois casos, retratar cenários os mais diversos e
também criar imagens ficcionais irreais. Além disso, há formas de dar
movimento, passar mensagens subliminares, induzir interpretações, sugerir
continuidade ou regressão, gerar estados de espírito.
No desenho
é possível traçar uma linha de contorno para limitar o que se desenha e dar-lhe
maior nitidez, permitindo que o objeto principal seja visto com clareza a uma
distância maior ou que fique destacado em meio a outros elementos. Linhas de
valor mais alto – mais grossas – projetam para próximo do receptor o que
contornam; num conjunto de objetos desenhados com linhas de valores diferentes,
quanto mais finas, mais distantes parecerão os objetos. A linha é um artifício,
não existe nos objetos reais que se retrata.
Desenhando
e pintando também se podem alterar cores, brilhos e sombras, tamanhos e
perspectiva, etc., para destacar determinado(s) ponto(s) da cena e suavizar ou
dar profundidade a outro(s), compondo imagens até surreais, que uma fotografia
jamais poderia mostrar.
Na
escrita, o mesmo acontece. Como ela possibilita, comparando-a com a fala,
pensar com mais vagar no que se quer dizer, as palavras devem ser escolhidas a
dedo, dando o contorno enfático para tornar nítida a mensagem, ou então os
termos podem ser colocados de forma a ressaltar ou diluir algumas cenas: tudo
para causar a sensação que se procura. A pontuação e o tamanho dos períodos vão
ditando o ritmo do texto; o que se diria em alto tom ou se sussurraria deverá ser
escrito de forma a dar artificialmente o plus de volume ou minimizar os
efeitos da audição imaginária do leitor, como se houvesse uma ordem velada
mandando subir ou baixar o som quando se lê. A técnica precisa é usada para se
conseguir, dentre outras coisas, que o leitor leia dessa ou de outra forma,
causando uma cumplicidade que o faça esquecer que lê, fazendo-o “ver” a cena e
“ouvir” o que é dito.
No desenho
normalmente há uma base, um substrato, um fundo para contextualizar e sustentar
o que se desenha, além de dar parâmetro para que as coisas apareçam em planos
diferentes. O mesmo deve ocorrer na escrita. Por trás da trama e de detalhes
trazidos à tona, a mensagem mais profunda se desenvolve formando uma imagem
macro: aquilo que se pode contar em pouquíssimas palavras quando se sintetiza
para um amigo do que se trata o texto. Esse o fundo, sobre o qual o autor vai
sobrepondo minúcias, sabores, encantos, para dar gosto ao que é lido, tentando
tornar aquilo marcante e talvez inesquecível.
Ouso dizer
que todas as formas de arte são coirmãs, na verdade nuances de uma Coisa só,
mas acredito que a escrita tenha relação mais facilmente identificável com a
contação de histórias, a declamação, o desenho e a música.
Retratar é
o mesmo que descrever. A subjetividade e visão do artista já se manifestam no
recorte da realidade ou do sonho que decidiu enquadrar. A forma que a imagem
toma, concretamente, na tela ou em palavras, evidencia o domínio das
ferramentas, as preferências por ângulos mais ou menos propícios, de maior ou
menor iluminação, mais brilho ou mais opacidade, tonalidades vivas ou
cinzentas, etc.
Tanto
desenhando quanto escrevendo é possível traçar de delicadezas ínfimas e
filigranas a grotescas e superlativas cenas nauseantes, mas em nenhum dos casos
se descura do acabamento. Esse cuidado é importante porque se busca o ponto
certo de adesão do observador para que se torne participante da obra. A
potência do efeito comocional que o artista consegue imprimir é que o marcam
como grande.
Impacto tem menos a ver com a extensão da obra
do que com o tema e a forma com que é apresentada. Em ambos os casos, a
economia do que vai em segundo plano projeta à frente o que está no primeiro
plano; destacar o secundário esconde, suaviza ou adia o principal. São estratégias
de penetração nos sentidos do receptor.
O produto
artístico tem que conduzir o degustador a crescentes ou decrescentes de paladar
intelectual e sensorial, a um relevo de picos e\ou planícies e\ou planaltos
e\ou vales, tem que levar a algum lugar. Toda boa arte provoca, pasma, faz
pensar. A estupefação é a prova de que a obra tomou quem a admira.
A criação
do artista maduro o revela. Seja na assinatura pictórica do pintor, ou no
estilo do escritor ou do compositor, é possível identificar o criador por trás
da criatura. E isso se dá apesar de cada obra ser diferente uma da outra – é
que o “como se faz”, ... o processo, deixa as digitais daquele que concebe
naquilo que nasceu. Por isso é aceitável que alguns especialistas atestem a
autenticidade e autoria de obras sobre as quais há alguma dúvida nesse sentido.
Quem
admira um quadro ou, num exemplo mais claro, quem assiste a uma peça teatral,
sabe que aquilo é uma representação. Aquele que lê uma ficção também. O leitor
ou espectador tem, de certo modo, que “aceitar” participar da ilusão, tem que
ser levado a ceder a ela. Se o tema é interessante e a forma de apresentá-lo é
envolvente, o sucesso da fórmula será garantido para a maioria.
Aqui é que
se parte em defesa da técnica apurada como meio essencial para tornar
equivalentes a inspiração artística e o resultado materializado na obra,
tornando “real”, nos mínimos detalhes, o que o autor imaginou.
A partir
daí, alcançada essa correspondência exata entre o que se abstraía e o que se
concretizou na obra, cada receptor a lerá de uma forma, de acordo com os seus
filtros cognitivos, morais, culturais, etc. É o mal e o bem da arte: cada um a
vê sob seu próprio prisma, espelhando sua formação. Ao artista cabe se
conformar por não ser mais dono do que produziu. Dada a luz, levada a público,
sua cria é do mundo e cada um a vê do seu jeito.
Alguns
artistas trabalham inclusive com o “não dar tudo”, ou o “dar o mínimo”,
ampliando a margem de interpretação e subjetividade do receptor, pondo em suas
mãos a responsabilidade por completar mais ativamente o que vê ou até de
concluir a obra como bem entender. Cortam descrições, ou finais, ou
passagens..., e o leitor que se vire para chegar a um resultado.
As
possibilidades têm se ampliado. Há instalações em exposições que mesclam
palavras, sons, luzes, pinturas, objetos e todo tipo de elementos capazes de
estimular os sentidos. O cinema ensina a recortar uma história decorrida num
lapso temporal de vários anos em quadros estrategicamente escolhidos para que
caiba em duas horas de filme. E faz mais: as trilhas sonoras conseguem o efeito
de supervalorizar um momento ou induzir um tipo de sentimento em relação a um
personagem, um lugar, uma situação. A sétima arte é uma escola de ilusionismo.
O que isso
tem a ver com a escrita? Tudo! Desde sempre houveram livros ilustrados. Agora
há áudio-livros, leitura-dramática, livros digitais com imagens animadas e/ou
fundo musical em algumas cenas, livros em que o leitor participa escolhendo
soluções, e têm surgido inovações cada vez mais interessantes para fazer o que
todas as formas de arte têm feito: ampliado os recursos de sensibilização do
receptor.
Voltamos o
um ponto do qual já tratei. A arte, seja ela escrita, musical, visual, tátil,
ou qualquer outra, é uma Coisa só. Há um liame invisível, ou antes, algumas
características intrínsecas que permitem visualizar em cada modalidade
artística um código genético maravilhoso que torna possível ver em seu DNA a
parte de todas as outras. Isso expõe seu parentesco em primeiro grau. Arte é
arte. Cada uma das especialidades acrescenta ao artista algo no aprendizado das
outras.
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