Algumas
pessoas nos inspiram de forma ímpar. Relembrando um curso que fiz, estava
remoendo algumas coisas que aprendi do grande tatuador quirinopolino radicado
em Goiânia, Jander Rodrigues. O que me ensinou foi muito além de técnicas, foi
determinada atitude frente à vida, ao trabalho e a mim mesmo.
Descrevendo
os segredos de sua arte, os detalhes “descobertos” com anos e anos de dedicação
extrema ao ofício, ficou patente que a excelência está totalmente vinculada
ao fazer pelo fazer, para muito além da preocupação com dinheiro, fama, mídia
ou o que quer que seja. É óbvio que estas são motivações importantes, mas são
secundárias diante do envolvimento total com a produção de algo que se
ama e que o artífice pretende ver perfeito, em seus mínimos detalhes.
Nesse altíssimo
nível de cuidado com produzir uma obra prima, as atividades-meio passam a ter
uma atenção que o profissional menos apaixonado deixa passar sem dar
importância. Estávamos falando de tatuagem, mas Jander queria mostrar que a máquina
certa, na velocidade certa, com a agulha mais adequada a determinada etapa,
guiada no ângulo e andamento correto, com a tinta diluída a “x” por cento em um
diluente feito de uma mistura testada dia-a-dia pela prática, tudo colocado em
uma bancada móvel com a altura que o braço alcance sem esforço, a pele
iluminada por uma luminária móvel encaixada em um pedestal de microfone para
dar melhor firmeza, etc., são o “pulo-do-gato”, o que faz com que determinada
peça de arte saia exata e magnífica.
Ou
seja, certo grau de perfeição está ligado à observância de TODOS os detalhes na
execução, sem exceções. O ritual do burilar cada mínima fase sem pressa e em
todo seu andamento vai dotando o produto de uma qualidade incomum e vai
transformando o artista em um esmerado e paciente criador de jóias únicas,
inimitáveis.
O
respeito “oriental” (que eu apelido de zen-budista) ao fazer é o diferencial
entre os grandes e os realmente grandes. Fazer com alma: esse o resumo do
comprometimento desejável.
Jander
me legou uma lição para todas as coisas que faço: não produzir nada
maquinalmente, sem deixar algo de mim no que for feito. O que me proponho a
fazer bem, pode ser feito muuuiiito bem se eu me dedicar pra valer, tiver
paciência, pensar na melhor forma de conseguir o resultado ideal, cuidar dos
mínimos detalhes de cada etapa, colocar meu coração naquilo.
Bem
mais do que à atividade fim, hoje sou atento à atividade meio; às vezes essa é
a melhor parte. Me lembro sempre do exercício chinês do Dishu em que o poeta cria, com água, ideogramas no calçadão da
praça ou do padre José de Anchieta escrevendo na areia. A maioria de nós os
chamaria de loucos ou idiotas, mas a sabedoria está em produzir algo lindo, com
profundidade e todo o cuidado caligráfico e estético para o agora,
independentemente daquilo se evaporar ou ser levado pelas ondas dali a pouco.
Na nossa
cultura já parece muito exigir que as pessoas se preocupem adequadamente com
coisas perenes - como uma tatuagem, um texto, a construção de uma casa -, quem
dirá com as coisas mais imediatas. É preciso uma mudança de visão.
Falei
do respeito à obra, mas a intenção é mostrar que trata-se do respeito a si
mesmo e à sua própria capacidade. Quando respeita o que faz a ponto de querer aquilo
perfeito, o indivíduo já chegou a um ponto em que acredita em si e na própria
superação. Se preocupa com a sua reputação perante os outros mas,
principalmente, com a imagem que tem de si próprio, com o se acreditar “foda”
nas coisas que põe a mão.
A
precisão, o detalhamento, a busca eterna pelo melhor ponto, produzem
invariavelmente humildade perante o ofício. Entendendo que sempre vão aparecer
novas dificuldades e que a todo o momento ele, artífice, será posto à prova
para superar-se. Em sua vida não deverá caber arrogância e estagnação. Porque
quem está disposto a melhorar tem que estar aberto a aprender, e isso requer
uma atitude humilde.
O que
decorreu daquelas conversas com um mestre em sua arte me levou a mudanças de
atitude em um sem-número de tarefas. Percebi que tudo o que se aprende sobre
determinada coisa pode ser aplicado também na realização de outras. Essa
atitude receptiva torna possível que se inove em coisas que sempre foram feitas
da mesma maneira, permitindo que evoluam para um novo patamar.
O
Mestre, como o chamam muitos de seus amigos, ressalta a todo momento suas
origens e as dificuldades que o levaram ao sucesso que tem hoje (hoje ganha
mais do que um juiz de direito, se é que isso interessa, porque não é o
principal para ele). Finca seus pés em seus valores e bases, especialmente sua
família, deixando claro que, apesar de amar o que faz, há coisas mais
importantes na vida.
Por
falar nisso, tem outros interesses e hobbies que lembram quem o rodeia de que
“nem só de pão vive o homem”, e é preciso estar aberto para viver outras coisas
e se divertir sempre, apesar da concorrência que encontra entre as atividades,
por tentar se envolver com tudo que diz respeito – direta e indiretamente – com
o universo da tatuagem.
Jander
demonstrou desprendimento ao se permitir ensinar as técnicas que o fizeram
bem-sucedido, e o fez sem um mínimo de restrição. Disse, sem palavras, que
ensinar não tira o mérito de quem faz algo bem, muito pelo contrário, permite
que sua arte engrandeça. Um milhão de técnicas não fará de um artista um
Jander. O desenvolvimento do próprio estilo, o estudo acurado, a lapidação do
gosto, etc., etc., é que vão permitir o que a filosofia prevê como natural: que
o discípulo supere o mestre.
Tatuar
não sei se aprendi, mas no mínimo compreendi, com um grande exemplo, como fazer
tudo de forma diferente e buscando a perfeição. De resto, há um aforismo que
levo como lema: “trabalha! E tende paciência!”. O que decorre do que se faz bem
são coisas boas. É isso!
Nenhum comentário:
Postar um comentário