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O Coletivo
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Crítica Literária (verbete criado para o curso de Letras da UnB)
Literatura Oral
By Geledés |
LITERATURA ORAL
Juliano Barreto Rodrigues
Entendendo que, etimologicamente,
literatura advém do radical latino littera,
que significa letra do alfabeto, caractér da escrita, alguns podem ver
contradição em tratar algo que circula, às vezes exclusivamente na forma oral,
como sendo literatura. Por isso mesmo, achei interessante tratar da literatura
oral como gênero.
Segundo o Glossário Ceale (SOUZA,
20??), a expressão Literatura Oral
foi utilizada pela primeira vez em 1881, pelo pintor, folclorista e escritor
francês Paul Sébillot, no livro Littérature
Orale de la Haute-Bretagne. Literatura Oral designa os textos (em sentido
amplo, significando um entrelaçamento de signos linguísticos que produzem
sentido), em prosa e verso, transmitidos oralmente. É o caso das lendas, mitos,
parlendas, adivinhas, provérbios etc.
Essa literatura existia antes
mesmo da invenção da escrita. Mas, ainda hoje, há culturas que mantém a
tradição de repassar manifestações literárias oralmente (poemas, contos,
rezas...). Nas religiões de origem bantu e nagô, aqui mesmo no Brasil, os mitos
e costumes são transmitidos através de versos (ingorossis, itans, orikis etc.);
na África Ocidental há os Griots. Nas tribos indígenas também se mantém a
literatura oral. Mesmo entre os habitantes urbanos, que aparentemente não têm
uma cultura tradicional preservada tão oralmente, também há algumas
manifestações do tipo, como as lendas urbanas, as cantigas de roda, as
adivinhações. Ao conjunto das ocorrências orais de fundo literário alguns
estudiosos têm chamado “oratura” (de orature, uma aglutinação entre os termos em
inglês oral + literature).
Muito da literatura fundadora que
conhecemos e estudamos hoje por escrito, nasceu oralmente (é o caso da Ilíada e
da Odisseia, de Homero). Também nasceram oralmente Beowulf, e os contos de
fadas antigos. Alguém contesta que se tratem de literatura?
A Wikipédia (2020) destaca o
caráter de arte “improvisacional” da literatura oral. Diz que, normalmente [não
exclusivamente] o narrador aprende um conjunto de sequências “roteirizáveis” ao
invés de decorar, ao pé da letra, um conjunto de textos. A partir daí, cria uma
trama com início, meio e fim. Visualiza os personagens, as cenas e cenários, e
improvisa a forma de contar. Disso decorre que nunca a mesma história será
contada exatamente do mesmo jeito. Isso pode valer para contos e outras formas
em prosa, mas talvez não para cantigas e versos, que geralmente são aprendidos
e repetidos palavra por palavra. Nesse sentido,
Zumthor (1997) esclarece que o texto oral é realizado
sem rascunhos – ou melhor dizendo, “sem borracha” –, por mais que cantadores
populares possam ensaiar e aprimorar seus versos antes das apresentações. O
momento onde o texto toma forma é circunstancial. Por isso mesmo, é certo dizer
que nenhuma performance é igual a outra. (LÚCIO; CUNHA, 2017, p. 4701).
A consignação por escrito da Literatura Oral é polêmica. Se,
por um lado, evita que muitas de suas manifestações sumam, se extinguam, por
outro, a transcrição representa uma apropriaçao por parte do transcritor, que
passa a ser autor (lembra o caso dos Irmãos Grimm?); engessa ou deturpa uma
versão de algo que, por ser oral e contado por diferentes pessoas, é
naturalmente modificável no tempo e no espaço; além disso, altera as próprias
características da fala popular.
No entanto, ainda que oralidade e
escrita tenham diferenças muito evidentes, devem ser vistas em suas
peculiaridades, mas não como coisas opostas, porque comumente se entrecruzam.
SOUZA (20??) demonstra a defesa dessa ideia por nosso sistema escolar:
Na alfabetização, tais entrecruzamentos [entre
oralidade e escrita] se revelam importantes. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) dos anos iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, aproximam
o ensino da escrita da oralidade, ao sugerir a valorização da cultura oral como
forma de iniciar o aluno no mundo da escrita, apresentando perspectivas
teórico-metodológicas que envolvem a narração e a escuta de histórias, o
levantamento de narrativas que circulam nas famílias e o trabalho com gêneros
orais, tais como cordel, canções e parlendas.
Entendendo “literatura” e mesmo “texto” como algo mais amplo,
neles podem se enquadrar os quadrinhos, o cinema, as novelas de TV, as canções
populares, o repente, o improviso, o graffiti e o pixo nos muros (Cf. LÚCIO;
CUNHA, 2017) e - por que não? - os
Storytellings do mundo institucional e corporativo. É preciso considerar,
inclusive, o caso de algumas obras de arte não autônomas que dependem de
significados externos, escritos, que completem ou traduzam significados
(WILLIAMS, 2007, p. 259) - é o caso de algumas pinturas, filmes, músicas, por
exemplo. Não sendo primariamente literárias, secundariamente podem ser lidas
pelo viés literário.
Por tudo que foi dito, Literatura Oral é, sim, literatura. E
a ela deve ser reconhecido o valor que se dá a algo escasso, em vias de
desaparecimento caso não continue a ser repassado. Se pensarmos pos este viés,
em muitos casos a maioria das narrativas orais tradicionais são muito mais
preciosas do que as escritas. Aquelas foram construídas por gerações (nesse
sentido são coletivas) e continuam vivas, se transformando um pouco a cada
recontagem (por esta ótica, tem algo do gênero dramático, dependem de uma certa
performance do contador). Já as escritas, viraram mercadoria corrente e perene,
abundam. Têm mutio valor, mas é preciso que as pessoas, inclusive os literatos
e as universidades, confiram à boa literatura oral o lugar que merece, junto à
literatura com “L” maiúsculo, posto quase exclusivamente conferido aos cânones
escritos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LITERATURA
ORAL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia
livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Literatura_oral&oldid=59490160>.
Acesso em: 9 out. 2020.
LÚCIO, Ana Cristina
Marinho; CUNHA, Thiago da Silveira Cunha. Literatura e outras linguagens:
exemplo do testemunho de pichadores em João Pessoa. XV Congresso Internacional da Abralic. Universidade Federal da Paraíba.
2017. Disponível em:
<https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522243505.pdf> . Acesso em
09 out. 2020.
SOUZA,
Josiley Francisco de. Literatura Oral. In: Termos de Alfabetização, Leitura e
Escrita para educadores. Glossário Ceale.
Faculdade de Educação da UFMG. 20??. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/literatura-oral#:~:text=Literatura%20oral%20%C3%A9%20uma%20express%C3%A3o,modo%20diferente%20do%20falar%20cotidiano>
. Acesso em 09 out. 2020.
WILLIAMS,
Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; traduçãode
Sandra Guardini Vasconcelos, - São Paulo : Boitempo, 2007. 464 p.
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Falando um pouco sobre o gênero Romance
Falando um pouco sobre o gênero Romance
Juliano Barreto Rodrigues
domingo, 27 de setembro de 2020
O que é Literatura?
O QUE É LITERATURA?
Juliano Barreto Rodrigues
Não há um conceito conclusivo do que seja literatura. Provavelmente nem vai haver. Trata-se de uma definição que, conforme a história revela, tem se modificado no tempo e nas diversas culturas (espaços diferentes). Mas, como disse Williams (2007, p. 256), “O que, então, deve ser rastreado é a tentativa amiúde bem-sucedida de especialização do termo literatura para designar certos tipos de escrita.”
É relativamente fácil relacionar a música e as artes plásticas a arte, mas o texto escrito não se classifica tão facilmente como arte escrita, como Literatura. Isso, talvez porque a escrita sempre foi muito mais utilizada para fins utilitários do que artísticos e, mesmo nestes casos, é uma arte que nem sempre revela de forma tão evidente seu valor estético.
Literatura já foi definida como tudo que se registrava por escrito, também como aquilo que se escrevia por e para a “alta cultura”; já foi conceituada tanto se baseando no seu conteúdo quanto, depois, exclusivamente na forma de escrita; para uns, inclui a tradição que é repassada oralmente, ideia inadmissível para outros (apoiados na própria etimologia da palavra literatura, do latim littera, significando “letra”, portanto algo escrito). Ou seja, há ‘correntes’ de pensamento a respeito do que seja literatura, e todas têm argumentos defensáveis.
Aristóteles, em seu tratado A Poética, indicava que o texto literário (denominado “poesia”, não distinguindo o verso da prosa) partia do mundo e a ele se referia por imitação. O problema é que, quando se trata o texto literário estritamente como imitação, o gesto poético fica adstrito à reprodução do mundo real. Assim, os teóricos ulteriores expandiram o termo referente a imitação, usado por Aristóteles – mímesis (do grego μίμησις) – utilizando este como conceito próprio e significando bem além daquilo que o uso comum da palavra imitação normalmente representa, porque a poesia (significando literatura de forma geral) ultrapassa a simples imitação das ações dos homens, ela constrói o que poderia ter acontecido ou que poderia vir a acontecer (às vezes de forma absurda, fantasiosa, onírica etc., no entanto, verossímil de alguma maneira). Aí entra a imaginação, que chamamos hoje de ficção. Isso repercute na criação, palavra-chave do fazer literário, mas também na forma de leitura, pois, como afirma em aula o professor de Teoria da Literatura, Dr. Anderson L. N. da Mata, da Universidade de Brasília (UnB), quando não se está lidando com o que aconteceu, tem-se um outro registro dos fatos e da linguagem.
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, em entrevista a seu conterrâneo e também escritor Plinio Apuleyo Mendonza, traz, falando do Romance (talvez a forma mais generalizada de literatura atual), uma ideia de mimese – a que chama de “transposição poética da realidade” – muito interessante: “[...] é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se almeja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apoie nela. Como acontece com os sonhos.” (MÁRQUEZ, 2020, p. 51).
Deleuze vai além da ideia de mimese, ou talvez apenas amplie seu sentido e a perspectiva de interação do leitor, colocando em seu lugar o que chama de “devir”:
Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula. (DELEUZE, 1983, p. 12).
Mimese, devir, representação – “[...] a arte seria representacional enquanto manifesta a ‘verdade’ ou a ‘essência’ da exterioridade eleita como núcleo do mundo” (COSTA LIMA, 1981, p. 216) –, são pertinentes ao conteúdo. Conteúdo e/ou forma peculiares, eis, ainda, os dois principais pontos de caracterização da literatura. O problema é que não são absolutos nem incontroversos. Veja o que diz Eagleton a respeito do primeiro ponto:
Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita "imaginativa'', no sentido de ficção - escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. A literatura inglesa do século XVII inclui Shakespeare, Webster, Marvell e Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os sermões de John Donne [...]. (EAGLETON, 2006, p. 1).
Da mesma maneira que algumas não-ficções são consideradas literatura, uma certa forma distintiva, defendida ao extremo pelos formalistas russos, também nem sempre é, sozinha, determinante para caracterização do texto como literário, haja vista que, a forma de escrita prosaica de uma época passada ou de determinado local pode ser vista como poética em outro tempo ou lugar. Nesse sentido, “Quem acredita que a ‘literaturà' possa ser definida por esses usos especiais da linguagem tem de enfrentar o fato de que há mais metáforas na linguagem usada habitualmente em Manchester do que na poesia de Marvell.” (EAGLETON, 2006, p. 8).
Por outro lado, o sistema de circulação do texto literário, que abrange escritores, leitores, mediadores (professores, editores, críticos, livrarias, agências literárias e de marketing etc.) define e consolida – inclusive a despeito das teorias mais aceitas – o que é considerado literatura em determinado contexto histórico e espacial. Até porque, a literatura é arte e, como tal, traz em si a tendência histórica no sentido de romper com a tradição. Isso estimula a experimentação e a assunção de riscos estéticos pelo artista, coisa que os gêneros “não literários” praticamente proíbem. Quem, senão o próprio autor e alguns dos movimentadores desse sistema, classificaria como literatura, por exemplo, o livro Múltipla Escolha, do chileno Alejandro Zambra, todo escrito como questionário de prova de vestibular?
Revendo minhas experiências pessoais de leitura, o conceito de literatura que mais me assenta é o que a define como ‘arte da palavra’, algo a que Willians (2007, p. 257) chama de “complexo moderno de literatura”, resultado do mix “arte, estético, criativo e imaginativo”. Entendo que uma preocupação essencial com a estética, bem como as escolhas deliberadas de palavras com o fim de causar determinado ‘efeito’ emocional nos leitores, caracterizam – como ocorre em outras formas de arte – a Literatura.
Se, por um lado, não considero que qualquer coisa escrita seja literatura, por outro, acredito que algo não escrito – como as narrativas orais tribais africanas, ou indígenas brasileiras, que Ailton Krenak chama de “memória ancestral” (KRENAK, p. 9), por exemplo – o seja.
Forma e conteúdo. O que diferencia o texto literário de um texto formulaico, ou noticioso, ou de outro qualquer é seu conteúdo ou a forma em que é escrito (ou, frequentemente, as duas coisas). Não tendo função informativa nem instrucional, embora possam eventualmente informar e instruir (a exemplo das crônicas, das fábulas, dos romances de formação, dos textos religiosos, dentre outros), são atribuídas aos autores literários tanto grande liberdade ficcional quanto estilística (embora a fortuna do gênero imponha certos limites consensuais que são, mais ou menos, respeitados). Levando em conta a ideia que mais me apraz de literatura, entendo que esses dois componentes, ficção e forma (ou estilo artístico) é que conferem os elementos de fruição estética, característicos do enlevo causado pelas demais obras de arte, ao texto literário.
Arte da palavra, em que prevalecem a criação ficcional e uma forma de escrita deliberadamente trabalhada esteticamente, marcada com o cunho autoral (subjetivo) e buscando causar um ‘efeito’ emocional no leitor – estas, para mim, as principais características definidoras de Literatura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
COSTA LIMA, Luiz. Representação social e mimesis. In Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981. p. 216-236
DELEUZE, Gilles, La Litérature et la Vie, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.
EAGLETON, Terry Teoria da literatura : uma introdução; tradução de Waltensir Outra ; [revisão da tradução João Azenha Jr_]_ - 6" ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2006. - (Biblioteca universal). 387 páginas.
KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo, 2019.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cheiro de Goiaba : conversas com Plinio Apuleyo Mendonza; tradução de Eliane Zagury. – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2020. 190 páginas.
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave : um vocabulário de cultura e sociedade; tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. – São Paulo : Boitempo, 2007. 464 páginas.
ZAMBRA, Alejandro. Múltipla escolha; tradução de Miguel Del Castillo. - 1ª ed. - São Paulo: Planeta do Brasil, 2017. 112 páginas.
Impressões sobre o conto Animais, de Michel Laub
IMPRESSÕES SOBRE O CONTO ANIMAIS, DE MICHEL LAUB
Juliano Barreto Rodrigues
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAUB, Michel. Animais. IN: GRANTA, 9: os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva (Alfaguara), 2012, p. 13-23.
____________. Michel Laub / Episódio completo: Minha vida dá um livro / Super Libris. Youtube. 12 abr. 2016. Disponível em: <https://youtu.be/wdCMrEz4EGI> . Acesso em 26 set. 2020.
SCHWARTZ, Adriano. Crítica: Linguagem contida da “Granta” distingue seleção acima da média. Folha de São Paulo, 16 jul. 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1120548-critica-linguagem-contida-da-granta-distingue-selecao-acima-da-media.shtml>. Acesso em: 25 de set. de 2020.
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez
Rapidíssimas impressões sobre o conto "A Luz é como Água", de Gabriel García Márquez
(Por Juliano Barreto Rodrigues)
O "realismo mágico", movimento
literário em que o escritor Gabriel García Márquez mais se destacou, joga com a
disposição do leitor de se dar à fantasia. É como nas peças representadas no
teatro: o espectador sabe que atores apenas representam, mas topa a ilusão,
participa acreditando, para poder sentir aquilo que a peça traz. No caso do
realismo mágico, em que o autor ‘viaja’, criando cenas, ou personagens, ou
situações e diálogos, claramente impossíveis racionalmente, o leitor tem que
estar suscetível e disposto a embarcar na ilusão. Nesse sentido, considero que
seja uma literatura de extremo, de limite, que pode dar muito certo ou muito
errado, porque as impossibilidades têm que ser, a despeito de impossíveis,
muito verossímeis. No mínimo o leitor tem que estar tão enlevado pela escrita
que suas sensações ultrapassem a necessidade de coerência racional absoluta.
Isso não é comum em toda literatura? Sim, mas no caso do realismo mágico... é
pressuposto.
Quem teve o privilégio de ler Cem
Anos de Solidão sabe que Gabo (apelido do autor, que os leitores
apaixonados por sua escrita, como eu, adoram usar para sentir uma ilusão de
intimidade) domina essa forma de escrita totalmente. É um prestidigitador da
palavra, um habilidoso enredador, que leva os leitores para onde quer. Esse é
meu jeito de dizer que ele é um grandissíssimo escritor de ficção.
O conto A luz é como água dá
um gosto do que é a escrita de Gabo. Você escorrega da realidade para o onírico
sem ver, como se estivesse sentado, dormisse sem sentir e, de repente,
estivesse no meio de um sonho mágico, do qual você também acorda sem perceber,
olha para os lados para ver se o que estava sonhando está mesmo acontecendo.
Engraçado é que as coisas são pertinentes, tem algum rumo, levam a algum
sentido (coisa que os sonhos malucos não costumam ter).
Quem não vê aquela torrente dourada quando lê
a parte da luz escorrendo do prédio? É falsa? Claro que não. É super verdadeira
na nossa imaginação. É ou não é? É essa a mágica que Gabo faz com as palavras.
Partilha de Leitura - "Para além do sentido: posições e conceitos em movimento", capítulo do livro "Produção de Presença", de Hans Ulrich Gumbrecht
“Paraguaçuismo”[1]
discursivo
Juliano Barreto Rodrigues
|
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês,
mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do
crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... (Lima Barreto in O Homem Que Sabia Javanês). |
Faço aqui uma partilha de leitura que foi
significativa para mim, mas de forma negativa. Eis uma ousadia crítica que não
aconselho, já que feita em desfavor da escrita de um dos celebrados teóricos
profissionais de hoje.
Fui instado a ler o capítulo Para além do sentido: posições e conceitos
em movimento, do livro Produção de
Presença (PUC Rio, 2012), escrito pelo teórico literário alemão Hans Ulrich
Gumbrecht. Como disse, a leitura me impressionou, em mau sentido. Explico!
Primeiro Gumbrecht escreve meio capítulo, mais
de vinte páginas, se escusando pela ousadia de defender uma posição minoritária, o que talvez se justifique pelo fato de ele, que não é filósofo de formação,
lutar em campo alheio, tendo que pedir tanta licença e invocar máxima data
vênia para ser ouvido pelo público que elegeu.
Quando parte efetivamente para o tratamento da
tese que traz, o faz de forma quase barroca, enfeitando e complicando o que já
é, por natureza, complicado. Problema de linguagem artificiosamente encriptada.
Isso o que me indispôs com o texto e fez com que me sentisse um pouco manipulado
pelo autor.
Gumbrecht considera a forma de conhecimento
baseada tão somente nos sentidos, limitada, uma sucessão interminável de
interpretações. Os objetos de estudo (inclusive a arte) são o que são (no tempo).
O autor propõe uma outra forma de ver as coisas e seres, como presença (no
espaço), numa relação de aproximação e afastamento em relação ao mundo. Aqui há
que se diferenciar os conceitos de terra e mundo. O primeiro, vinculado ao
universo dos sentidos, isola o objeto em sua existência temporal e o
conhecimento que se tem dele depende de observação e interpretação. O segundo,
defendido por Gumbrecht, é mais amplo, vê os objetos de conhecimento
horizontalmente, em relação ao seu entorno e aos observadores. Na aproximação e
no afastamento o objeto se mostra e se oculta, dando-se a conhecer nesta
relação e de acordo com as modificações que cada tempo nele opera. Ele não é
somente o que é, como quando surgiu; ele é como se apresenta no tempo da
aproximação e em relação com o mundo. Assim, uma ruina de coluna jônica, vista
hoje, será considerada uma ruina de coluna jônica, e não uma coluna jônica em
si, como se estivesse intacta. Difícil de entender? Muito. E embora eu talvez
não tenha entendido bem, nem explicado a contento, o texto de Gumbrecht não faz
nada para tornar a ideia mais inteligível.
A experiência de leitura do texto me trouxe à
memória dois outros pensadores: Michel Foucault e Gayatri Chakravorty Spivak
(autora de Pode o Subalterno Falar?).
Ambos escreveram da mesma forma hermética que Gumbrecht usou em seu texto.
Podendo clarificar os conceitos e o entendimento, os emaranharam em uma linguagem
rebuscada, redundante e “pavônica”, para dar ares de maior gravidade e erudição
para suas teorias.
Foucault, na terceira entrevista que concedeu a
Roger-Pol Droit, em 1975, se afirmou um “pirotécnico”. Ele se autodesignou assim
para afirmar sua tendência a polemizar temas que o senso comum preferia deixar
‘por baixo dos panos’. Mas, para mim, pirotecnia também adjetiva a sua
linguagem. Seus textos são de um exibicionismo intelectual e de uma
autocondescendência enormes. Não é, no entanto, um autor condescendente com
seus leitores. Em uma linguagem intrincada, que se afasta e se aproxima do
objeto, o rodeia à exaustão, transforma cada leitor em tradutor de suas ideias,
quando bastava que as colocasse de forma clara. A mesma coisa acontece na
leitura de Spivak: complica o que era para ser simples. Um texto chamado Pode o Subalterno Falar? deveria ser
vedado ao entendimento do subalterno? Mas Spivak ainda tem o mérito de
esclarecer que, partindo da subalternidade, para ser ouvida teve que se adequar
ao império da academia, à forma de linguagem, às regras, ao jeito de produzir e
difundir conhecimento, que ela legitima. Ou seja, expôs a máscara que teve que
vestir para ser aceita nos círculos restritos.
Não estou criticando os conceitos nem os
conhecimentos dos citados autores (gosto muito das obras de Foucault), mas a
linguagem utilizadas em seus textos. Quem ouve as entrevistas de Gumbrecht ou
já leu As muitas camadas do mundo dos
sonetos de Shakespeare, capítulo do livro Atmosfera, ambiência, Stimmung (GUMBRECHT, 2014, págs. 55-69), percebe
a enorme diferença da linguagem do livro Produção
de Presença. Gumbrecht é entendível quando quer ser. Nesta obra Gumbrecht
chega ao ponto de, apresentando uma ideia, dizer que ela seria melhor definida
por outra expressão. Daí ele apresenta a melhor expressão, mas volta ao uso daquela
primeira, menos adequada. Como explicar? Sou obrigado a crer que há
qualquer insegurança na defesa de sua teoria e que ele deliberadamente a
complica para fazer passar despercebidas quaisquer fragilidades lógicas ou, ao
menos, dificultar a vida dos outros teóricos que venham a tentar refutá-lo. Se
não tivesse lido qualquer outra coisa de Gumbrecht iria acreditar, vendo como
escreveu Produção de Presença, que,
sendo crítico literário, não havia aprendido nada com seu objeto de crítica, ou
seja, com a linguagem literária.
Minha primeira formação é em Direito, ciência
social aplicada em que o conservadorismo e a tradição são claramente
representados pelo jargão profissional que só se justifica, a despeito dos representados
por advogados e dos que recorrem ao judiciário, pela reserva de mercado. Acuso
os teóricos, de algumas outras áreas do saber, do mesmo problema ético-político:
restringir, pelo artifício da complicação da linguagem, o acesso ao
conhecimento. Sei que, obviamente, cada ciência e cada especialidade dentro
dela, tem conceitos próprios, objetos próprios etc., que justificam significados
próprios para determinados termos. O que critico é a deliberada tentativa de
restringir mais ainda o entendimento através de construções que não esclarecem,
antes confundem.
Uma autoridade que não sabe dizer claramente
algo, mistifica, dá voltas e mais voltas, ilude, mas não perde a autoridade. A
impressão que a leitura me deixou foi essa. Respeito as leituras alheias e
ressalto que essa foi, apenas, a minha leitura.
REFERÊNCIAS
Foucault, M. Eu sou um pirotécnico. Em
R. PolDroit (Org.). Michel Foucault: entrevistas (V.P. Carrero
& G.G. Carneiro, Trad.) (pp. 67100). São Paulo: Graal.
(Original publicado em 2004).
GUMBRECHT,
Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência,
Stimmung : sobre um potencial oculto da literatura; tradução Ana Isabel
Soares – 1. ed. – Rio de Janeiro : Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.
SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. Pode o subalterno falar?;
tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André
Pereira Feitosa – Belo Horizonte : Ediotora UFMG, 2010.
[1]
Referência ao personagem ficcional Odorico Paraguaçu, um adorado político demagogo,
com discursos incríveis e um dialeto próprio. Personagem criado pelo dramaturgo
Dias Gomes, por volta de 1969.